sábado, 23 de julho de 2011

Naomi Kumamoto

Jorge Adelar Finatto


A música instrumental brasileira é muita rica. Os nossos virtuoses são, em geral, inspirados e criativos. O chorinho é um gênero de música essencialmente brasileiro, tão nosso como o samba. Como tudo que é bom e verdadeiro, tornou-se universal. 

Do choro já se disse que se trata da música erudita do Brasil, pelo refinamento das construções melódicas e apuro na execução. Ao mesmo tempo, tem uma certa leveza, uma alegria de ser e de estar no mundo que cativam o ouvinte.

Estava garimpando algo novo no setor de discos instrumentais quando avistei o cd Naomi vai pro Rio. Resolvi escutar um pouco. Fiquei muito feliz com a escolha (escolher discos, como livros, é um tormento, pois cada escolha implica, também, uma perda, como em todo o resto nesta vida breve).

Impossível traduzir em palavras a música. Não sou especialista, mas um amador curioso com algumas horas de voo. O disco de Naomi Kumamoto merece ser ouvido com a calma. Com um pequeno detalhe: Naomi é japonesa, nascida em Kobe, formada em flauta na Universidade de Pedagogia de Osaka, tendo trabalhado durante anos em orquestras sinfônicas do seu país. 

Um dia Naomi descobriu o choro, num disco de Altamiro Carrilho, e apaixonou-se. Durante cinco anos estudou o gênero sozinha, ouvindo discos. Tornou-se ela própria compositora de choro. A história culminou com sua mudança para o Rio de Janeiro, onde mora desde 2004. Dedica-se a tocar seu instrumento, a flauta, compor e ensinar música, desenvolvendo parcerias com importantes músicos brasileiros. Também colabora com instituições do nosso país, como a Escola Portátil de Música, na qual leciona.


Neste disco fica claro o acerto de Naomi em vir para o mundo do choro, revelando-se compositora refinada. Cria com muito talento, muita delicadeza e emoção. O cd tem 16 músicas, sendo 13 de autoria de Naomi. Melodias belas, na tradição de Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Chiquinha Gonzaga e Heitor Villa-Lobos, entre outros.

A música dispensa fronteiras e nacionalismos. Seu único território e pátria é o coração das pessoas. Vale a pena testemunhar o encontro do choro, nascido no Brasil, com a sensibilidade e a técnica desta artista da Terra do Sol Nascente. Todos saímos ganhando com o resultado dessa união.

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Fotos: 1) Naomi Kumamoto e 2) cd da artista. Fonte: naomikumamoto.blogspot.com

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Contra as marés de melancolia

Jorge Adelar Finatto

ilustração: Clara Finatto


A chuva começou de madrugada e não parou mais. Da minha janela vi um barquinho de papel ancorado junto à calçada. Parecia inteiro e feliz. Movimentava-se de um lado para o outro ao sabor do vento.

Como forma de salvar esse dia que mais parecia um lamento, fui até o Sonhador - assim o batizei - e nele embarquei com o cuidado de não afundá-lo.

Com a ponta do guarda-chuva no chão, empurrei o barquinho para a correnteza. Sentado na minúscula embarcação, girei o leme para a esquerda. Lá fomos nós rua afora.

A cidade vista do barco é muito mais bonita.

As janelas surgem entre os postes e galhos das árvores, com suas luzes brilhando através das cortinas, formando um delicado mosaico colorido.

As luminárias da rua acendem.

Algumas pessoas param sob os guarda-chuvas e observam a nossa passagem. Outras andam de cabeça baixa e tão depressa que nada veem. De vez em quando um carro passa muito perto e joga água pra dentro do Sonhador. Retiro o excesso do fundo com uma caneca.

Navegante de pequeno curso, acostumado a enfrentar as marés de melancolia do inverno, não desanimo diante do mau tempo.

Invento um barco e saio a navegar.

A navegação em barco de papel pelas ruas da cidade, nos dias de chuva, é o melhor remédio contra a obscuridade e o tédio.

terça-feira, 19 de julho de 2011

A busca, nos livros, do ora-veja da vida

Jorge Adelar Finatto



photo: j.finatto

Na tarde chuvosa e fria, entro na livraria. A procura persistente, e vã talvez, de encontrar, nos livros, o ora-veja que falta na vida. Essa busca renova-se a cada nova obra que levamos para casa.

Escritores e poetas são seres que habitam a nossa sensibilidade. Fazem parte do que somos e do que queremos ser. Ajudam-nos a caminhar na estrada em meio a tanta treva.

Costumo levar um livro na bagagem, para diminuir o banzo e a solidão das viagens. O livro traz, em si, um pouco da casa que ficou distante. O fato de sabê-lo por perto, ao alcance da mão, no quarto de hotel, proporciona o aconchego das coisas íntimas.

Hoje os meus livros estão mais sossegados nas estantes. Mas nem sempre foi assim. Eu, que detesto mudanças de endereço, perdi a conta de quantas vezes tive de mudar de casa neste mundo de Deus.

Nunca me acostumei a esses movimentos que trocam tudo de lugar. Um sofrimento sair da casa, da rua, da cidade. No meio do caos emocional que isso traz, os livros nos acompanham, passando um sentimento de permanência.

Os livros são nossos confidentes e amigos espirituais.

domingo, 17 de julho de 2011

O pássaro em setembro

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
Esses dias invernais de austeras sombras.  Podia começar assim a crônica de hoje. Mas são leves e têm seiva estas breves linhas.

A nesga de claridade aparece entre as pesadas nuvens. Através da janela, apenas a silhueta das árvores e das montanhas se deixa perceber. A neblina estende sua fina capa no espaço.

Há dias veio a neve, espalhou o branco vestido de tule nos telhados de Passo dos Ausentes.

Precisamos atravessar longos dias de frio e exílio. Estamos à espera de que o pássaro retorne com a folha de oliveira no bico, quando setembro vier.

Por enquanto, cada um de nós sobrevive com os resíduos de uma antiga primavera.
 

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Conversa na estação

Jorge Adelar Finatto

Photo: J.Finatto

Sou como os trilhos cobertos de hera da estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. Vive em mim o sentimento das chegadas e partidas dos trens, o vai-vem humano, o sentido da transitoriedade das coisas. Digo sempre às magnólias do meu jardim: nunca esqueçam de mim. Me chamo Juan Niebla, músico de profissão. Meu instrumento é o bandoneón. Tenho 89 anos, sou cego desde os 16.

As sombras espalham suas sedas sobre mim. O pior cego, digo eu, é o que não consegue mais sonhar. Realidade sobeja desfaz a alma, empareda o coração.

À noite todas as coisas se dispersam. É quando o peso de existir se concentra em tons de solidão. Sozinho no escuro, altas horas, recordo minha mãe e o menino que eu fui. Eu mesmo acendo o fogo no fogão a lenha e preparo o café, que bebo fumegante com os biscoitos comprados na padaria de Mocita de La Vega.

Ligo o rádio elétrico na mesa da cozinha e fico escutando estações do Uruguai e Argentina. Nesse momento toca o Noturno nº 2 de Chopin, que eu amo. Nesses enquantos, convoco seres que povoam o território do oblívio: pais, irmãos, primos, primas, tios, tias, amigos, certa mulher, um perfume, pessoas que não estão mais aqui, mas é como se estivessem. Não quero deslembrar. Sou formado dessas partículas.

Muitas vozes falam através de mim e do bandoneón, a voz dos ausentes. Sim.

Habito o interior de uma pintura, dentro de um lago profundo e silencioso. Ali me sento e lembro. E sonho também. E rezo nesses confins.


Vivo tão ausente que, às vezes, passo por mim e não me reconheço. Quando estou há muitos dias desaparecido, saio a me procurar, saber o que houve, por onde andei, o que fiz, com quem falei. As ausências.

Amanhece. Estou na velha estação de trem, sentado no banco de madeira, de peroba rósea, com o bandoneón ao colo. Espero o próximo comboio. Dizem que nunca mais virá. Eu tenho fé que sim, sim, um dia chegará, e quando isto acontecer estarei aqui para receber os passageiros com música. Sou o músico da estação, fui contratado por concurso público em 1940, quando tinha 15 anos. Trabalho desde então na estação do trem de ferro. Atuo também na Banda Municipal e na Orquestra de Câmara de Passo dos Ausentes. Deus e os amigos sabem.

Photo: J.Finatto

Sou cego e minha luz vem da música. A música é a minha claridade. O ambiente à minha volta começou a perder o foco. Um dia as formas e os contornos do mundo me abandonaram. Passei a ver borrões de luz. Até que veio a escuridão completa.

Trago recordações felizes de quando enxergava. A nossa casa entre as árvores na margem do Lago da Ausência. A face da minha mãe me olhando e rindo enquanto estendia roupa no varal.

Os pássaros e os peixes, mil cores. Lembro com clareza o azul e o branco.

O frio nesta época é excessivo. Recolho-me cedo da tarde ao Café dos Ausentes, que fica na estação. Passo horas conversando com o dono do estabelecimento, Nefelindo Acquaviva. Danado inventor de aparelhos voadores, seguidamente se espatifa no chão com seus inventos. É um milagre que ainda esteja vivo. Coisas voam sem parar na cabeça do meu amigo.

Ultimamente, Nefelindo anda mais contemplativo que de costume. Eu conheço esse silêncio. Nesse estado de espírito, limita-se a navegar pelos céus de Passo dos Ausentes no seu dirigível que pode carregar até três pessoas. Eu sou um dos costumeiros e raros passageiros.

Ninguém quer pôr a vida em risco numa geringonça voadora qualquer. Eu não ligo. Embarco no pássaro-invenção do amigo. Gosto de sentir o vento batendo na cara quando sobrevoamos o Vale do Olhar em direção ao Contraforte dos Capuchinhos. Um dia ainda vamos atravessar o oceano, ele promete. Eu acredito.

Converso muito, também, com o fantasma de Heitor dos Crepúsculos, suicida arrependido que perambula pela ruas e praças de Passo dos Ausentes. Um bom sujeito, uma das tantas almas perdidas que vagam pelos Campos de Cima do Esquecimento.

No cair da noite, volto pra casa com meu capote de lã azul-marinho, meu chapéu de aba, os óculo escuros, o bandoneón que levo nas costas como mochila e a bengala de bambu cor de açúcar queimado, construída especialmente para mim pelo honorável Akira Munefusa, sensível artista e poeta que vive numa cabana na beira do Lago da Ausência.

Anoiteço outra vez.

Vou tomar café com meus fantasmas.

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Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Seu instrumento é o bandoneón. Além do posto na estação de trem abandonada, toca na Banda Municipal e na Orquestra de Câmara de Passo dos Ausentes.
Fotos: J.Finatto

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Elegia 1975


Jorge Adelar Finatto

Photos: J.Finatto


O vento não traz notícias de longe
todos foram dormir depois do vinho
só nós permanecemos incomunicáveis
debaixo das estrelas e do frio

um que outro fantasma passa
fugitivo na calçada
não perguntamos pela vida
passada ou futura
habitamos cada momento
com olhos de prisioneiros violentados

escutamos o silêncio que vem do rio
a fome imensa de liberdade
que nos anima e nos faz fortes
na tempestade que nos enlaça
nos joga contra a parede

nosso rosto parece ao de toda gente
mas trazemos segredos inviolados
noites de lobos feridos

olhamos a cidade morta
nenhum anjo nos acalanta
estamos vivos
e nunca doeu tanto

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Do livro Claridade, coedição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Secreta música

Jorge Adelar Finatto


Photo: J.Finatto


Escrever o poema
é sempre claridade
na caverna

mão estendida
a quem
não conheço

teço a canção
antes do grande
silêncio

em busca da ilha do sol
onde habitam
antiquíssimas magnólias

tudo é dádiva
e esquecimento

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Do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.