quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Mulher fazendo café

Jorge Adelar Finatto


A parede é espessa e fria. O tempo é lento e monótono como um carrossel. Ela escreve coisas e faz desenhos na caverna moderna onde vive. Em volta do fogão, ela esquenta água e aquece as mãos.  Às vezes, penetra um vazio na alma, dá vertigem. Então ela bate com o nó dos dedos na parede, como se houvesse uma porta, alguma secreta passagem, como se existisse alguém do outro lado. Precisa acreditar que existe vida. Vida humana, vivente e cálida. Uma pessoa como ela entre quatro paredes, quatro décadas, um coração partido em fatias, como o bolo caseiro sobre a mesa. Nuvens de signos saem do teclado pelo espaço, mas é um grito silencioso. Talvez exista alguém do outro lado, que também espere como ela, e sinta frio, e queira em ir embora dessa cidade deserta, fugir disso tudo, abandonar o mar morto das cavernas urbanas. Enquanto pensa essas coisas, ela prepara o café da noite.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

McCartney

Jorge Adelar Finatto


Nunca fui fã incondicional dos Beatles. A minha relação com o grupo foi sempre discreta (motivo de preocupação deles, claro). Não é uma questão de querer ser diferente, mas de  gosto. Aprecio diversas músicas, mas não tenho nenhum disco. Um perfeito ser das cavernas. Mas nada como um dia depois do outro. Acompanhei a passagem de Paul McCartney  (68 anos) por Porto Alegre através da imprensa (até porque não se falava noutra coisa). Posso dizer que tenho novas e boas razões para admirá-lo. A começar pelo esforço que fez em comunicar-se em português (muito bem, por sinal) com o público presente ao seu show. Vejo nisso uma manifestação de consideração com as pessoas, tão fãs quanto qualquer súdito da rainha. Admirável a sinceridade nas entrevistas, fazendo questão de mostrar-se como a pessoa que é, sem mitologia. Falou sobre seu vegetarianismo, seus filhos, sua carreira. Tratou todo mundo com gentileza, mas sem falsas intimidades. Cantou como se a voz estivesse ainda nos anos 1960. Foi simpático a ponto de, em pleno estádio lotado, repetir com a telúrica assistência "ah, eu sou gaúcho". Uma lição nesses tempos em que o planeta aderna com o peso de tantos egos inflados. Portanto, passei a gostar do cara. Como é bom poder dizer isso. Agora só falta o disco. Antes tarde do que nunca.

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Foto: Paul McCartney, Inglaterra, 2010. Fonte: Wikipédia. Autor: Oliver Gill.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Negrinha

Jorge Finatto


Li recentemente um livro que vale a pena. O título é Negrinha e seu autor é o francês Jean-Christophe Camus (filho de pai francês e mãe brasileira). A obra é ilustrada com belas aquarelas do também francês Olivier Tallec. É uma história em quadrinhos, lançada em 2009, o Ano da França no Brasil. Trata da vida cotidiana de uma menina de 13 anos, que vive no Rio de Janeiro e começa a entrar em contato com a realidade de sua família e sua cidade, um resumo de seu país. 

Aí nesse cenário há a beleza deslumbrante do Rio, com sua zona sul, seu mar, suas montanhas, sua gente bonita, seus personagens, como o vendedor de amendoim, o porteiro do edifício, os meninos jogando futebol, as pessoas na rua.

Mas ela também descobre a dureza da vida na favela e, nela,  os laços de afeto, as dificuldades de viver, a alegria simples, a comunhão através do samba. Nesta, Cartola recebe uma menção especial, justa homenagem. O problema racial, com sua carga de preconceito, violência e injustiça, é abordado com realismo e sensibilidade.

A apresentação de Gilberto Gil é preciosa.

Um livro belo e delicado que faz bem a brasileiros, franceses e seres humanos em geral.

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Negrinha. Jean-Christophe Camus (texto) e Olivier Tallec (aquarelas), 104 páginas. Tradução de Fernanda Abreu. Desiderata, Rio de Janeiro, 2009.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Um sopro de claridade

Jorge Adelar Finatto


Um resto de luz ilumina o pinheiro. Essa é uma das visões que se tem do Vale do Olhar, em Passo dos Ausentes.  A vista é de uma janela que não se apaga nunca, a do poeta Farandolino Brouillon. As noites de frio e neblina (isto é,  as noites do ano inteiro nessa cidade que só conhece uma estação, o inverno) sempre o encontram trabalhando na antiquíssima escrivaninha de peroba rósea. O bardo só se recolhe à cama depois que a manhã se anuncia no recorte das montanhas. Dizem que Farandolino sofre de alta solidão e falta de mulher pra dividir a vida, por isso não dorme à noite.

Don Sigofredo de Alcantis, filósofo, guardião da nossa memória e presidente vitalício da Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Geológica e Astronômica de Passo dos Ausentes, tem, como sempre, seu parecer, que assinou na tarde de domingo numa conversa com seus discípulos (nós), na Praça da Ausência:

- A mulher é talvez o único caminho que um homem tem de entrar no paraíso. A passagem luminosa. Farandolino nunca fez essa travessia. O que o move a atravessar as noites em claro, em direção às manhãs, é o medo de acabar a vida trancado no escuro de si mesmo, dentro da tapera fria e abandonada da sua alma.


Claudionor, o Anacoreta, e Palomar Boavista, o astrônomo-mor, aplaudiram de pé a explanação. Os demais permaneceram, como eu, em constrangedor silêncio. O que fazer com isso?

A vida de todos é mesmo um fundão no fundo do abismo.

Farandolino raras vezes sai de casa. Da janela do escritório, observa as brumas dos Campos de Cima do Esquecimento. Honorata Ferreira cuida da casa e dele próprio desde 1960. Ela tem 78 anos e antes de retirar-se, nos fins de tarde, deixa-lhe a mesa posta para o café noturno. Ninguém sabe o que será dele no dia em que ela não mais estiver ali.

Juan Niebla é o único confidente que Farandolino Brouillon  tem neste mundo. Músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade, Niebla costuma dizer que, enquanto houver um homem sonhando com a aurora, a escuridão não dominará.

- No dia em que a aurora não mais se levantar da  treva,  estará encerrado meu ofício de poeta - escreveu Farandolino com o negro lápis na folha branca.

O poeta lê, escreve, consulta  os cartapácios no silêncio da biblioteca, prepara e espera  o amanhecer. Por isso  a treva não se instalou completamente em Passo dos Ausentes.

- O poeta - fala com voz mansa e grave Juan Niebla - é o guardião dos nossos sonhos de beleza, enquanto espalhamos tristeza e morte por aí. Durante nossos delírios de vaidade, grandeza e inveja, eliminamos o outro. Confio que o vate  continuará a abrir o portal da cidade pra receber o amanhecer. O poeta vale e vela por nós.

Resta, ao menos, um sopro de claridade na voz da poesia.

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Fotos: J. Finatto

domingo, 21 de novembro de 2010

Abro o jornal de manhã

Jorge Adelar Finatto

Aos 54 anos, o escritor se despede "para tentar reunir os estilhaços" em que se despedaçou com o passar do tempo, na tentativa de "ver se ainda é possível recompor com eles alguma unidade". Longe dos livros - "sobretudo dos melhores" - e também das cartas, jornais, revistas, televisões, dos amigos e da própria família, Suassuna tentará livrar-se dos "sonhos, quimeras e visões às vezes até utópicas da vida e do real", que o atormentam há algum tempo. (Folha de São Paulo, 16.8.1981)


Abro o jornal de manhã
com aquela notícia: Ariano Suassuna
                                  calou-se pro mundo

o silêncio enche os corações
lota os teatros
embrenha-se entre as anotações
invade as estantes

felino
enovela-se a um canto da sala
gotejando sangue pelos ouvidos

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Poema do livro Claridade, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Um amor

Jorge Adelar Finatto


La speranza di pure rivederti
m'abbandonava.  Eugenio Montale

No mais remoto deserto
- o sal e o labirinto do tempo
amadureço o poema

E parece que para encontrar-te
tinha de perder-te um dia

Colho no caminho as pétalas
da rosa que não te dei
e distraída desfolhaste

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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Fora do poema tudo é caos

Jorge Adelar Finatto


Essa frase - fora do poema tudo é caos - me saiu numa entrevista* que dei em 1984, época em que ainda se entrevistavam poetas da aldeia na imprensa local. Os meios de comunicação se expandiram, mas os espaços para divulgação de arte e literatura, fora do interesse estritamente comercial, diminuíram tanto que tenho dúvida se existem hoje entre nós.

A entrevista versava sobre o lançamento do meu livro Claridade, de poemas, selecionado para publicação dentro do Plano Editorial  de 1983, da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Porto Alegre. Consta, na abertura da matéria, que  o autor era um jovem jornalista e poeta de 27 anos. Custo acreditar que já tive essa idade.

O tempo passa, a gente fica mais perdido, mas certas verdades permanecem. Está registrado que o poeta (aquele jovem poeta de 27) estava angustiado e perplexo "diante de uma realidade maluca, atrasada e violenta como a brasileira".

Também está escrito que os poemas falavam de uma pessoa que "experimentou na consciência e na pele a dolorosa sensação de viver uma realidade sem perspectivas. Onde o indivíduo se sente arrastado pela opressão e sonhar é quase proibido. Onde viver se tornou a maior transgressão".

Nos poemas, apesar disso, "constata-se a convivência mais harmoniosa entre linguagem e vida. O mundo silencioso onde o real e o imaginário caminham juntos. Há uma integração profunda com a aventura humana. A palavra não salvará o homem, mas será sua projeção e seu espelho. Uma espécie de testemunha de seu próprio destino".

O poeta "trabalha com o poema numa região de luz, sem concessões ao desespero e à morte, acredita na força das coisas belas, na energia positiva das pessoas capaz de gerar zonas de intensa verdade e esperança.

"A fé na existência e no amor sobressai-se como o caminho destinado a vencer o escuro e a dor. O poder transcendente da vida sobre a morte, através da dimensão do amor, transforma e eleva".

Conclui o bardo de 27: "Nunca fiz literatura pelo simples prazer de escrever, ela surgiu na minha vida como uma necessidade inarredável, quase tão vital como respirar. Eu até preferiria viver sem escrever. O grande Manuel Bandeira disse certa vez que só se sentia seguro no chão da poesia. Eu sinto isso. Fora do poema o mundo é algo incompreensível e muitas vezes insuportável. É preciso criar tudo de novo, começar a vida das cinzas, renascer. Fora do poema tudo é caos".

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Entrevista publicada no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 13.4.1984. A matéria foi feita pelo jornalista Danilo Ucha.
Foto: J. Finatto