sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Passos de algodão

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto. Alziro em pessoa
 

Depois de longa e sentida ausência, ele retornou ao convívio das tardes no escritório. Conheço meu amigo de outros invernos.

Partiu em fevereiro sem dizer nada, tão ao seu estilo, e me deixou aqui todo esse tempo sem poder ouvir sua voz cava, sem poder ver sua plumagem luminosa, seus olhos redondos e espertos.

Sempre sinto falta do olhar de banda e da maneira estrambótica de aterrissar num só pé na varanda do escritório.

Alziro tem temperamento forte e, às vezes, um certo mau humor o acompanha quando o tempo está pra chuva.

Ele voltou com suas cores vivas para amenizar o inverno. Eu andava mesmo precisado de sua companhia. Não que ele converse muito, é até meio calado. No fundo, nem é isso o mais importante.

A silenciosa presença do amigo, sabê-lo perto, partilhando a vida, é motivo de consolo e esperança.

Providenciei hoje a reposição de pedaços de banana no pratinho dos pássaros, fruto mais do seu gosto.

Em certos dias, Alziro deixa a cerimônia de lado, entra no escritório, em passos de algodão, e ensaia uma pequena incursão no ambiente. Olha o teto, os lustres, a mesa, os livros, os quadros, as plantas e relógios, tudo com silenciosa atenção. Faço que não percebo para deixá-lo à vontade.

Do mesmo jeito que chega, o meu amigo sai e vai embora. Como sempre, não se despede e nem diz quando voltará, apenas alça o improvável voo adunco e parte rasgando o ar.

O que importa, diz o coração, é que a velha e boa amizade está rediviva. Se tudo der certo, talvez ele retorne amanhã ou quem sabe depois. Só espero que não me falte tão cedo, porque meu inventário de ausências já vai longo na vida.

Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.

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Texto publicado em 24 de agosto, 2010.
 jfinatto@terra.com.br

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O pintor do pôr-do-sol

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Quantos lápis de cor são necessários para pintar o pôr-do-sol? Não tenho ideia, raro leitor. Mas de uma coisa eu sei: que há uma grande arte nas mãos de quem o faz, isso há.

Estava pelo entardecer quando olhei em direção às montanhas. Aqueles traços e cores me invadiram o coração.

Na ilusão - sempre ela - de aprisionar aquele instante da luz e forma, peguei a velha Coruja e fui até a varanda do escritório fotografar. O caçador de imagens em busca de alimento.

O sol caía atrás das nuvens. Os últimos pássaros retornavam aos ninhos.

A breve hora do adeus de mais um dia.

photo: j.finatto

As imagens, sem qualquer retoque, estão aí.

O mérito de tanta beleza é de quem inventou e pinta diariamente as cores do crepúsculo. Um artista caprichoso e único. Em todos os finais de tarde senta-se diante da tela com seus lápis, pincéis e tintas e constrói os traços e as cores.

O grande artista distribui sua arte amorosamente para quem quiser ver, pobres e ricos, felizes e infelizes, bons e maus. Observadores efêmeros e privilegiados, a inefável pintura penetra fundo nosso espírito, nos sentimos parte de algo maior e mais belo.

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jfinatto@terra.com.br
 

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Vida urgente



  
Prezado Jorge,
 
Muito interessante seu texto (Sangue derramado no asfalto, 15.12.2012). Traz uma análise geral do que vemos todos os dias no trânsito. 

A Fundação, talvez por sentir a dor da perda “na pele”, nega-se a esquecer; a tornar cotidiano um fato que não é natural e que não podemos nos conformar em aceitar pacificamente. Muitos brasileiros morrem, muitas famílias são marcadas pela dor da perda súbita e violenta. Trabalhamos ininterruptamente para dizer que não queremos mais isso e que para mudar não basta “lavar o asfalto”, temos que mudar nossas atitudes, nossa postura, cobrar infraestrutura, fiscalização, educação, educação e mais educação, pois de outra forma não conseguiremos mudar a realidade e nos assusta pensar em quem poderá ser a próxima vítima. 

Acreditamos que quanto mais pessoas falando, escrevendo, comprometendo-se, incomodando-se com essa realidade, e, principalmente, mudando atitudes, mais forças teremos para escrever uma história diferente. 

Obrigada por entrar em contato.
Contamos com vocês!
Atenciosamente,
Ana Dall’Agnese
Diretora Institucional
Equipe Fundação Thiago de Moraes Gonzaga

+55 51 9161.1522
 

Fundação Thiago de Moraes Gonzaga
Rua Botafogo, 918 - Porto Alegre / RS
Fone / Fax: (51) 3231 0893
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E-mail:
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domingo, 16 de dezembro de 2012

A canção dos bambus

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto

 
Admirável aquele
cuja vida é um contínuo
relâmpago
               Matsuo Bashô

A internet perdeu-se entre as nuvens escuras e a chuva desta noite. De modo que não há como trabalhar no blog nem visitar as páginas de costume, nem conhecer novas. Não posso me comunicar com outras estações do cosmos. O mundo, em suma, acabou...

A internet saiu do ar? É preciso recomeçar das cinzas.

Estou fora da rede, estou fora do planeta, isolado no alto da Serra dos Ausentes.

Cheguei de viagem, cheguei tarde, cheguei cansado. Enquanto Porto Alegre ferve perto dos 40ºC, aqui em Passo dos Ausentes faz frio.

Exilado do universo virtual, há que reinventar o tempo.

Volto às páginas impressas do velho e bom Gutenberg. Quem sabe depois vou ligar o vetusto rádio de válvulas coloridas sobre o armário. Por ora, quero ficar quieto nesse distante canto do mundo.

Tempo faz que não vejo os pássaros na varanda do escritório. Sinto falta da silhueta das montanhas, de ouvir o silêncio que vem da profundeza do Vale do Olhar. Estou precisando muito disso. Estive fora, estive longe.

Quero escutar, a essa hora inaugural da solitude, a voz cava e harmoniosa dos sinos de bambu ao redor da casa. A música suave e íntima dos bambus. Com ela percorro caminhos interiores, saio do círculo suicida do relógio e das notícias.

Conheço o rumor das folhas dos plátanos que habita o vento.

Caminho pelo bosque de bambus com os poemas do amigo Matsuo Bashô (1644 - 1694), bardo japonês por quem tenho enorme estima. Diz ele:

Depressa se vai a primavera
Choram os pássaros e há lágrimas
nos olhos dos peixes

É preciso cultivar o nosso jardim espiritual. E nossos peixes, nossos pássaros, nossas primaveras. A vida é este campo de semear, colher e repartir. O pequeno território capaz de produzir bons frutos, belos sentimentos e bons dias.

Preciso de tempo para ouvir a voz imemorial dos bambus no vento.
 
Caminho por uma vereda no meio do bosque. Na margem, o córrego corre entre os seixos, leva dentro de si as folhas e os últimos raios do sol.
 
A noite traz o vento, o vento sopra a canção dos bambus em volta da casa, a chuva chega e molha o coração seco.

Ouçamos Bashô:

Não esqueças nunca
o gosto solitário
do orvalho
 
Ouvindo a canção dos bambus, experimento a impossível leveza.

Caminho pelo bosque e levo uma rosa na mão.

Vou visitar o amigo Bashô na beira do Lago Biwa, em Otsu, no Japão, em sua cabana atemporal, na qual vive e escreve seus haikais por toda a eternidade.

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Poemas (haikais) do livro O gosto solitário do orvalho, de Matsuo Bashô. Editora Assírio e Alvim, Lisboa, Portugal, fevereiro de 1986. Tradução de Jorge de Sousa Braga.
 

sábado, 15 de dezembro de 2012

Sangue derramado no asfalto

Jorge Adelar Finatto 

Na viagem de retorno de Porto Alegre, a visão terrível: o corpo de um homem morto, com a cabeça e o tronco para fora do veículo acidentado e o restante preso nas ferragens. A polícia rodoviária com dificuldades para fazer os curiosos saírem do local (sim, tem gente que faz questão de ver o horror).

O trânsito no Brasil está entre os que mais matam no mundo. A principal causa das mortes é o profundo desrespeito à vida. As pessoas se recusam a cumprir a lei. Na concepção deformada de grande parte dos motoristas, as regras foram feitas para os outros, para os trouxas, para os inimigos.

A sociedade brasileira vive dias de intensa submissão à violência, à criminalidade e à falta de apreço pelos valores da convivência. A ausência de limites é um desastre entre nós e o comportamento no trânsito é o retrato dessa situação.

Os outros nada significam, o que conta é eu me dar bem, levar vantagem, chegar na frente, impor-me pela agressividade, mostrar quem está em primeiro lugar. O resto não importa, o bem comum é conversa para babacas.

Impressiona como se aceita a morte violenta. A morte desnecessária, a morte trágica, não causa espanto. Faz parte do cotidiano.

Uma das providências adotadas, logo após acidentes com vítimas fatais, é a lavagem do sangue do local. Há um mal-estar diante da mancha vermelha no asfalto.

É desconfortável ver o sangue derramado no chão. É preciso lavar rápido para rápido esquecer. E não se fala mais nisso.

Faltam agentes de trânsito em número suficiente, faltam meios técnicos adequados para enfrentar o problema.

Mas falta, acima de tudo, educação por parte de quem conduz veículos. E falta, essencialmente, respeito humano.

Se cada motorista resolvesse rever sua atitude, a realidade mudaria em 24h.

Enquanto isso, medidas do governo incentivam a compra de veículos que invadem as vias públicas e aumentam o caos instalado. Não há ruas e estradas suficientes para tantos carros. O transporte coletivo de qualidade é negligenciado. O sistema de saúde - que atua além do limite - é pressionado por doenças resultantes dos acidentes.

Acidentes de trânsito que, na verdade, de acidental muito pouco têm, já que previsíveis e, na maioria dos casos, provocados por pessoas que, a rigor, não poderiam estar dirigindo.

Infelizmente, cada um de nós é uma possível vítima, um número na estatística da violência no trânsito. Resta saber apenas o dia e a hora em que vamos cair.

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jfinatto@terra.com.br

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Giorgio Morandi em Porto Alegre

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. Reprodução do estúdio de Morandi na FIC.

Uma luz silenciosa, calma e vertical verte das naturezas-mortas, flores e paisagens do pintor italiano Giorgio Morandi (1890 - 1964). Visitei a exposição do artista na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, que começou em 29 de novembro passado e irá até 24 de fevereiro de 2013.

photo: j.finatto. Vaso di fiori, 1951.

Além da exposição das obras (cerca de 40 pinturas e 15 gravuras), há um espaço reservado à reprodução, em tamanho natural, do estúdio do artista em Bolonha, cidade onde nasceu, viveu, trabalhou, amou e morreu. A estrutura utiliza painéis sobre os quais foram aplicadas as fotografias do ateliê feitas pelo fotógrafo italiano Luigi Ghirri, logo após a morte de Morandi. Há também um documentário do diretor Mario Chemelo sobre o pintor numa das salas.

O universo do artista - um dos principais nomes da pintura italiana do século XX - é habitado por coisas pequenas - vasos, garrafas, copos, flores, açucareiros, algumas casas, uma estrada branca, umas árvores, um pouco de mato. E é através da apreensão do que nessas coisas lhe interessa que a beleza dos objetos e suas cores se revelam aos olhos do observador.

photo: j.finatto. Paesaggio con strada bianca, 1941.

A grandeza da simplicidade dos temas assume relevo na construção do artista.

Só é digno de menção aquilo que participa da vida, parece nos dizer Morandi. Vale a singularidade de cada coisa apropriada pelo olhar humano do criador, não há padrões de importância plástica predeterminados.

No mínimo, no restrito, pode-se encontrar a grata revelação.

O que anima, dá vigor e brilho à vida é o modo de estar no mundo de cada ser e cada coisa na sua existência única e particular.

photo: j.finatto. Natura morta, 1945.

A figura humana não aparece na obra do artista. Isso não significa falta de interesse pelo humano. Uma ausência que terá explicação na alma profunda do criador. É sua maneira pessoal de olhar o mundo.

Giorgio Morandi gosta mesmo das naturezas-mortas e de um pouco de paisagem. Através delas ele consegue tocar a emoção das pessoas.

Aqui se encontra a travessia do invisível, a manifestação do sentimento na transcendência do olhar. É o que interessa.

Não há frieza no seu trabalho, senão uma cálida aproximação do objeto pelo silêncio, pela economia de recursos, pelo afastamento de qualquer excesso. Uma lente poderosa se apropria do objeto a partir do seu interior, deixando de lado o que não é essencial.

O calor das coisas simples. É a imagem que me vem da observação do traço deste artista paciencioso e obstinado. Em arte, chegar ao simples é o supremo desafio, a mais alta esfera, o horizonte sempre buscado que só a poucos se entrega.

Giorgio Morandi consegue penetrar na alma daquilo que pinta e traz à tona a sua intimidade. O artista extrai espírito do inanimado.

photo: Giorgio Morandi, 1960. *
Autor: Antonio Masotti
Acervo: Museu Morandi 

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A exposição Morandi no Brasil tem curadoria de Alessia Masi e Lorenza Selleri.
Museu Morandi, Bolonha, Itália:
http://www.mambo-bologna.org/en/museomorandi/
Fundação Iberê Camargo:
http://www.iberecamargo.org.br/site/default.aspx
* A foto está em forma de painel num corredor da mostra. photo: j.finatto
 

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Não escrevemos o primeiro verso

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Não escrevemos o primeiro verso
há tudo por ser dito
mas sou teimoso
insisto no jogo

quando desanimares pensa em mim
que não abandonei as ferramentas
que não dei um verso para a eternidade

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Do livro Claridade, Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

jfinatto@terra.com.br