quinta-feira, 27 de junho de 2013

A volta do barco de papel

Jorge Adelar Finatto

Velame do barco antes de se desmanchar na água.
photo: j.finatto

 
Saio a navegar no meu barco de papel pra esquecer o mundo.

Eu, quando quero dar férias à realidade, entro no barco colorido e parto em viagem pelo Guaíba.

Dessa vez reforcei a embarcação. Tomei uma folha de papel mais resistente à intempérie, fixei melhor as dobras. Levantei mais a vela-mestra. Na parte interna, coloquei utensílios mais leves.

Um forte vento sul, porém, apanhou o barco no meio do rio. Agitou as águas de tal modo que as ondas começaram a nos jogar pra cima. O pior era a queda livre na volta. O corpo ficou todo dolorido.

Pra piorar a situação, desabou uma tempestade.

Frágil, o barquinho foi se desmanchando. A vela-mestra foi a primeira peça a ruir, depois foram as outras.

Filipo, o papagaio que me acompanha nas navegações, achou que desta vez  não escaparíamos.
 
- Vamos morrer, capitán!

- Tenha fé, nobre Filipo -, disse-lhe eu. Não desanimemos numa hora dessas, amigo. As nuvens más haverão de dissipar-se.

O peixe Moisés, nosso companheiro de aventuras, nadava aflito ao lado do pequeno veleiro.

Quando o barquinho, enfim, se transformou numa pasta branca de papel, eu respirei fundo antes de afundar no Guaíba.

Mas não era dia de morrer.

A ventania, na sua fúria, nos empurrara pra perto da margem.

Ao cair no rio, a água bateu na altura da cintura. Filipo, que estava encolhido e agarrado no meu esquerdo ombro, gritou animado:

- Conseguimos, capitán!

Moisés respirou aliviado, deu um salto de felicidade e voltou para o interior do rio.

A navegação em barco de papel, amigo leitor, é uma arte.

Como toda arte, tem sua ciência e seus segredos.

O que é preciso pra navegar desse jeito? Bem pouca coisa.

Uma folha branca, lápis de cor, imaginação e um coração quase feliz.

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 Texto revisto, publicado em 20 de outubro, 2010.

terça-feira, 25 de junho de 2013

O ministro Luís Roberto Barroso e o ponto fora da curva

Lorenzo Finatto

Luís Roberto Barroso é, sem dúvida, uma das mais preparadas mentes brasileiras quando o assunto é Direito Constitucional. Advogado, autor de várias obras e artigos na área, é Professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Mestre em Direito pela “Yale Law School”; Doutor e livre-docente pela UERJ; Professor visitante da Universidade de Brasília – UnB, da Universidade de Poitiers, França, e da Universidade de Wroclaw, Polônia.
Contudo, não são das mais alvissareiras as declarações do 11º Ministro, cuja posse ocorre nesta quarta-feira, 26/6, no Supremo Tribunal Federal. Com efeito, além de ter criticado a atuação da Corte que vai passar a integrar, formada, cumpre ressaltar, por pessoas tão ou mais preparadas do que ele próprio (considerando-se, inclusive, a experiência na jurisdição envolvendo a árdua e nobre função da guarda da Constituição), Barroso adiantou, de certa forma, o seu voto no julgamento dos embargos que dizem respeito ao processo do “mensalão” (Ação Penal nº 470).
De fato, embora tenha dito, durante a sabatina do Senado, não ter ainda formado convicção a respeito dos embargos declaratórios interpostos no referido processo, para ele, o STF agiu com mais rigor do que a média ao condenar 25 réus envolvidos no maior esquema de corrupção que o país conheceu até aqui. Para ele, o Supremo Tribunal Federal teria utilizado um rigor incomum no referido julgamento: um “ponto fora da curva”, nas palavras do novel Ministro. Disse Sua Excelência:
O mensalão foi, por muitas razões, um ponto fora da curva, mas não correspondeu a um endurecimento geral do Supremo".
Além disso, Barroso afirmou que vai estudar os pontos do referido processo sobre os quais terá de se posicionar na análise dos embargos, mas ressaltou que seu voto não será determinante:
Quem vai fazer a diferença é o ministro Teori Zavascki, e não eu. Porque, nas questões em que há dificuldade, o placar está 5 a 4. Se ele aderir à posição majoritária, a minha posição não fará diferença alguma”.
Há algo dito nas entrelinhas desta fala. E caso Teori vote contra a posição majoritária como ficará a aritmética do ministro... Tais declarações não podem passar despercebidas. E preocupam, na medida em que se trata de um dos mais importantes julgamentos já realizados no Brasil, tendo significado, até o presente momento, uma virada na ideia de impunidade contra a qual a população tanto vem clamando, nas ruas, nessas últimas semanas.
Foi infeliz o ministro ao externar crítica à decisão recente da Corte, manifestando-se publicamente sobre processo em curso e sobre o qual terá de decidir em breve, contrariando, nesse sentido, a própria Lei Orgânica da Magistratura Nacional, no seu art. 36, III.

Será que o STF tornou-se o “ponto fora da curva”, senhor ministro? Só se isso significar que cumpriu exemplarmente a missão de julgar o processo em questão, desincumbindo-se com a maior dignidade do mandato popular do qual está investido na pessoa de seus integrantes.

A esperança de milhões de brasileiros é de que os “pontos fora da curva” configurem uma nova geometria na ética do país, capaz de alterar a trajetória de corrupção, mau uso de dinheiro público e impunidade, tão recorrentes em nossa história, construindo, a partir daí, quem sabe, um novo caminho. Ninguém aguenta mais, senhor ministro, a barbárie do cinismo, da indiferença e da total desconsideração em relação ao interesse público.
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Lorenzo Finatto é Advogado.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Mensagem encontrada numa garrafa 97 anos depois

Jorge Adelar Finatto 
 
photo: Dave Leander. fonte: abc News*
 

A garrafa é pequena e transparente. Foi encontrada por Dave Leander quando ele fazia um mergulho, a 9 metros de profundidade, no rio St. Clair, em Detroit, no estado americano de Michigan. O brilho do vidro chamou-lhe a atenção. Aproximou-se e observou que dentro havia um papel escrito. Trouxe a garrafa à superfície.
 
Retirou a rolha de cortiça com cuidado e pegou o documento. Na verdade, um recibo de pagamento da passagem do navio utilizado para chegar ao local, um parque em uma ilha. No verso o breve texto escrito a lápis: "Having a good time at Tashmoo." Em tradução livre, "Estamos passando bons momentos em Tashmoo". Data: 30 de junho de 1915.

A frase está assinada por Selina Pramstaller e Tillie Esper, então muito jovens. Tashmoo era o nome do parque onde elas estavam, em Harsens Island, e também o nome do navio que levava as pessoas do continente até lá. 
 
Dave Leander encontrou a garrafa em junho de 2012. Ao saber do achado, a Sociedade Histórica Harsens Flats solicitou-lhe a garrafa com o documento para fazer parte do acervo de seu museu. Marcaram para o mês que vem uma exposição com a garrafa e outros materiais que registram as viagens dos habitantes de Detroit ao parque, entre o final do século XIX e início do XX. Na ocasião, pretendem reunir no local possíveis parentes das duas jovens.

A notícia daquele dia na vida de Selina e Tillie atravessou o tempo e chegou até nós a bordo da pequena garrafa que atiraram às águas quase cem anos atrás. Poucas palavras manuscritas a lápis, que sobreviveram às autoras e trouxeram ao futuro a imagem daquele dia de sol e encantamento na ilha. Um documento mínimo e luminoso também.

A frase foi tudo que sobrou daquele dia. As seis palavras fizeram presentes a memória e a alegria de Selina e Tillie.

Quem coloca mensagem escrita dentro de uma garrafa, jogando-a ao mar, ou ao rio, alimenta a esperança de que um dia alguém a encontre e leia.

A palavra escrita, dentro e fora de garrafas, é um modo de lutar contra o esquecimento. No íntimo de cada um, o desejo de prolongar a vida no texto, de fazê-la maior, mais humana, menos frágil. Ansiamos ressuscitar nos olhos de quem lê.

As cartas, os bilhetes, as mensagens eletrônicas, os poemas, os livros, os blogues, também são maneiras de sobreviver. 

Tudo se escreve para fugir da casa do oblívio.

A palavra, ao contrário de nós humanos, permanece. É capaz de carregar por séculos  a nossa efêmera felicidade, a nossa esperança, o nosso desespero.

É tudo que fica de um dia feliz numa ilha ensolarada. Às vezes, é tudo que fica de uma vida.
 
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Message in a bottle (by Christina Ng)
http://abcnews.go.com/US/michigan-message-bottle-mystery-solved/story?id=19438661
 

sábado, 22 de junho de 2013

O calepino de Dante

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto. Venezia


O VENTO geme como um bicho malferido nas esquinas, sacode as placas na rua, portas, janelas, enlouquece os ponteiros do relógio da estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes.

Um lamento emana do interior do sino da igreja da praça.

Um cenário de filme de assombração. Aqui acontecem coisas do outro mundo.
 
Os fantasmas somos nós, habitantes dessas terras frias e invisíveis situadas nos Campos de Cima do Esquecimento.

Lá fora, a chuva molha a solidão da rua. Somos peixes no aquário, nadando de um lado para outro dentro de casa, tentando enxergar, sentir alguma coisa nesse enorme vazio. Peixes à procura de qualquer coisa mais que silêncio e oblívio. Agora que o inverno chegou.
 
Vivemos nessas remotas e íngremes alturas, no sul do continente, entre inóspitas nuvens.

Este lugar é a última estação antes do fim do mundo.

photo: jfinatto. Venezia

Os poetas sabem do que eu falo, não digo coisas inaugurais (quem me dera). Digo o trivial da humana condição e não mais do que isso: quireras.

Neste território pequenino existem coisas de espantar.

Um dia, não me lembro quando, andava eu numa fondamenta (caminho que vai à beira de um canal) distante e perdida de Veneza. Caminhava do meu jeito naquela cidade, isto é, olhando as coisas de perto por causa da difícil visão (óculos fundo de garrafa).

Naquela cidade tudo é insondável, úmido labirinto, e eu, quase cego, gosto de me perder em labirintos.

As janelas das casas daquela fondamenta, onde cheguei não sei como, tinham flores e cordas com roupas estendidas secando, mas não havia ninguém morando nelas. Uma doideira. O vento percorria o canal assobiando uma canção terna e delicada, sem começo nem fim.

Descobri, então, o vetusto casarão de uma livraria abandonada. A livraria ficava mais ou menos perto da Ponte de Rialto, no Grande Canal. Entrei lá abrindo uma porta escura e muito pesada, difícil de empurrar.

Canal veneziano. photo: j.finatto

Sentei numa cadeira de couro marrom diante de uma mesa. Ao lado um pequeno vitral amarelo e azul deixava penetrar um sopro de luz solar. Estantes repletas de livros se projetavam para o interior.

Descobri sobre a mesa um calepino de capa lilás.

Abri o caderno, quase encostando os olhos nele. Na terceira página estava escrito: Dante Alighieri, 1319. Li sem fôlego as primeiras anotações do mestre florentino.

Só então percebi do que se tratava, o tesouro que tinha em mãos: eram esboços de poemas misturados a notas de diário, rascunhos de cartas e pequenos desenhos.

A música que o vento tocava lá fora, me dei conta quase sem poder acreditar, era a Valsa dos Ausentes, de Pixinguinha.

O mundo é muito pequeno, o mundo é um suspiro.

Antes de sair da estranha livraria, guardei o calepino de Dante no fundo do meu alforje. Desde aquele insólito evento nunca mais nos separamos. Nunca antes contei esta história.

(Às vezes me pergunto se isso de fato aconteceu ou terá sido um sonho, o espírito aturdido por esses ventos andarilhos de Passo dos Ausentes, nas longas e inóspitas madrugadas.)

O calepino de Dante é o consolo que trago na vida. Quando o leio, como nessa hora longínqua, sentado na cadeira de palha diante da mesa do escritório, tomando café preto com biscoitos de polvilho, esqueço tudo de ruim.

O medo de morrer não encontra asilo nessa hora quase solene.
 
Nem tudo é solitude nesses caminhos.

Passagens luminosas habitam o breu.

Tem orquídeas e magnólias povoando o jardim lá fora. Ramos novos brotam entre as folhas secas.

Um tempo de busca-vida, este.

Esta página, notícia do invisível.
 
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Texto revisto, publicado anteriormente em 10/12/12.
 

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Primavera do Brasil (o tempo das magnólias em flor)

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto



Quem podia imaginar que a primavera do Brasil chegaria em pleno inverno!


(É bom ver o povo nas ruas, lutando pela sua primavera, em paz.)

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Jogos Olímpicos 2016:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/07/jogos-olimpicos-de-2016.html
 

terça-feira, 18 de junho de 2013

Presença

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
 
Me tens aqui lutando
com secas palavras
para iluminar a treva
que nos reúne
em torno do lume
do poema

me tens aqui solidário
beirando a primavera
beirando os trintanos
com raros bens materiais
e nenhum privilégio
de credo ou classe

às vezes louco
às vezes patético
com poucos seres humanos
pra repartir
alguma coisa

me tens aqui poeta
num país injusto e sofrido
caminhando à beira de um rio

a sujeira flutua nas águas
os pobres equilibram-se
em perigosas palafitas

me tens aqui poeta lírico
cada dia mais lúcido

como a primavera
eu invado de repente
a sala adormecida
o coração desabitado

não tenho uma saída
para os dramas
que andam por aí

sequer possuo soluções
plausíveis
para os atrapalhos
cotidianos

o que posso oferecer
e ora ofereço
é essa canção discreta
para dissipar a sombra

um braçada de flores
no inverno

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
 

segunda-feira, 17 de junho de 2013

O escolhido de Deus

Jorge Adelar Finatto

photo: Auguste Rodin. Fonte: Wikipédia

 
Paris (Novembro, 2011). Sempre penso que Deus fala através dos artistas. Acho que eles têm a missão de continuar a criação do mundo. Carregam a centelha divina capaz de revelar a beleza escondida. A iluminação do calabouço da condição humana faz parte deste desígnio.

Fui visitar o Museu Rodin. Esse homem foi um artista abençoado. As esculturas que fez em materiais difíceis como mármore e bronze são absolutamente belas. Mesmo um admirador eventual não fica indiferente diante de tanta beleza.


"A Catedral", escultura de Auguste Rodin, Museu Rodin, Paris. photo: j.finatto


Deus colocou nas mãos, no coração e na mente de Auguste Rodin (1840 - 1917)  um talento especial para esculpir, pensar e sentir o mundo - e ele soube, com muito trabalho, aproveitar a graça recebida (para nosso proveito e encanto). Chegamos a duvidar que um ser humano seja capaz de realizar tamanha obra em quantidade e qualidade. São esculturas divinas.

Eu poderia ficar na frente de um pedaço de mármore uns dez anos e, pelo que sei de mim, não sairia sequer um traço, quanto mais uma simples escultura. Rodin, no entanto, criava enquanto trabalhava diariamente na dura pedra ou no bronze, como se fosse um pedreiro erguendo uma casa.


Le Penseur (O Pensador), de Rodin. photo: J.finatto

Teve como secretário particular o então jovem poeta Rainer Maria Rilke, um dos mais importantes que o mundo conheceu, autor das Elegias de Duíno, entre outras obras. Rodin exerceu forte influência na arte do poeta, que tinha grande admiração pelo escultor. Rilke publicou uma monografia sobre Rodin em 1903.

Deus distribui talentos a todos, a cada um de um jeito. O segredo está em descobrir a capacidade que nos destinou e depois trabalhar, trabalhar e trabalhar. Dar o nosso melhor para tornar a vida menos sofrida, mais bonita, eis aí um bom projeto, nesse planeta onde tantas vezes nos sentimos exilados da luz na escuridão.
 

Le Baiser (O Beijo), de Rodin. photo: J. Finatto

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Texto revisto e acrescido de fotos; publicado anteriormente em 24/11/11.