Jorge Finatto
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photo: jfinatto, 20.set.2021 |
a vida de todos os dias, a que eu sempre quis {textos e imagens: Jorge Finatto}
Jorge Finatto
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photo: jfinatto, 20.set.2021 |
Jorge Finatto
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Lua e estrela. photo: jfinatto. 9/9/21 |
O tempo, às vezes, aparece, em sonho (será, talvez, um pesadelo), como um rio que corre sem parar e nos leva de arrasto com ele até uma imensa cachoeira. Um dia caímos no desconhecido que chamamos morte. Desaparecemos no sumidouro.
Carrego essa imagem recorrente que é uma metáfora do inevitável fim que nos persegue. A única hipótese de salvação é que Deus não nos esqueça e nos faça ressuscitar. Do contrário será a irremissível vitória do esquecimento sobre o milagre da vida.
Jorge Finatto
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Castelo de Gruyères, Suíça. jfinatto |
Na quarta-feira saí para dar uma volta no bairro, em Porto Alegre, levando o Gambelo a passear. Na frente de um edifício, no gramado interno, reconheci um vizinho de muitos anos que ali estava com seu cachorrinho. Percebi que lembrou de mim, ainda que de um jeito meio vago. Aproximei-me para cumprimentá-lo. Não nos víamos há mais de três anos, desde que fui morar no interior. Perguntei-lhe como estava.
Ele respondeu que estava bem e quis saber meu nome. Estranhei mas respondi. Ele então falou que conhecia outro Finatto, seu vizinho, que morava ali perto. E era juiz. Indagou se eu não o conhecia. Respondi que não, mas que também morava no bairro, naquela rua, e tinha a mesma profissão. Pensei que ele ia se dar conta. Ele ficou surpreso...
Dei-me conta de que meu vizinho de mais de 20 anos não me reconhecia mais. Está com 80 anos e aparenta boa forma física. Engenheiro, construiu muitos prédios. Era capaz de recordar quem eu era, no passado, sabendo alguns detalhes da minha vida, mas não me reconhecia no presente. Voltei pra casa desalentado.
Comentei com um médico que disse tratar-se, possivelmente, de Alzheimer. A pessoa "perde contato com a torre", disse ele, tem falta de memória, fica desorientada, não reconhece pessoas, coisas que acontecem aos vivos, ninguém está livre, etc.
Eu fiquei muito tocado com o episódio. É duro demais. Rezo pelo meu vizinho desejando que siga a vida. De qualquer forma, seja feliz com ou sem memória.
Jorge Finatto
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capa livro Viveiro, 1981 |
Jorge Finatto
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cerejeira do Japão. photo: jfinatto |
Jorge Finatto
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Obra: Totenklage, de Hermann Scherer Kunsthaus, Zurich, foto: Jfinatto |
A Rua São João, onde vivi até os seis anos, era um resumo do mundo. Tinha toda gente ali. Gente muito pobre, gente remediada, gente com algum dinheiro metida a besta. Eu morava com os avós a meio caminho entre o início e o fim da rua. Meus amigos vinham dos dois lados.
A Rua São João foi nossa ilha de Patmos, lugar humilde e esquecido. Fragmento de uma civilização da qual era apenas um minúsculo reflexo. O apóstolo, porém, vivia lá conosco e, comovido, deve ter escrito muitas histórias daquele pequeno mundo.
Jorge Finatto
photo: jfinatto |
A fúria do tempo não dá trégua e açoita os vivos. Os que são por um instante.
No alto da colina os mortos velam a cidade. Olham o Guaíba e os marinheiros que partem cedo da manhã nos cargueiros para outros mundos.
Os mortos observam a cidade do alto da colina. Não há movimento nas ruas, casas, praças, parques e edifícios. Os vivos adormecem em fundas grutas de sombras e cansaços.
Os mortos na alta colina procuram sentidos e não há mais sentidos.
Na cidade dos mortos os mortos velam os vivos.