quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O peixe da boca vermelha

Jorge Adelar Finatto
  photos: j.finatto
 

photo: j.finatto


A caminhada polifônica destina-se não apenas ao exercício do corpo como à indispensável atenção às coisas do espírito.

A observação dos seres vivos e da paisagem, a aproximação estética e sensorial da mãe natureza, a respiração do ar limpo e fresco das manhãs (ou tardes), na montanha, a descoberta de inefáveis epifanias durante o percurso, tudo isso faz parte da polifonia andante.
 


Andava eu nas cercanias do Lago da Neblina, em Passo dos Ausentes, prevenido com a invencível Coruja, a vetusta máquina fotográfica que me acompanha.

Os gansos desistiram de acusar a minha presença. Sabem que sou apenas um caminhante que está só de passagem, um sujeito inofensivo, que anda a bordo de um chapéu de palha branco, com grossas e estapafúrdias lentes nos óculos, catando o invisível.

Um indivíduo assim não oferece risco à fauna e à flora, quiçá a si mesmo.

Nas margens e dentro do lago existe vida pulsante. Estava eu olhando o vazio (essa maneira de encontrar, talvez, o inesperado) quando ouvi um vago rumor na água.


Foi quando me apareceu o amigo (ou amiga) dessas fotos.
 

Um peixe branco, a boca pintada de vemelho, com traços coloridos espalhados pelo corpo, cerca de 1 metro de comprimento, passou a navegar perto de mim. Tive a impressão de que sabia da sessão de fotos, ao menos não poupou poses e movimentos.

Chegou-se mais para a beira, mas não tão próximo que não pudesse ativar um plano emergencial de fuga caso isso fosse necessário. Não foi.
 
 
O peixe da boca vermelha quis dizer alguma coisa com sua presença, e acho que conseguiu. Encheu de beleza a tarde e o meu coração.



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Texto publicado em 25 de janeiro, 2011.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Ars longa, vita brevis

Jorge Adelar Finatto


pintura: Theodore Gudin

 
A obra de arte lembra a garrafa que o náufrago joga ao mar com manuscrito dentro, desde sua remota e desesperada ilha. Quer o autor que alguém recolha sua garrafa das águas revoltas e leia a urgente mensagem.

Ultimamente, tenho lido escritores que lançaram suas garrafas ao mar há muito, muito tempo. Estão já mortos em suas solitárias ilhas. Não deixa de ser comovente que os mortos continuem conversando com os vivos através dos textos que escreveram.
 
A arte é longa, a vida é breve.

Assim como os escritores, músicos e pintores também atiram garrafas ao mar por meio de suas músicas e pinturas, esperando comunicar-se.

A morte não tem o dom de matar a arte.

Litterae non dant panem. As letras não dão pão, diz o provérbio latino. O que isto importa? A nossa fome é espiritual, é de outra natureza nosso pão.
 
A obra de arte instaura uma espécie de diálogo atemporal entre os indivíduos de diferentes épocas. A criação não se submete às leis do tempo.
 
De certo modo, a arte nos reúne em torno de seu lume como a fogueira reunia os habitantes da antiga caverna em torno do fogo.
 
Por isso, não está errado dizer que para a arte só existe uma idade: a da permanência da beleza e da vida sobre todas as mortes.

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Ars longa, vita brevis. Do latim. A arte é longa, a vida é breve. Expressão utilizada por Sêneca em Sobre a brevidade da vida, citando Hipócrates.

Pintura: Theodore Gudin, França, 1802 - 1880. Fonte: Pintores famosos: http://www.pintoresfamosos.cl/obras/gudin.htm
 

sábado, 25 de agosto de 2012

A guardiã da alma e do tempo

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


A máquina de escrever é a verdadeira máquina do tempo.*
 Guillermo Cabrera Infante
  
Contigo aprendi a escutar a chuva.

Foi o que fiz, Maria, ontem, na madrugada de insônia. E me lembrei das tardes antigas em que, no inverno, me contavas histórias na velha casa de madeira e eu adormecia ouvindo a tua voz misturada na voz do vento.

No fundo do pátio, entre os plátanos, passava o Arroio Tega, fazendo rumor sobre os seixos, conversando com os canteiros da horta.

O arroio rompia desde o interior verde da mata e levava mundo afora meus barcos de papel e as folhas das árvores.

Nas águas claras a nossa vida se refletia, misturada ao azul do céu e à cor luminosa dos peixes.

O mundo era suave e leve como ninho de passarinho.

A casa se enchia com aroma de cravo, mel, açúcar queimado e  canela. Quando acordava, sobre a mesa da cozinha estavam os doces que tinhas feito.

Nunca houve um mundo mais cálido do que aquele que construías ao meu redor. Nem existiu abraço mais terno e verdadeiro no teu menino.

Tecias com tuas mãos delicadas o ofício de guardiã do tempo e da minha alma.

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* A Ninfa Inconstante, Guillermo Cabrera Infante, p. 16. Coleção Literatura Ibero-Americana, Folha de São Paulo, 2012.
 

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O escândalo das hortênsias

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


As hortênsias resolveram embelezar o mundo. Era só o que faltava.
 
Em meio a tanta desilusão, tanta feiura das almas, tanta gente má e casca grossa, vêm agora as hortênsias e decidem distribuir beleza e graça.

Um negócio muito estranho.


photo: j.finatto 

 
Um verdadeiro absurdo aqui em Passo dos Ausentes.

Quando achava que não tinha mais jeito, quando nada mais esperava diante do triste espetáculo humano, as hortênsias surgem em silêncio, espargindo cor e delicadeza sobre cinzas.

Tanta beleza é mesmo uma violência contra os cidadãos. É o fim dos tempos.

Devia ser aberto um processo contra as hortênsias por tamanho escândalo, verdadeiro atentado ao pudor. Mas ninguém faz nada.

Nem maldizer a vida em paz a gente pode agora.


photo: j.finatto

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O título podia ser A sagração da primavera, uma feliz recordação da música de Igor Stravinsky, diante da estação que se aproxima. 
Texto postado em 12/12/2011.
 

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Glauber, Guimarães Rosa, Jorge Mautner

O Cavaleiro da Bandana Escarlate

Jorge Mautner e o diretor Heitor D'Alincourt no
tapete vermelho (Foto: Cleiton Thiele/Pressphoto


Na sexta-feira, 17, ainda com olheiras e calafrios da gripe (que me derrubou por cinco dias no quarto de hotel), compareci ao cinema para o último dia do Festival de Gramado (único a que pude assistir).

Não comuniquei antes ao autor do blog o meu estado, achando que me recuperaria a tempo. Nada disso. Henriette, a gentil francesa que está em minha casa (de visita) há 25 anos (ela afirma que ainda não decidiu se ficará comigo ou se retornará a sua iluminada Paris), estranhou a ausência dos textos sobre o festival (conforme me havia comprometido no post do dia 10), subiu a serra para ver o que estava acontecendo. Me salvou.

A doce demoiselle jogou-me no banco traseiro do meu antigo Citroen (preto, com aqueles paralamas ondulados que até parecem pista de tobogã), trouxe-me de volta para o solar aqui na Praça Maurício Cardoso, onde convalesço. Coloquei as chinelas e o roupão de Marcel Proust, e entrei no espírito.

Contou-me ela (acho que gosto dessa garota mais do que pensava) que durante a penosa viagem de Gramado a Porto Alegre (o fordeco não passa dos 50 km/h) eu delirei. Era a febris maledicta falando em mim.

Segundo Henriette, conversei com seres invisíveis, entre eles Glauber Rocha. No meu delírio, o glorioso cineasta baiano assegurou que estava voltando a fazer filmes. O projeto imediato era filmar A terceira margem do rio, conto de J.G. Rosa (inventor da obra-prima universal Grande sertão: veredas).

Mas tudo não passou de um desejo inconsciente, aflorado quase in extremis.

                         *                        *                        *

O que mais gostei, nesse derradeiro dia da mostra competitiva, foi Jorge Mautner, o filho do holocausto, direção de Pedro Bial e Heitor D'Alincourt. Sempre me interessou a visão irreverente, criativa e reveladora que Mautner tem do nosso país e do nosso mundo.

De origem judaica,  seus pais emigraram para o Brasil, fugindo do holocausto. Ele nasceu a 17 de janeiro de 1941 no Rio de Janeiro. Uma parte de sua família foi morta nos campos de concentração nazistas.

Jorge Mautner é filho dessa história e daquela outra, muito mais rica e luminosa, que começa com seu nascimento no Brasil, passa pela formação em cultura tão diversa como a brasileira e continua no escritor, filósofo, músico, compositor e artista que ele se tornou.

Sua construção humana está toda marcada pela experiência existencial no cadinho chamado Brasil, onde tudo que no mundo se divide aqui se encontra, gerando uma outra coisa.

A terna babá com quem Jorge conviveu até os sete anos era ialorixá e o levava ao terreiro de candomblé, no qual o menino ouvia os batuques, via as cores, movimentos. Nunca mais esqueceu.

Mautner vê o mundo a partir do Brasil, com sua miscigenação, suas mesclas culturais, seus modos de ser e fazer, seu rico acervo de influências em todos os campos, tudo isso e mais a prática da tolerância pela necessidade de convivência com o diferente.

Jorge, presente no Palácio dos Festivais em Gramado, disse antes da projeção do filme:

Ou o mundo se brasilifica ou virará nazista.

E afirmou, também: Esse filme representa a amálgama do Brasil universal. (...) Árabes e judeus aqui são sócios.

Isto e muito mais temos a admirar neste belo documentário-documento: a revelação do que somos e do que podemos vir a ser. O filme ganhou três prêmios (Kikitos): melhos fotografia, melhor roteiro e melhor montagem, na categoria dos longas-metragens nacionais.

Estará, digo eu, no convívio de opostos e de diferentes, nessa aceitação da alteridade, na transposição para um outro estágio civilizatório a possível contribuição brasileira para um novo mundo, muito mais fraterno e humano.

Gostei do filme por tratar dessas questões de forma aberta, com esperança, sem endurecer interpretações, pelo contrário, abrindo possibilidades  para o futuro que aqui já começou, mestiço e plural, em direção ao homem e mulher solidários, nesse novo tempo no qual ansiamos viver.

Agora desligo a máquina pois Henriette me busca para sorver o caldo verde (enclave lusitano em nosso viver), sob a pérgula, no jardim. Olho para nós assim e penso que somos dois adoráveis velhinhos (espero que essa garota não volte para a França tão cedo).

domingo, 19 de agosto de 2012

Efêmera canoa

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Vista do continente parece uma figura saída de um cartão postal. Recordação de um passado distante.

Diante da cidade indiferente, atravessa lenta e quase invisível a canoa.

Nenhuma imagem é tão bela como a cidade e seu rio.

A solidão da canoa desliza na paisagem, em lenta e agonizante viagem em direção ao crepúsculo.

O homem atrás do peixe.

O pescador e o peixe à sombra da cidade cinza e desolada.

O observador, na beira do rio, alimenta a ilusão de beleza e permanência.

O olho faminto registra o calado movimento, a passagem da canoa em seu delicado itinerário.

A canoa, a cidade, o homem, o peixe e o olho habitam o efêmero momento.

Todos rumo ao oblívio.

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Porto Alegre e o Rio Guaíba. Texto revisto, publicado antes em 24, fevereiro, 2012. 

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Como esses pássaros que emergem

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto



Como esses
                     pássaros
que emergem
de remotos abismos
o poeta ressurge
no coração da ilha
                     para colher
a suma revelação



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Do livro O habitante da bruma, Jorge A. Finatto. Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

As borboletas de Fukushima

Jorge Adelar Finatto

borboleta com mutação (abaixo). Agência EFE

As borboletas que vivem nas áreas próximas à Usina Nuclear de Fukushima, no nordeste do Japão, estão sofrendo mutações genéticas.

A radiação liberada no ambiente durante o acidente ocorrido na usina, em março de 2011, em razão do terremoto e do tsunami que assolaram o país, está alterando as formas das asas e antenas das borboletas, entre outras mudanças. A notícia foi publicada no Scientific Reports desta semana.
A incidência das mutações se dá em borboletas que comem alimentos contaminados pela radiação e naquelas cujos pais já foram atingidos por alterações genéticas.

Cresce no Japão e no mundo a consciência de que precisamos partir urgentemente para o uso de energias limpas, como eólica e solar, deixando para trás a atômica e a que resulta da queima de combustíveis fósseis.

O risco de acidentes nucleares coloca em constante perigo a existência dos seres vivos em nosso planeta. Não precisa muito: um erro humano, um evento da natureza ou um desastre por qualquer motivo são suficientes para causar irreparáveis danos genéticos, quando não a extinção da vida.

As borboletas, ao natural, têm vida brevíssima, duram em média de duas a quatro semanas. Algumas mariposas vivem apenas um dia.

Além das horas que destinam a coisas prosaicas como prover suas necessidades e fugir de predadores, pouco tempo resta às borboletas para viver e ser feliz.

O tempo das borboletas de Fukushima ficou ainda menor, depois que a radiação lhes impregnou o corpo frágil. Sabe-se lá as dores que sentirão com as mutações, para não falar da decepção de se sentirem diferentes das outras.
As mutilações genéticas das borboletas dizem respeito a todos nós. A brevidade da nossa própria existência recomenda todo o cuidado possível com a vida em geral. Precisamos compartilhar com os outros seres o milagre de estar vivo.
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Sobre o tsunami no Japão em março de 2011:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/03/hokkaido-ilha-do-coracao.html

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Stefan Zweig

Jorge Adelar Finatto

Stefan Zweig. Arquivo Casa Stefan Zweig


A abertura ao público da Casa Stefan Zweig, na cidade de Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro, no mês de julho último, deve ser saudada como um importante acontecimento para o Brasil e para os leitores de todo o mundo.

Trata-se de um centro cultural e museu, no imóvel onde viveram, entre setembro de 1941 e fevereiro de 1942, o escritor de origem judaica Stefan Zweig e sua mulher Lotte, até o suicídio de ambos em 23 de fevereiro de 1942.

Apaixonado pelo Brasil, que conhecera em 1936, o autor, nascido em Viena em 1881, foi morar em Petrópolis, fugindo do nazismo e do fascismo que jogaram a Europa e o mundo num túnel de estupidez, maldade e destruição. Antes, havia vivido um período na Inglaterra e outro nos Estados Unidos. 

Entusiasmado com o novo país, escreveu Brasil, um país do futuro. A obra que deixou é extensa e plural, abrangendo vários gêneros, da poesia ao romance, passando por ensaios e memórias, entre outros escritos.

O que motivou o suicídio do casal, segundo se afirma, foi a depressão causada pelos horrores da guerra e a desesperança com o rumo da política e com o futuro da cultura de língua alemã. Sentiram-se incapazes de recomeçar um nova existência.

Há poucos dias li o livro 24 horas na vida de uma mulher¹, em que Zweig narra a história de um dia na vida de uma mulher inteligente e culta. Ela se envolve com um homem jovem que perde tudo na mesa de jogo e pensa em se matar. Trata-se de um pequeno e precioso volume de 112 páginas, em que o escritor penetra na alma dos personagens, deles extraindo a beleza, a humanidade, o êxtase e o abismo que cada um carrega dentro de si.

Diz-se que era um dos livros preferidos de Freud. Não admira que assim fosse, tal a maneira como o autor percorre os meandros da psique humana e os caminhos da criação. Em certo trecho do livro, Sweig diz aquilo que, no fundo, acho que todo escritor gostaria de dizer ao leitor:

"Foi bom poder lhe contar tudo isso: sinto-me mais leve, e quase contente... obrigada por isso."²

Ele foi amigo de grandes intelectuais de seu tempo, como o poeta belga Émile Verhaeren, seu primeiro grande mestre, Rainer Maria Rilke, Theodor Herzl, Walter Rathenau, Maxim Gorki, James Joyce, Arthur Schnitzler, Joseph Roth, Romain Rolland e Sigmund Freud, entre outros.

Para os que, como eu, pouco conhecem a obra e a vida de Stefan Zweig, recomendo uma visita ao rico site oficial da Casa³, no link indicado abaixo. Nele se tem acesso a importantes informações, imagens e textos do e sobre o escritor, como a impressionante declaração que deixou escrita a propósito do seu suicídio:


Declaração

Antes de deixar a vida, de livre vontade e juízo perfeito, uma última obrigação se me impõe: agradecer do mais íntimo a este maravilhoso país, o Brasil, que propiciou a mim e à minha obra tão boa e hospitaleira guarida. A cada dia fui aprendendo a amar mais e mais este país, e em nenhum outro lugar eu poderia ter reconstruído por completo a minha vida, justo quando o mundo de minha própria língua se acabou para mim e meu lar espiritual, a Europa, se autoaniquila.

Mas depois dos sessenta anos precisa-se de forças descomunais para começar tudo de novo. E as minhas se exauriram nestes longos anos de errância sem pátria. Assim, achei melhor encerrar, no devido tempo e de cabeça erguida, uma vida que sempre teve no trabalho intelectual a mais pura alegria, e na liberdade pessoal, o bem mais precioso sobre a terra.

Saúdo a todos os meus amigos! Que ainda possam ver a aurora após a longa noite! Eu, demasiado impaciente, vou-me embora antes.

Stefan Zweig
Petrópolis, 22. II. 1942

Trad. André Vallias


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¹ 24 horas na vida de uma mulher. Stefan Zweig. Editora L&PM, Coleção Pocket, vol. 589, Porto Alegre, 2011.
² idem, p. 106.
³Casa Stefan Zweig. Site oficial: http://www.casastefanzweig.org/sec_textos_list.php


sábado, 11 de agosto de 2012

Jorge Amado

Jorge Adelar Finatto


Nos 100 anos do nascimento de Jorge Amado, comemorados ontem, 10 de agosto, reproduzo este depoimento. Salve, Jorge.

Antes de enveredar para o Direito e depois para a magistratura, trabalhei como jornalista, após fazer a faculdade de jornalismo. Em dezembro de 1984, tive oportunidade de entrevistar Jorge Amado (1912 - 2001). A entrevista foi marcada através de carta e telefone. Na época eu escrevia sobre a vida e a obra do porto-alegrense Alvaro Moreyra (1888 - 1964).

Jorge Amado concordou em dar um depoimento. Fiquei feliz com a atenção do grande escritor baiano, que na ocasião veio a Porto Alegre autografar o romance Tocaia Grande, lançado naquele ano. Aproveitei e pedi que assinasse o exemplar do livro que havia comprado especialmente para o encontro.

A entrevista durou cerca de uma hora e meia no saguão do hotel. Zélia Gattai, sua mulher e também escritora, deixou-nos à vontade para a conversa. Naquele tempo, o casal Amado residia uma parte do ano em Paris e outra, no Brasil. Jorge gostava de modo especial do outono parisiense. Em Salvador encontrava dificuldade de escrever devido à procura dos leitores, jornalistas e mesmo turistas, que queriam conhecer a casa onde morava o criador de Gabriela, cravo e canela.

Não tenho dúvida de que o que o levou a concordar com a entrevista foi o respeito, a admiração e o carinho que nutria pelo amigo Alvaro Moreyra, cuja casa passou a frequentar desde que chegou ao Rio de Janeiro, ainda muito jovem.

Pedi-lhe que falasse, entre outros assuntos, sobre o que representou a casa de Alvaro e Eugênia Moreyra, na rua Xavier da Silveira, 99, em Copacabana, na qual o casal passou a morar a partir de 1918. Assim respondeu:

"A casa de Eugênia e Alvaro Moreyra, ali em Copacabana, é um dos centros da vida literária e cultural do país. Essa casa, na rua Xavier da Silveira, número 99, era uma espécie de estuário onde desembocavam as inquietações culturais da época, sobretudo na literatura. Ali compareciam os jovens escritores, principalmente aqueles ligados à esquerda, ao Partido Comunista, à juventude comunista (aquilo que depois foi a Aliança Nacional Libertadora). Ali vinha todo mundo. Aquela casa aberta foi minha casa naquele tempo. Para os escritores que, como eu, chegaram ao Rio no início dos anos 30 - eu tinha então dezoito anos - a convivência com Alvaro e Eugênia foi muito importante. Quase todas as noites eu ia lá. Esse convívio foi bastante intenso até por volta de 1935. Depois, com o Estado Novo, as coisas se modificaram. A atmosfera do 99 estava de acordo com a calma e a bondade de Alvaro e com a enorme energia de Eugênia, que ao lado de suas atividades como mãe de família, atriz e militante política da esquerda, encontrava tempo para fazer aqueles panelões de lentilha para alimentar os visitantes. Como Alvaro era um homem de poucos recursos, havia sempre num canto da sala uma espécie de caixa onde cada um colaborava com alguns vinténs para comprar a comida."

A imagem que guardo de Jorge Amado é a de um homem extremamente talentoso e simples, afável no trato, preocupado em preservar a memória cultural e histórica do nosso país, e mais aquela capacidade que ele tinha de ser afetivo.

O importante escritor que ele foi, é e sempre será se explica, também, pela sua grande figura humana.

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Foto: Jorge Amado. Fonte: Fundação Casa de Jorge Amado, Salvador, Bahia, site:
www.fundacaojorgeamado.com.br
Texto publicado em 12 de julho de 2010.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

40º Festival de Cinema de Gramado

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


imagem:site oficial do festival: http://festivaldegramado.net/2012/


A partir das 17h desta sexta-feira, terá início a cerimônia de abertura do 40º Festival de Cinema de Gramado, na Rua Coberta (só para pedestres), ao lado da praça central da cidade. A programação oficial começa às 19h com a exibição do longa "360", de Fernando Meirelles, que conta nove histórias inter-relacionadas que retratam os relacionamentos no século 21. Meirelles estará presente. O Fazedor de Auroras, como sempre acontece, fará a cobertura (resumida) do evento, que se estende até 18 agosto. Esta edição terá como homenageados a atriz Beth Faria, com o Troféu Oscarito; o jornalista e cineasta Arnaldo Jabor, com o Troféu Eduardo Abelin; o cineasta argentino Juan José Campanella receberá o Kikito de Cristal. Ele dirigiu, entre outros, O Segredo de seus olhos, premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro, em 2010. Além disso, em 2002, seu filme El hijo de la novia conquistou três kikitos em Gramado. A atriz Eva Wilma receberá o troféu Cidade de Gramado.


Quem diz que a ficção exagera nas cores é porque ainda não reparou bem na realidade.

Nenhum filme, nenhum livro, nenhuma peça de teatro, nenhuma música, nada ousa mais em matéria de imaginação do que a realidade.

Querem um exemplo? Na chegada à cidade Gramado, vindo por Nova Petrópolis, um pouco antes do pórtico, existe um motel localizado bem ao lado de um pequeno e antigo cemitério. Ambos estão quase na beira da estrada, chamam a atenção de quem passa. Morte e vida, êxtase e frieza, silêncio e delírio, a poucos passos uns dos outros. A quantas metáforas isto se presta? Não parece coisa de filme?

Mais um vez, a convite do blog, estou aqui para escrever sobre o festival. Sinto que este ano promete mais do que os anteriores. Acho que a nova administração do evento tem qualificação para fazer um belo trabalho, sem demérito aos que os antecederam.

Henriette, amiga francesa que está passando um tempo no meu modesto solar da Praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre, me fez prometer que não cometerei nenhuma loucurra durante minha estada no festival. Ela está traduzindo um livro de autor gaúcho para o francês e preferiu ficar por lá trabalhando.

Por loucura entenda-se fumar meu charuto e beber meu vinho, em sossego, a despeito da proibição do meu esculápio. O farei escondido, certamente, porque o que os olhos do médico não veem o corpo do paciente não sente.

Estou aqui no quarto de hotel desde quarta-feira, a janela virada para o Vale do Quilombo. Faz pouco vi duas araras azuis voando entre os pinheiros. Dizem que ainda vai esfriar muito. Na dúvida, trouxe a velha manta, o boné e o capote.

Trago comigo o alaúde para tocar nas longas madrugadas serranas. Trouxe também, no bornal, para reler, A longa viagem de prazer, do uruguaio Juan José Morosoli; a edição 11 da revista Serrote,Niels Lyhne, do dinamarquês Jens Peter Jacobsen, livro muito amado por Rainer Maria Rilke.

(Há pouco ouvi passos no corredor do hotel. Esses passos tinham uma voz, essa voz tinha um certo timbre. Podia ser ela, pensei, a eterna diva Beth Faria, uma das homenageadas deste ano. O coração galopou em meu peito. Não sei o que será de mim se encontrá-la por aí. Talvez seja melhor evitar.)
  
Sou alguém que vai à sala de cinema pela necessidade de conhecer um olhar diferente sobre a vida, algo além da vidinha sufocante de todos os dias. Por isso estou aqui, para encontrar essa espécie de felicidade e tentar expressá-la ao raro leitor.

Nos cafés, ruas, lobbys de hotéis só se fala na tela grande.

A cidade está no clima e o Palácio dos Festivais aguarda o primeiro jorro de luz no escuro.

photo: j.finatto


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O Cavaleiro da Bandana Escarlate escreve sobre o Festival de Cinema de Gramado todos os anos, no mês de agosto, no blog.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Vestígios de vida no planeta Terra

Jorge Adelar Finatto


Curiosity. Imagem: Nasa tv


Curiosity, o simpático veículo-robô que parece carrinho de brinquedo, percorrerá durante dois anos o solo de Marte atrás de vestígios de vida naquele planeta. A geringonça da NASA chegou lá na última segunda-feira, 06 de agosto, às 02h32min (hora de Brasília), provocando euforia e alívio entre os responsáveis pelo projeto.

Os cientistas da agência espacial norte-americana têm motivo para alegrar-se. Afinal, Curiosity é o primeiro laboratório de ciência móvel instalado em outro planeta. Ele aterrissou ao sul de Marte, perto do sopé de uma montanha, no interior da cratera de Gale, depois de viajar cerca de 570 milhões de quilômetros desde a Terra até o Planeta Vermelho. A viagem iniciou em 26 de novembro de 2011.

Sou, contudo, mais ambicioso. Ficaria bem mais feliz se uma estrovenga como essa saísse pelo nosso planeta à procura de vestígios de vida aqui mesmo, nas nossas cidades, campos, florestas, rios, lagos, oceanos e ares da Terra

A coisa devia sair por aí salvando as vidas que encontrasse pelo caminho, começando pela vida humana, tão malbaratada, sem esquecer das plantas e animais, seres, como nós, em risco de extermínio.

A esta coisa poderíamos dar o nome Humanity, ou simplesmente Gente, em bom e claro português.

Com a missão de preservar e salvar vidas, todos os esforços seriam empregados em resgatar os famintos de comida e de afeto, os consumidos na humilhação e no abandono, os sobreviventes da criminalidade e das guerras, os que não capitularam diante da corrupção que esfola os pobres para dar aos ricos (prática tão em voga no Brasil).

As pessoas assim salvas teriam, pra começar, direito a uma noite de sono bom, numa cama limpa e segura, com a fome saciada e a certeza de um novo amanhecer neste Planeta Azul, tão escasso de alegria e esperança, com a promessa de ter, daí em diante, uma vida digna.
 

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O impossível voo de Francisco Orange, neto de Francisca Hände von Guter Geburt, parteira, viúva e vidente, em direção a Lisboa, de onde nunca mais voltou nem mandou notícias

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. Última imagem do balão Terra dos Ausentes


O nome é misterioso e distante como os pensamentos do personagem desta insólita história: Francisco Orange Junge Mit Flügeln dos Santos Passos. Era um dos loucos da cidade.

Em Passo dos Ausentes, a palavra louco foi expulsa dos dicionários. Não é pronunciada em respeito a ilustres antepassados e a alguns dos atuais habitantes. Para o Dr. Fredolino Lancaster, médico, 92 anos,

- A expressão deve ser evitada. As palavras têm fio, são capazes de rasgar mesmo tecidos mais rijos, reabrem velhas feridas. Chamar alguém de doido, em Passo dos Ausentes, é rematada indelicadeza, uma leviana redução do outro.

- Digamos que temos aqui temperamentos sensíveis, insondáveis, determinados, brilhantes às vezes, herança de séculos de isolamento neste lugar.

- O oblívio e a solidão produzem seus frutos.

Francisco Orange passou a infância calado, morando com a avó no Sobrado dos Espelhos. Como se recusasse a conviver com outras pessoas, aprendeu a ler, escrever e fazer contas em casa. A adolescência encontrou-o fazendo projetos e construindo coisas que voam. Primeiro foram as pandorgas, as maiores e mais bonitas que iluminaram o céu da cidade.

Depois vieram as minúsculas e coloridas borboletas de papel de seda. No início de maio, costumava jogá-las do alto da torre do relógio, em número tal que se espalhavam um pouco por toda a cidade.

Nefelindo Acquaviva, construtor de aeroplanos, dirigíveis e balões de fundo de quintal, com vários desastres no currículo, convidou o jovem para aprender a arte da navegação pelo ar. Daí em diante iniciou-se uma longa parceria entre o rapaz incomunicável e o mentor doidivanas. Vários aparelhos foram construídos pelos dois. Pilotados por Acquaviva, todos vieram ao chão, sendo um mistério que a morte não o tenha colhido depois das quedas.

Aos vinte anos, Francisco Orange construiu um primeiro e pequeno dirigível, que deixou o mestre orgulhoso. Com a geringonça, aventurou-se aos ares até desaparecer nas alturas e lonjuras das montanhas azuis dos Campos de Cima do Esquecimento no frio de julho. Não retornou. Uma expedição de busca foi organizada na Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Musical, Geológica, Astronômica e Antropológica de Passo dos Ausentes, por iniciativa de seu presidente, o filósofo Don Sigofredo de Alcantis.

A expedição encontrou o navegante dez dias depois, no Contraforte dos Capuchinhos, magro, esquálido, enrodilhado no alto de ciprestes, a poucos metros de um penhasco. O arvorista Guilherme Tadeus Baum salvou-o, utilizando um complicado sistema de cordas e polias, momentos antes do dirigível afundar no abismo.

Acostumado a terríveis desastres com suas estrovengas voadoras, Acquaviva sentiu orgulho mais uma vez do discípulo.

- É o modo que ele encontrou de ser feliz, quer ficar mais perto dos anjos talvez. Deixem o Francisco em paz. Deus sabe o que faz. Ele tem a proteção de São Francisco. Nasceu com duas asinhas azuis sobre os ombros. Sempre soube que o menino ia voar um dia - disse a octogenária Francisca Hände von Guter Geburt, parteira, viúva e vidente, que criou o neto na ausência dos pais. 

Juan Niebla, músico cego, tocador de bandoneón na estação de trem abandonada, observador atento das histórias da cidade, relata o último voo de Francisco Orange.

- Era uma manhã de novembro de 1975, os ventos de finados andavam loucos por aí. Francisco Orange tinha então 25 anos, batizou o balão de Terra dos Ausentes. Disse que ia embora para Portugal, de onde viera o trisavô materno. De nada adiantaram os apelos da avó e dos vizinhos. Decolou do quintal ao lado do galpão de Acquaviva, sumiu em direção ao litoral. Não mais se soube dele até o dia em que o nosso astrônomo, Palomar Boavista, pesquisando na Biblioteca Pública de Porto Alegre, deparou-se com aquela notícia do Correio do Povo, gerada pela France-Presse.

- A foto de um balão amarelo caído no Terreiro do Paço, em Lisboa, à margem do Tejo, com aquele homem magro, vestindo mastigada roupa preta, com barba abundante e olhos fundos, não deixava dúvida. Ali estava o jovem com asas de Passo dos Ausentes. O aparelho - o que restou dele - foi recolhido pelas autoridades. O insólito viajante teve de explicar-se.

- No dia em que partiu de Passo dos Ausentes, os tristes ventos de novembro o empurraram rapidamente para o Oceano Atlântico. Doze dias depois uma tempestade o derrubou em Cabo Verde. Sobreviveu por milagre. Com o auxílio da marinha daquele país, após um ano de trabalho consertou a nave e levantou âncora. Cinco dias mais tarde, foi colhido pelo mau tempo em pleno deserto do Saara, no sul do Marrocos, vindo a cair outra vez. Ajudado por beduínos, sobreviveu de novo. Ficou dois anos no deserto com aquela tribo até levantar voo para Portugal.

- As pessoas do deserto foram as melhores que conheci na vida, declarou. Não se sentia tão só entre elas. Não sabia o que seria feito de sua vida. O informe terminou aí.

- A esperança de que Francisco Orange volte um dia para casa com seu solitário balão vai se dissipando com o passar dos anos. Nunca mais tivemos notícia do nosso menino com asas.


domingo, 5 de agosto de 2012

A rua antiga me atravessa

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto.Colonia del Sacramento, Uruguai


A vida se esconde na rua antiga.
A saudade mora aqui desde muito antes do mundo ser inventado.
Os passos dos habitantes se ouvem na longínqua estrela.
Quem nos vê, quem nos vale nesse labirinto?
A vida inteira no postigo.
Tantas coisas eu sonho.
Tantas coisas eu sinto.
As pedras da rua antiga são diamantes do oblívio.
O tempo nela escorre feito lágrima.
Ninguém vê essa cicatriz aberta na face do planeta.
Calado observador do fim do mundo.
A rua antiga me atravessa.


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Texto publicado em 28 de maio, 2011.

sábado, 4 de agosto de 2012

Cais

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Tem dias em que saímos
com o corpo nu
para alojá-lo na primeira copa de árvore
e chorar longe dos homens

dias em que os desejos
até os mais secretos
sucumbem apagados
na penumbra

tempo de total privação
da carne e do sonho
tardes em silêncio reveladas
intervalo entre dois mundos

olhamos o céu
no quadrado da janela
esperando ver a face de Deus
procuramos Deus
no íntimo da alma e das coisas
precisamos repousar no colo de Deus
sentir suas mãos nos olhos
para amparar a lágrima quente
que por ali verte

tem dias em que estranhamos
o próprio olhar
que amanheceu mais seco
não reconhecemos a rua
onde tantas vezes inventamos o amor
na sombra dos cinamomos

as melhores viagens
ficaram sonhando no cais
enquanto navios partiam
repletos de homens decididos
em busca de cidades felizes

onde andará o menino
que nos visitava nos dias
em que tudo em volta
parecia desabar?

em que gare deserta
perdeu-se o guarda-chuva melancólico
com que meu avô ia à cidade
buscar a porção diária de pão
esperança
e jornal?

tem manhãs em que apesar do sol
não habitamos o claro sentido
de existir
mal percebemos a luz
acalentando o corpo

manhãs em que o carteiro
extravia a carta que irá nos salvar
a notícia tão esperada
que nos revelará
um mundo desconhecido
onde pandorgas falam
e o arco-íris é uma escada
que nos retira do poço

não compreendemos
as mãos cansadas
a boca amarga
com que damos bom-dia aos vizinhos
cumprimentamos os superiores

tem dias em que o isolamento
é tão assombroso
que sentimos tristeza em tudo
principalmente na alegria ingênua
das velhas fotografias
uma dor inevitável
diante dos sonhos da infância

dormimos em quartos de aluguel
projetamos ataúdes de aluguel
as dívidas invadem a porta
os poros

o amanhã ficou torto
na cordilheira dos dias
sem luz

a cidade parou no escuro
sufocou nossos melhores anos
inundou o rio
com seus maus óleos
seu excremento

não merece um verso
sequer uma notícia fugidia
em página de jornal

talvez careça uma bomba
um terremoto
talvez uma flor
povoando o asfalto

estamos um pouco mais tristes
e calados
(um pouso só)

trazemos um gosto de sol
entre os dentes
um resíduo de primavera
na palma da mão
uma promessa de encontro
nos olhos

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Do livro O Fazedor de Auroras, Jorge A. Finatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
photo: Cais de Porto Alegre, j.finatto