O escritor que, em vida, teve os beijos proibidos, nem na morte pode recebê-los .
Inauguraram, no último dia 29 de novembro de 2011, o túmulo reformado do escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900), no Cemitério Père-Lachaise, em Paris. Estive no local poucos dias antes, no domingo, 20/11, e no mesmo dia escrevi aqui sobre o assunto (Visita ao cemitério).
Leio que a reforma foi financiada pela família do escritor e pelo governo da Irlanda, e contou com a execução técnica do departamento de Monumentos Históricos da França.
Em 1950, foram ali depositados os restos mortais do amigo de Wilde, Robert Ross. Em razão do homossexualismo, o escritor chegou a ser condenado a dois anos de prisão com trabalhos forçados, na Inglaterra, em 1895, fato que desestruturou sua vida e sua saúde de modo irremediável. Na prisão, escreveu o texto de natureza confessional De profundis. A terrível experiência do cárcere levou-o, também, a escrever sobre a necessidade de revisão total das condições de vida nas cadeias.
Sobre o túmulo de Wilde foi erguido, em 1912, um monumento, uma esfinge alada, pelo escultor Jacobs Epstein. O conjunto da obra foi declarado patrimônio histórico em 1997. Merlin Holland, neto do autor, e Dinny McGinley, ministro irlandês das Artes e do Patrimônio, estiveram presentes na inauguração, assim como o ator britânico Rupert Everett, intérprete de escritos do criador de O Retrato de Dorian Gray. Todos estavam muito felizes com a reforma.
A triste e asséptica novidade, contudo, é que, de agora em diante, não será mais possível beijar o túmulo, nele deixando as alegres e coloridas marcas de lábios com batom, demonstração de afeto que começou, de forma misteriosa, por volta dos anos 1990. Os responsáveis pelos trabalhos ergueram em torno do mausoléu placas de vidro de dois metros de altura para manter distantes os lábios dos admiradores.
Segundo afirmam, as marcas de batom enfeiaram o local ao longo dos anos, prejudicando o monumento, pois o conteúdo gorduroso do batom penetrou profundamente na pedra. Acreditam que os fãs de Wilde serão agora mais sensatos que apaixonados, protegendo-se, assim, melhor a memória do autor (sic).
Não acredito em proteção contra o amor.
Aliás, a humanidade anda farta de proteção desse tipo. Também não creio que possa existir maior manifestação de respeito e carinho do que beijar o túmulo de um escritor que morreu pobre e esquecido, em 1900, num quarto humilde de hotel, perto do Sena, em Paris. No lugar de proibir os beijos, poderiam ter feito diferente: criar no ambiente um espaço que acolhesse esses beijos, que os facilitasse, enquanto invulgar manifestação de carinho.
Ao invés de preocupar-se em proteger a integridade fria e monumental da pedra, deviam receber melhor esses lábios, dar-lhes o amparo que merecem.
Eles, os beijos, expressam o verdadeiro monumento imaterial a ser preservado acima de tudo, em tempos de pouco afeto e de raras manifestações de calor humano.
O escritor que em vida sofreu a proibição dos beijos não pode usufruí-los nem na morte.
Equivocam-se, na minha opinião, os familiares e reformadores do túmulo, que procuram afastar a demonstração de vida e ternura, em homenagem à aparência insípida, inodora e despida de qualquer sinal de gordura dos lábios humanos.
Poderia mesmo dizer aos meus dois leitores que estou de saco cheio de certo tipo de mentalidade, cúmplice da indiferença, do distanciamento, da ostentação e da frieza.
Pelo que conheço de Wilde, ele detestaria essa reforma que o protege do amor dos leitores. Amor que lhe foi negado em sua breve e sofrida vida.
Deus nos proteja dos nossos protetores.