terça-feira, 23 de julho de 2013

A breve carreira militar

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

A - este é o nome do nosso singelo personagem - foi reprovado no exame físico do Exército. Era na década de 1970, em plena ditadura militar. Alguém teve a infeliz idéia de mandar que tirasse os óculos. Depois que os retirou, passou a ouvir vozes e enxergar vultos. Aquele período de dois dias no quartel foi o tempo que durou a carreira militar de A.
 
Na verdade, ele queria ingressar na Marinha do Brasil. Os filmes de pirata e de guerra naval haviam plantado este sonho em seu imaginário. Sempre gostara de aventuras pelos mares do mundo. Mas um amigo disse-lhe que se ele se alistasse na Armada teria de permanecer pelo menos cinco anos, longe de tudo e de todos. Por mais que quisesse ser marinheiro, isso estava fora de cogitação.
 
A imagem mais marcante que guardou na memória de sua célere passagem pelo Exército foi a do encontro entre um oficial e os dispensados numa sala. O militar olhou-os com desalento. Perguntou o que achavam que deveria ser feito com eles.

A quase maioria respondeu que estava preparada para fazer o serviço militar. Era sem dúvida um pelotão de bravos. O oficial disse, então, com delicadeza, que o certo era colocá-los dentro de um caminhão e depois atirar todos dentro do Guaíba.

Houve um certo desconforto entre os intrépidos guerreiros.
 
- Vocês não servem pra nada. Vão embora antes que eu me arrependa e chame o caminhão.
 
A voltou desanimado para casa, para a insossa vida civil que o aguardava (tinha só 18 anos). Voltou sem uniforme, sem divisas, sem histórias pra contar e sobretudo sem a admiração dos amigos de rua. Voltou, enfim, como partira, apenas um cara comum, sem eira nem beira, com a vida por levar num país injusto, esculhambado e violento, sem perspectiva para gente como ele.
 

domingo, 21 de julho de 2013

Os buquinistas de Paris

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto. Catedral de Notre-Dame

Jamais me senti solitário nas margens do Sena.*
Ernest Hemingway

Um passeio interessante, em Paris, pra quem gosta de livros, é sair a pé pelas margens do Sena. Gosto de começar na altura da Notre-Dame em direção ao Museu do Louvre, com tempo para ir parando nas bancas de livros dos buquinistas (bouquinistes), os conhecidos vendedores de livros usados.

photo: j.finatto

Eles são muitos e estão instalados ao longo dos muros nas margens do rio, com suas bancas de cor verde. Dizem alguns que eles estão ali desde o século XVIII.

photo: j.finatto
 
Os alfarrabistas da beira do Sena fazem parte do cartão-postal da cidade. Seu pequeno comércio de livros velhos, cartazes e souvenirs habita a paisagem parisiense e se apresenta ao olhar atento ou distraído de qualquer pessoa, nativo ou turista. Em geral são gentis e há até aqueles que gostam de uma conversa à toa, dessas que fazem a gente se sentir em casa. Outros não toleram aproximações e censuram com veemência quem pára para tirar uma fotografia do local.

photo: j.finatto

O que se procura no buquinista? Ora, vamos ali buquinar, verbo que, no Aurélio, significa procurar livros em sebo, catar obras literárias, muitas delas fora de comércio. Uma busca que, às vezes, rende preciosidades. Um bouquin (livro) raro, talvez.

photo: j.finatto

Numa caixa encontrei e comprei um pequeno e encantador exemplar do livro Une Saison en Enfer (Uma estação no inferno), de Arthur Rimbaud, publicado em 10 de fevereiro de 1945, pela Mercure de France, trigésima primeira edição. As 90 páginas estão já um tanto amarelecidas, mas em bom estado. A capa está coberta por um delicado e fino plástico incolor. O antigo proprietário tinha um carinho especial pelo volume. Sabe-se lá as estantes que percorreu até chegar no caixote verde. Um achado.

photo: j.finatto

Por essas e por outras, vale a pena passar uma tarde na beira do Sena, sem pressa, intercalando a missão de explorador literário com um cappuccino e uma baguete, na mesa de um aconchegante café, na calçada de preferência, se não fizer muito frio.

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*Paris é uma festa. Ernest Hemingway. Tradução de Ênio Silveira. Editora Bertrand Brasil, 15ª edição, 2011, Rio de Janeiro.
Texto revisto, publicado antes em 03 de maio, 2012.
 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

A rebelião dos guarda-chuvas

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

 
Um fato incomum aconteceu em Passo dos Ausentes.

Revoltados por viver na zona sombria do esconso, os guarda-chuvas da nossa pequena aldeia reuniram-se em assembléia na Praça da Ausência. Decidiram protestar flutuando sobre os telhados do casario antigo. Depois foram-se pelo céu azul em alegre bando.


photo: j.finatto
 
O blog procurou um dos líderes do movimento, Ernesto Chuva Fina, que nos recebeu no banco da Fonte dos Esquecidos. Segundo afirmou, os conjurados deliberaram aproveitar os dias de azul profundo como esse (em pleno julho invernal), a fim de arejar o pensamento, o corpo e o espírito.
 
- A questão é simples -, disse ele: - guarda-chuva também é gente. Mas o povo só se lembra de nós nos dias maus, de relâmpago, trovoada, frio, chuvarada e ventania. Por que nunca nos fazem um agrado?

Prosseguiu Chuva Fina:

- O que custa sair com a gente num dia lindo como hoje para aproveitar a fresca e o bom tempo? Mas não. Nos dias belos nos deixam fechados, molhados, pendurados, enterrados e amargurados numa lata cilíndrica ou num cabide. Queremos um pouco de vida na nossa vida. Na verdade, queremos muito mais vida.


photo: j.finatto

E concluiu:

- Por que será que a felicidade dos outros incomoda tanto algumas pessoas?
 
A bela sombrinha Mariana Gota Dágua afirmou que não há prazo para o fim da rebelião:
 
- Por certo não queremos um prazo determinado para ser feliz. Prazo é coisa de gente rígida, impermeável, tosca, avessa às belezas e levezas da vida. Nós vamos é curtir. Enquanto houver dias azuis, ficaremos na rua. Ou mehor, nos ares e nas praças, que é onde gostamos de passear e nos divertir. Podemos ser muito engraçados e brincalhões, sabia? Temos humor, coisa que as pessoas deste lugar perderam faz tempo.


photo: j.finatto
 
E saiu flutuando a jovem Gota Dágua, reunindo-se ao bando na maior felicidade.
 
Como em grande parte do ano faz frio, chove, venta, neva e neblina aqui nos Campos de Cima do Esquecimento, os moradores estão preocupados com os desdobramentos do movimento guarda-chuval. O guarda-chuva é artigo de primeira necessidade entre nós.



photo: j.finatto
 
- Temos de nos acostumar aos novos tempos. Assim como o povo, os guarda-chuvas também resolveram parar de esperar por dias melhores e foram à luta nas ruas (e pelos ares). Eles têm seus motivos e devemos respeitar seus sentimentos, declarou ao blog Don Sigofredo de Alcantis, filósofo, presidente da Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Agnóstica,  Astronômica, Antropológica, Mística, Antropofágica, Ecológica, Pantagruélica e Artística de Passo dos Ausentes.

 E a vida segue.

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Fotos tiradas na cidade de Canela, Rio Grande do Sul, inverno 2013. 

terça-feira, 16 de julho de 2013

Postal do fim do mundo

Jorge Adelar Finatto

Vale do Olhar. photo: j.finatto


O sol mal aparece entre as nuvens nesses dias glaciais de julho em Passo dos Ausentes. Através da janela, a silhueta azulada das montanhas na profundidade do Vale do Olhar. Um cartão-postal do fim do mundo, esse lugar onde Deus descansou os pincéis, as tintas e as ferramentas, deu por encerrados os trabalhos, e pôde enfim admirar a sua maravilhosa obra.
 
O inverno abre gavetas no escritório em busca de uma luz escondida. Encontro entre os papéis um desenho antigo. É um riacho correndo sob o céu azul com pinheiros nas margens. Sentada num tronco caído, com um chapéu de palha, uma mulher pesca. Perto dela, um cachorro e uma bicicleta. Um pouco acima, uma ponte de madeira une as duas margens do córrego.

magnólia. photo: j.finatto

Há uma serena alegria na face dos personagens que habitam o retrato. Agora quase todos flutuam (invisíveis) no ar como figuras de uma pintura de Marc Chagall.

O inverno deixa a solidão das coisas a descoberto. Procuro um sopro cálido de luz nas anotações esquecidas no fundo da gaveta.

magnólias. photo: j.finatto

Ando pela casa atrás de mim, faz tempo que não me encontro.

Talvez esteja no sótão olhando o céu com o telescópio, à espreita de um habitante engraçado num planeta distante. Talvez tenha ido ao porão conversar com os fantasmas. Talvez adormeci na poltrona, afundado no grosso capote azul, diante da janela, esperando a primavera.

camélia. photo: j.finatto

Em certos dias na vida, só a presença das camélias e magnólias é fonte de alegria e inspiração.

A sagrada alegria de um jardim cultivado com mãos de afeto.
 

domingo, 14 de julho de 2013

O homem que roubou o sol

Jorge Adelar Finatto

pintura: Maria Machiavelli


Um homem de coração triste pode entristecer a vida de muita gente.
 
O sol está preso no sótão da casa do homem sem esperança.

Em uma manhã de infinita tristeza, ele ergueu os braços, apanhou o sol com as duas mãos, como se fosse uma laranja, e o levou para o trevoso lugar. Desde então, não mais o devolveu para a rua onde mora.
 
- Nunca, nunca mais vou soltar o sol -, disse a um grupo de meninos e meninas que foram até a frente de sua porta pedir a libertação do astro-rei.

- Ninguém mais vai ver a luz nem receber calor nessa rua.
 
À noite, os vizinhos observam a estranha claridade que escapa pela claraboia. Raios iridescentes giram entre si, perpassam o espaço e vão em direção ao vazio do universo.

Nenhum, no entanto, fica para iluminar aquele pequeno lugar mergulhado na sombra.
 
O homem triste tem uma pedra enorme, pesada e fria, no coração. Uma lápide com uma inscrição feita numa estranha, obscura língua que ninguém entende. Ele não consegue mais falar nem sentir.

O roubo do sol foi um ato de desespero, de revolta com coisas más que aconteceram na sua vida. Ao agir dessa maneira, privou a rua e seus habitantes de luz, alegria e esperança.
 
É preciso trazer urgentemente de volta o homem triste para o convívio da rua, antes que tudo em volta dele congele, antes que os corações sequem, antes que desapareça a vida daquele lugar.
 
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Maria Machiavelli é artista plástica em Passo dos Ausentes onde mantém ateliê e ensina, às terças e quintas, gratuitamente, técnicas de pintura. 
Texto revisto, publicado antes em 12 de setembro, 2011.  

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Basquiat, um iluminista das cores

Jorge Adelar Finatto

pintura de Basquiat. nome: Skull (caveira), 1984
fonte: Wikipédia

O raro leitor, assim como eu, não está interessado em estatísticas inúteis. Isso não nos afeta, a vida tem coisas mais urgentes e belas com que se ocupar. O que queremos é o texto e a foto que nos dêem algum prazer, uma pequena alegria.

A leitura de um blog tem que ser como a passagem por uma ilha sossegada durante o dia: um breve momento de solidão, leitura e descanso, onde nada nos incomode.

Uma coisa, porém, chama a atenção e quero compartilhar. O texto mais procurado aqui no blog, desde sempre, é aquele sobre Basquiat*, que nunca sai da coluna dos mais lidos. É disparado o que tem mais acessos, o que desperta o maior interesse nas pessoas, não só do Brasil como de outros países. Isso revela, no mínimo, o grande interesse que o artista desperta.

Um dia me impressionei com os grafites de Jean-Michel Basquiat nas ruas de Nova Yorque e, depois, com suas pinturas nas galerias. A juventude do artista, a sua temática urbana existencialista com raízes africanas, a rapidez, a angústia e a urgência de seu traço febril são algumas das características de seu trabalho que me levaram a escrever.

Jean-Michel Basquiat. photo em preto e branco.
autor: James Van Der Zee. fonte: site de Basquiat*

Ninguém consegue ficar indiferente ao seu talento, que apareceu primeiro nas ruas, com a exposição de sua arte nos muros e paredes. Não havia moldura nos grafites figurativos, a moldura era a cidade. Quando decide sair de perto da família, antes dos 20 anos, sobrevive vendendo camisetas e postais na rua, que nessa época foi sua casa. Esse tempo não durou muito: foi veloz a transição entre a pobreza e a fama, entre o nada e o reconhecimento.

O grafite, a arte humilde das ruas, passageira como os caminhantes nas calçadas, perecível ao sol, ao vento e à chuva, é, longe da pichação, a ocupação do vazio, do não-lugar, do espaço do mal, através do impulso vital que se faz lirismo e expressão, em meio à dureza da existência nas cidades. 
Basquiat foi um espírito iluminista no final do século XX, vivendo no asfalto e em seu ateliê, à sombra dos grandes edifícios, em meio a ruídos de máquinas, veículos e fumaça.

Nos seus grafites, ele promove a subjetivação do espaço público, as paredes dos prédios ganham a cor lilás, o amarelo leva sua alegria, o vermelho, sua raiva, revolta e paixão, o azul, a paz provisória, a tristeza assume mil tons.

Autorretrato, 1982. fonte: site oficial do artista**

As coisas aconteceram depressa demais na vida do artista. Morre de overdose de heroína, precocemente, em agosto de 1988, aos 27 anos. Nesse curto período, produziu muito, consagrou-se no meio artístico, foi amigo e trabalhou com Andy Warhol, namorou Madonna antes de ser famosa, e muito jovem, quase um menino, tornou-se uma celebridade.

Basquiat é um parente distante de Tintoretto, com a mesma pressa e violência da composição, e um irmão mais novo de Van Gogh, que, à semelhança do gênio holandês, libertou as cores do seu coração nas ruas da mais universal das cidades do mundo, dando-lhes sentido e sentimento.

Por tudo isso, e em homenagem à sua arte, fico contente que seja tão procurado neste modesto espaço.

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*Basquiat, anjo caído
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/11/basquiat-anjo-caido-expoe-em-paris.html
**Site oficial do artista:
http://www.basquiat.com/index-new.htm
A ortografia utilizada no blog é a atual (e antiga), que continua ainda em vigor juntamente com a norma do destrambelhado acordo ortográfico (sobre o qual já nos manifestamos).

segunda-feira, 8 de julho de 2013

O homem e o rio

Jorge Adelar Finatto

Passeio sobre prancha, no Guaíba, diante da Fundação Iberê Camargo.
photo: j.finatto
 
Devia ser eu em cima daquela prancha (stand up), deslizando sobre as águas do Guaíba na tarde de julho. Na verdade, acho que era eu. Sentia o cheiro adocicado do rio enquanto glissava de pé sobre a superfície azulada, cortando as pequenas ondas em direção ao sul.

Se não era eu, como explicar o toque do vento batendo no meu rosto, aquela sensação incrível de liberdade?

Devia ser eu, tinha de ser eu. Pelo menos era o que imaginava, sentado no café da Fundação Iberê Camargo, diante do Guaíba, no intervalo da visita que fazia às exposições de pintura.

Um sentimento de felicidade por estar ali, mergulhado naquela aquarela. A vista da cidade desde o ponto ondulante era de não esquecer.

Porto Alegre vista de uma janela da FIC
photo: j.finatto

Devia ser eu naquela prancha, orientando o remo, olhando a face fugidia da cidade.

A tarde de sol cálido convidava pra ser feliz olhando o Guaíba e seus reflexos.

Recordo do tempo em que, na altura da Usina do Gasômetro, centro de Porto Alegre, havia uma praia onde as famílias se reuniam nos fins de tarde de verão com suas esteiras e guarda-sóis coloridos.

Lembro dos dias ali vividos e de como nos banhávamos nas águas do Guaíba. Às vezes, tinha vontade de embarcar num navio e sair pelo mundo. Sim, navios de várias bandeiras entravam e saíam do porto naquele tempo.

Beira rio. photo: j.finatto
 
O homem da prancha desafia a lógica da cidade nas últimas décadas, que é ficar de costas para o rio. O homem da prancha vem nos lembrar que existe um rio e que é bom manter contato físico com suas águas. O homem da prancha desperta em nós, que estamos à margem, a vontade de deixar o rio fazer parte de nossas vidas outra vez.
 
Por isso é tão importante não perder tardes azuis de inverno. É isso que me digo enquanto olho a cidade abraçada pelo seu rio.
 
Diante do Guaíba, perto do entardecer, esse momento é um convite ao pensamento criativo, ao olhar interior, à integração com a cidade e seu ambiente, à construção de sentidos.

Viver é agora.


Árvore diante da FIC, na beira do Guaíba.
photo: j.finatto

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Iberê Camargo:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/03/ibere-camargo-e-escrita-da-solidao.html

O retrato de Iberê:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/03/o-retrato-de-ibere.html