segunda-feira, 27 de abril de 2020

Volta ao mundo num barco de papel

Jorge Finatto

Arroio Tega no Moinho da Cascata, Caxias do Sul.
photo: Nereu de Almeida, ClicRBS


O Arroio Tega passava no fundo do quintal da casa onde nasci. Entre os pinheiros e a horta, me iniciei na arte da navegação em barcos de papel, que construía com folhas de caderno escolar.
 
O Tega era uma extensão do nosso pátio e um caminho de água doce que se ia pelo mundo. Nele partiam as minhas pequenas embarcações em viagem por aquelas águas ligeiras e, então, claras.

Um dos possíveis significados da palavra tega, no italiano antigo, é pragana (barba ou fios de espigas de cereais), que ondula ao vento, acepção tão em acordo com a sinuosidade da correnteza e da vida.

Lá em casa a natureza fazia parte do dia a dia. Além de bichos comuns (na época) como galinhas, cabritas, peixes, gato, cão, havia também um macaco. E uma vez apareceu também um pingüim que o avô trouxe da praia de Torres. Apareceu lá vindo das paragens da Antártida, sabe-se lá como.

O nosso pingüim deu-se muito bem no clima temperado da serra. Gostava de ir caminhando ao lado do avô até a Praça Dante Alighieri, coração da cidade. O assunto virou destaque numa matéria especial do velho jornal Correio do Povo, numa página perdida do final da década de 1950.
 
Dos barcos de papel que soltei no Tega não sei o destino. Talvez algum tenha conseguido seguir o trajeto até o Rio das Antas, depois ao Taquari, chegando mais tarde ao Guaíba, à Lagoa dos Patos e, por fim, ao oceano. 
 
Tinha eu seis anos quando chegou a hora de dizer adeus e partir das margens do Tega. Nunca mais voltei ao arroio em que me tornei navegador.

A vida me levou por águas distantes e revoltas. Às vezes fui feliz como um peixe no Tega. Outras me senti triste e só como um capitão que perdeu a bússola e se extraviou no mapa rasgado.
 
De qualquer forma, de tanto ver o arroio passar e ir ao mundo, ganhei gosto de conhecer outros lugares e gentes. E o mundo é uma viagem de onde nunca mais se retorna.
 
Ouvi dizer que o Tega, importante patrimônio ambiental da cidade, onde brincávamos e perto do qual, nos fins de semana, as famílias colocavam mesas para as refeições e encontros, está agora poluído, quase morto. Mas ouvi, também, que estão fazendo obras de tratamento de esgoto e outros efluentes para livrá-lo da morte atroz. Bem hajam!
 
Não pode morrer o arroio que fornece água boa de pura nascente rochosa, que foi cenário inesquecível das brincadeiras de meninos e meninas antigos que ali viveram talvez os melhores dias de suas vidas. 

sábado, 25 de abril de 2020

Entre todas, a mais bela estação

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

O outono é a estação mais bela. A coleção de cores, a variedade infinita de tons, a concentração das seivas. A beleza da solidão.

Saí do "distanciamento social", imposto pelo bicho medonho, e fui fazer umas fotos. Ninguém na Praça Gustavo Langsch. Sossego, passarinho, um pouco de frio.

A vida continua viva.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Onde estás, alegria?

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto


Cada um se vira como pode pra catar alegria em dias assim tão sombrios. Eu tenho me valido das crônicas do sempre lúcido, terno e lírico Rubem Braga (1913 - 1990). Em qualquer livro, qualquer crônica,  o senhor Braga nos enche a alma de felicidade e faz esquecer a peste que assola o planeta e que, infelizmente, já fez tantas vítimas.
 
Um desses livros é "50 crônicas escolhidas", de Edições BestBolso, de 2016. Pequeno, de bolso, leva-se pra qualquer lugar, mais a leveza e o encanto. Inefável alegria poder ler um autor com tanto a dizer e de um jeito único.
 
Ouvir música também é um asseio contra o mau agouro. Descobri no YouTube uma música deliciosa de Chiquinha Gonzaga e Machado Careca, de 1895: Corta-Jaca, um maxixe. Maxixe é uma dança criada, segundo o professor Google, por afrodescendentes brasileiros (caso da própria Chiquinha, compositora e maestrina extraordinária). A interpretação - cantante, dançante e belíssima - é de Lysia Condé.
 
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Corta-jaca. Lysia Condé, YouTube:

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Fanicos e farfalhas

Jorge Finatto
 
photo de joaninha: Wikipédia. Autor: Jon Sullivan (PD-PDphoto.org]


Quem viu alguma vez uma JOANINHA caminhando na página de um livro ou sobre uma folha verde sabe do que estou falando.

É o acontecimento mais importante do universo.
 
Nenhuma literatura, nenhum cinema, nenhuma filosofia do mundo valem os passos da joaninha. Só que pouca gente percebe o engenho e a arte por trás da construção e da vida da frágil joaninha.

Existem muitos outros assuntos importantes para se tratar, está bem. Um escritor-fotógrafo a sério não devia ignorar isso. Tudo bem. O fato, contudo, é que me encanto com os farelos do mundo, com a coisa pouca ou nenhuma que somos. Com um raio de sol na parede ou caído dentro de um copo dágua sobre a mesa.

As coisas pequenas me atraem, me cativam, me elevam. As outras me enfadam, quando não revoltam. Encontro beleza e claridade nos fanicos da existência.

Tudo que é breve e pequeno se parece com ser humano e com estar vivo e ser transitório, e isso me interessa sobretudo.

Os verdadeiros e últimos sentidos habitam muito além das aparências, é assim que eu vejo. E o que eu mais enxergo, quando penso profundamente na vida, é a pequenina joaninha.

O mundo silencioso das migalhas me é, por isso, muito caro e diz muito mais sobre o que nós somos - ou o que sou eu, ao menos - do que um tratado ontológico. Quando perdemos a capacidade de expressar o que sentimos, é como se perdêssemos a vida.

Deus nos livre e guarde.

Na arte, ao menos, podemos voar, sonhar, levitar acima dos mausoléus e crematórios existenciais. Mas sei também que ninguém pode viver entre nuvens. 
 
Deve haver um caminho de passagem entre as farfalhas da vida e a copa das estrelas; entre a imensidão da Via Láctea e os passos humildes e comoventes da joaninha.
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Texto revisto, publicado antes em 25/11/2012.

sábado, 18 de abril de 2020

Incidente na Praça Maurício Cardoso

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 
VULTO NA PRAÇA. A luz amarela seria poética, não fosse o perigo dos assaltos. Um observador oculto espreita entre as buganvílias.

Quem vem lá? Difícil saber na escuridão sem trégua. A noite de domingo até podia ser romântica. Mas há indivíduos dormindo nos bancos da Praça Maurício Cardoso em Porto Alegre. Dois bêbados urinam sob a pérgula.

A cidade não tem piedade dos seres delicados. Mas há que vencer o mal com o bem. É essa a hora do menestrel, do cavalo fiel, da capa, da espada e do alaúde.

Eis que emerge da treva tremenda o Cavaleiro da Bandana Escarlate, montado no seu cavalo branco. Vem galopando desde muito longe, desde os Campos de Cima do Esquecimento, desde o fim do mundo.
 
Vem para a batalha final.

Atravessa a praça no garboso corcel de arado, cuidando aqui e ali pra não amassar as flores. Um cara passa correndo atrás de outro pela rua afora, gritando coisas impublicáveis.

O cavaleiro veste a capa de seda preta. A máscara negra não permite lhe descubram o segredo. Traz o antiquíssimo alaúde a tiracolo.

O mimoso instrumento pertenceu a um seu trisavô que veio fugido da Itália. Aqui se estabeleceu no ramo dos embutidos e depois mourejou em negócios obscuros.

O cavaleiro tem genealogia, portanto. Mas o que passou, passou.

Neste momento ele cruza pro outro lado da rua e estaciona o alvo eqüino (com trema, por favor) debaixo do balcão da Meiga Donzela Dionéia (com acento, por favor, não obstante o desprezível (des) acordo ortográfico).

O nosso herói saca com grande donaire o lustroso instrumento.

Dedilha então os primeiros acordes. A melodia acorda a Musa que, entre estremunhada, descabelada e furiosa, vai até a janela do balcão saber do que se trata. Não acredita no que vê.

- O que quereis, ó, Cavaleiro do Alaúde em Riste? - pergunta com voz sinistra. - Acaso não percebeis que altas horas são? Não vos dais conta do ridículo? Estamos em 2020, please!

E prossegue a Incontornável camena:

- Deixai-me dormir, ó, Misterioso Mascarado. Amanhã é dia de pegar no batente outra vez, voltar pra dureza inglória da vida. Retornai ao vosso castelo de areia e vento, ó, Romântico Senhor, poupai-me. Do contrário, obrigar-me-ei a chamar os homens da lei para vos untarem com rudes afagos, que é o que deveras mereceis.

O Cavaleiro da Bandana Escarlate silencia o mimoso instrumento. Baixa a cabeça. Parece não acreditar no que acaba de ouvir. Cavalgou durante dias por estradas cheias de perigos. Mais de uma vez viu-se forçado a jogar-se no matagal com o esbaforido e lácteo corcel por força de grosseiros caminhões.

Para não comprometer ainda mais o idílio, decide retirar-se. Num gesto de rara nobreza, joga uma rosa branca ao balcão. Depois ergue alto o alaúde na mão esquerda, empina o pangaré e grita:

- Eu voltarei na primavera, ó, Estressada Dionéia, Musa Minha Indomada. A rejeição é uma refeição que se come fria. Mas jamais esfriará este esgualepado coração.

Ao proferir essas sonantes palavras, escorrega do gentil animal e estatela-se na gelada calçada, magoando a triste cabeça que a escarlate bandana - agora rasgada - antes cobria.

Aos poucos recompõe-se o Nobre Cavaleiro. Junta o alaúde, apruma-se sobre o valoroso eqüídeo (nessa altura, tanto faz como tanto fez o trema) e parte no trote.

Enquanto cruza de volta a Praça Maurício Cardoso, um insensível abre a janela num edifício próximo e manda:

- Vá tomar no seu caju (aqui é suprimida a expressão original pela fruta, a fim de manter o decoro mínimo).

Assim que, sem perder a altivez, o nosso Ilustre Menestrel Medieval desaparece na noite escura da grande cidade.

Um bêbado atira uma pedra e quebra a luminária da praça. Fim.  
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Texto revisto, publicado antes no blog em 27 de abril, 2010.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

O Brasil cara a cara

Jorge Finatto

As classes média-alta e rica do Brasil descobriram, enfim, que existem pobres no país. E que esses indivíduos fazem parte daquele contingente ao qual a filosofia, as artes, as religiões e a ciência chamam de seres humanos. Descobriram que essa gente vive em péssimas condições, sem moradia digna, sem alimento, sem água tratada, sem esgoto, sem saúde, sem escola, sem emprego. Vivem de teimosos.

Foi preciso um vírus maldito para mostrar o Brasil aos brasileiros. Maldito, sim, mas democrático, porque atinge tanto em cima como embaixo da pirâmide social. Então os "bem de vida" percebem que não adianta ter dinheiro e plano de saúde, porque não terão vagas nos hospitais nem respiradores se o contágio explodir. Nem jatinho adianta, porque não tem pra onde voar, as fronteiras do mundo estão fechadas.  

O Brasil dos abastados vê que o "fique-em-casa" não funciona pra essa gente que vive à margem de tudo e literalmente (e não literariamente) não tem o que comer, se não sair à rua pra fazer um biscate. São pessoas até há pouco invisíveis para o povo de cima. E elas têm potencial de, saindo em busca da sobrevivência, contaminar-se e passar o covid-19 adiante, fazendo o já precário sistema de saúde vir abaixo. Esses seres humanos, até há pouco ignorados, não têm celular nem notebook. Nunca poderão fazer "home office" nem chamar um "delivery" pra matar a fome. Nem assistir antigas partidas de futebol, ler bons livros ou curtir belos filmes e shows em casa.

Isto sem falar dos 13 milhões de desempregados esperando desesperadamente uma oportunidade de trabalho, uma porta que se abra para voltarem a viver.

O Brasil rico defronta-se com o Brasil dos abandonados e não sabe o que fazer, porque nunca se interessou seriamente por eles.  E repete "ad nauseam" o mantra "fique-em-casa" como se isso pudesse salvá-lo em sua arca de egoísmo. Parece não se dar conta de que, para os pobres que não têm nada, e nem a quem recorrer, o mundo explodiu faz tempo, e o coronavírus é só mais um personagem na tragédia diária de um pais sem rumo  e profundamente desumano. 

sábado, 11 de abril de 2020

Pietá com véu

Jorge Finatto
 
photo: Samuel Aranda. Prêmio World Press Photo 2011
 
 
A DOR HUMANA não tem fim.
A mulher recolhe em seus braços o corpo do homem que sofre.
Pietá moderna, o véu encobre-lhe a face, mas não esconde o gesto.
Mãos de zelo amparam o sangue e a lágrima.
Tudo explode ao redor.
Esses braços re-velam a proteção consoladora, a redenção do amor humano.
Resgate da urgente ternura, templo da compaixão.
O que essas mãos salvam está muito além do que as palavras podem.
O véu já não oculta, revela.

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Texto inspirado na fotografia do espanhol Samuel Aranda.
Aranda foi o vencedor do World Press Photo 2011. Mais importante concurso mundial de fotojornalismo, a imagem escolhida foi a de uma mulher de véu integral a abraçar homem ferido durante a revolta popular no Iêmen. O resultado foi anunciado em Amsterdam pelos organizadores do evento. A  fotografia foi escolhida entre mais de 100 mil. Na edição, foram analisados  trabalhos de 5.247 profissionais de 124 países.
Fontes: Agência Lusa e jornal Expresso, Portugal.
 
Este texto publiquei em 11 de fevereiro de 2012. Reproduzo, porque mais do que nunca a compaixão e o amor  são urgentes no mundo. Estão consagrados na Ressurreição de Cristo.