sábado, 18 de dezembro de 2010

Calle de los suspiros

Jorge Adelar Finatto


De não ver os olhos estão vazios.
De não escutar os ouvidos estão ocos.

Um dia encontrei no mapa aquela cidade ao sul.
Nela havia uma rua chamada Calle de los Suspiros.
Um lugar que nasceu num tempo muito velho.

A rua dos suspiros está povoada de passos perdidos.
Os fantasmas ocupam as casas coloniais.
Quem mora na rua dos suspiros?

A moça na janela olha as buganvílias.
O homem que não sai de casa vê seres incorpóreos nos telhados.
A luz das luminárias é amarelo calmo.

À noite se ouve nas pedras a batida de cascos de cavalos que não existem mais.

A rua dos suspiros é um camafeu pregado na alma do tempo.

Os ventos se reúnem na calle antes de sair a galope pelo mundo.

A dor envelheceu nesta rua.
Neste lugar, todos sofrem pra dentro.

Há um salão de baile desabitado com mesas no escuro.
A orquestra foi embora carregando a música e os casais que dançavam.

A rua dos suspiros habita um retrato no oblívio.

Quem chora a essa hora na calle deserta?


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Foto: J. Finatto
Imagem de Colonia del Sacramento, Uruguai.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Cavalo-marinho

Jorge Adelar Finatto


Enquanto meu filho espera
no útero marinho da mãe
eu escrevo um poema
que ninguém lê
entre peixinhos e caravelas

invento uma alegria simples
um jeito novo de viver
e de querer bem

e vou até a janela
até a estrela mais próxima
onde algum homem há de existir
pra repartir comigo esta ternura
enquanto meu filho espera

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

Imagem: Hippocampus Kuda. Autor: Robbie Cada. Obra constituída pelo autor em domínio público. Fonte: Wikipédia.

O menino do poema, que na época esperava no útero materno entre peixinhos e caravelas, hoje completa 29 anos. Ao Lorenzo, pois, renovo estes velhos versos, com a mesma emoção daquele jovem pai  encantado pela chegada ao mundo do primeiro filho.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Partilha do estar no mundo

Jorge Adelar Finatto


As palavras viajam em torno da essência das coisas. Como num velho barco que se aproxima da ilha, e adormece na praia depois de longas voltas no seu entorno, o poeta navega no poema. As palavras tangenciam, quase tocam, mas seu destino é ficar ao largo. Às vezes mais perto, às vezes mais longe do cais. Nunca alcançamos a expressão exata e ideal daquilo que queremos comunicar. Trabalhar com palavras é deparar-se com a impossibilidade da criação perfeita, a partir dos limites da condição humana, da cognição e do sentimento incompletos que temos em relação ao mundo e a nós mesmos. Somos imperfeitos e nossa percepção e nossa fala também o são. Somos parte de um mistério infinitamente maior do que  o cotidiano. Por isso escrevemos tanto e dizemos tão pouco. Por isso falamos durante uma vida e o resultado é tão escasso.

O que não nos impede de empregar todos os esforços na busca da expressão luminosa.

 Se com palavras é difícil viver, sem elas estaríamos condenados à escuridão da caverna.

Cada palavra clara é um fósforo que se acende no breu. Uma maneira de dizer sim à partilha do estar no mundo.

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Foto: J. Finatto

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O violino perdido

Jorge Adelar Finatto


O sentimento que une o músico ao seu instrumento é de puro amor. Um amor incondicional que não conhece rupturas. Nem chuva, nem sol, nem vento. Quanto mais ao desamparo estiver o artista no mundo, tanto maior será o afeto que terá pelo companheiro. Já vi homens e mulheres dormindo em bancos de estações de trem, aeroportos e praças públicas, tendo como única e fiel companhia o seu instrumento. A música é a grande verdade de suas vidas.

O alemão Conrad Muck, 55 anos, é primeiro-violino do Quarteto Petersen, um dos mais importantes conjuntos de cordas da atualidade. Ao retornar de uma viagem à Ásia,  esqueceu seu violino no trem que o levou do aeroporto até a Gare Central de Munique. Construído na Itália em 1748, está avaliado em 1 milhão de euros. O músico sentiu-se mal assim que se deu conta, precisou de assistência médica. Tão logo avisada, a polícia saiu à procura do objeto, que foi localizado no mesmo lugar onde fora deixado. Durante uma hora violinista e violino (foto abaixo) ficaram longe um do outro, uma pequena eternidade.


A violinista Min-Jin Kym (foto ao alto), de origem sul-coreana, nascida em 1978, passou por dor muito maior no início deste mês. Comia um sanduíche num café ao lado da gare londrina de Euston, quando teve seu Stradivarius (de 1696) furtado. O fato ocorreu enquanto foi ao caixa pagar. Ao retornar, não estava mais lá. O violino tem valor estimado em 1,44 milhão de euros. Junto com ele foram subtraídos dois arcos, avaliados em 80 mil euros. A seguradora da artista está oferecendo 18 mil euros para quem fornecer informações que levem à recuperação do valioso instrumento.

Aqui em Passo dos Ausentes estamos torcendo muito para que a bela instrumentista reencontre logo seu Stradivarius,  raro integrante da família dos cerca de mil violinos  fabricados por Antonio Stradivari, em Cremona, na Itália, considerados os melhores do mundo por sua sonoridade  e qualidade únicas.

Don Sigofredo de Alcantis, o maior filósofo vivo de nossa pequena cidade, observa que, se vivo fosse, o célebre detetive inglês Sherlock Holmes, exímio violinista, certamente sairia da ficção onde viveu para recuperar o instrumento e apagar, desta forma, a tristeza do olhar de Min-Jin.*

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Texto escrito com base em notícia publicada no jornal Diário de Notícias, de Lisboa, edição de 10/12/10, e complementado com pesquisa do blog.
Consulte o artigo completo em: http://mail.terra.com.br/95trr/parse.php?redirect=aHR0cDovL2RuLnNhcG8ucHQvaW5pY2lvL2FydGVzL2ludGVyaW9yLmFzcHg/Y29udGVudF9pZD0xNzMxMzc2JnNlY2Nhbz1tJWZhc2ljYQ==

Fotos: Min-Jin Kym (Diário de Notícias). Violino italiano de Conrad Muck (AFP). Violino Stradivarius: site www.stradivariusviolins.org
 

domingo, 12 de dezembro de 2010

A fala de Pedrolino

Jorge Adelar Finatto


Pertenço à ordem dos amorosos sem camélia. Os que amaram e se pensaram amados sem o ser. Os quase. Os que saíram cedo da festa.

A dama. Meu coração perdido no infinito tabuleiro. O mundo é lugar de barbaridades. Dor, dores.

Chamava-se Alberta, Alberta de Montecalvino. Pertencia à nobre estirpe dos Albertos, de Passo dos Ausentes. Foi quando a vida aconteceu.

O sol brilhou entre as nuvens. Iluminou a escuridão da vida minha. O que eu fui.

Estava na janela da mansarda, como sempre, olhando a vida passar. Então ela atravessou a rua. Trazia a sombrinha vermelha. Olhou pra mim e sorriu. Rasgou minha solidão.

Bailei no ar como folha de plátano no outono, lentamente fui cair a seus pés. Desci correndo, pulando os degraus da escada. Segui o inefável perfume. Enfim, alcancei a dama.

Perguntei se podia fazê-la feliz. Sim.

As iluminações. Passamos a frequentar a Praça da Ausência, nas tardes amarelas daquele outono. Um dia peguei-lhe na mão. Meu coração cavalo louco. Não dormi durante três noites.

Alberta meu sentimento. Camafeu cravado na minha alma. Ela me deu o lencinho branco perfumado, a letra A bordada em lilás. Guardei-o num lugar secreto, bem no fundo de mim.

Aqueles eram dias de ora-veja.

A dama, o tabuleiro, eu nunca aprendi a jogar. Não canto outros amores, que não tive, e, se os tivesse, silenciaria.

Então Arlequim apareceu. Os ódios pularam dentro de mim. Arlequim e seus guizos, seus versos de algibeira, sua palavra sem valia, seu alaúde. Arlequim disse coisas, deitou falas, expandiu-se em canções. Antes calasse. Bazófias.

Arlequim se espalha no mundo. Faz ares. Blasona. Explorador de musas, ladrão de amores. Arrebatou o coração de Alberta, os suspiros, até o corpo de violino que eu nunca toquei.

Eu calado sonhador do fim do mundo. Os devaneios da alma. Voltei só pra mansarda. Nem acreditei.

Quem me visse, a face esculpida da dor. Veio o inverno. Invernos.

O vero solitário da rua triste. O que olha a vida da janela. O que foi quase feliz.

O sem camélia.
 
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Imagem: Pierrô (Gilles). Autor: Antoine Watteau (1684-1721). Museu do Louvre, Paris. Fonte: Wikipédia.
Maiores detalhes sobre o drama de Pedrolino em A fala do Arlequim, post de 30/10/10, e Alberta de Montecalvino, post de 8/11/10.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A casa do anjo

Jorge Adelar Finatto


Antes de começar a chover, arredaram uns móveis bem pesados lá no céu. Um barulho espesso e fundo me fez pensar que talvez fosse a mudança de um anjo. Um anjo bom e humano com suas asas de plumas perfumadas, levando seu chapéu, suas estantes de livros, bicicleta, cama, armários.

Um anjo, quando se muda, deve ter muita coisa pra levar com ele: cartapácios com registros, caderno de milagres, álbuns de fotografia das pessoas por quem tem cuidados, pinturas com paisagens dos campos do Senhor.

As roupas do anjo devem ser brancas como nuvem, inclusive as botas.

Gostava que o meu anjo da guarda viesse mais pra perto de mim.

Meu coração anda necessitado de amigo com sabedoria e consolação. Ele podia até ficar morando aqui comigo. Se quisesse, podia subir no telhado, sentar perto da chaminé, lugar calmo e iluminado, de onde se tem uma boa vista do mundo.

O meu anjo da guarda. Há de expulsar a solidão que toma assento na sala. Nunca mais nenhum mal vai me acontecer. Quando de noite o medo se acercar de mim, o anjo me dará sua mão forte. Então eu dormirei como um menino. E vou sonhar outra vez.

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Foto: Colonia del Sacramento. Uruguai. J. Finatto

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O astrônomo do farelo

Jorge Adelar Finatto


O astrônomo do farelo procura a estrela perdida.

Entre o sagrado e o profano da vida pequena, ele busca beleza nas coisas mais simples. Como o explorador de cavernas que, na escuridão e na umidade,  tateia a fresta de luz que o conduz à primeira claridade do mundo.

Um dia - sempre tem um dia - o astrônomo do farelo perdeu a  sua estrela. Era uma pequena estrela azul e brilhante. Era uma estrela risonha, íntima e calma que habitava sua alma.

Quando ele a tocava com a ponta dos dedos, muito suavemente, ouvia a doce e misteriosa música que vinha do seu interior. Um dia, de repente, ela desapareceu.

Por ela, ele se tornou um homem calado e triste.  Um oco cresceu no seu coração. Ele ficou assim, torto no mundo. Passa as noites olhando o céu. Um homem ferido a bordo de uma louca procura.

O homem que perdeu a sua estrela.
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Foto: J. Finatto
Publicado no blog em 1º/8/10