sábado, 6 de março de 2010

Johnny Alf e a brisa

Jorge Adelar Finatto


Entre nós e a maravilha, há o trabalho silencioso de homens e mulheres na arte.

São pessoas que entram na nossa sensibilidade, tocam fundo a nossa emoção e o nosso pensamento.

De Cenair Maicá a Chopin, de Heitor Saldanha e Jorge Luis Borges, muitos desses criadores andam comigo nas duras ruas do cotidiano, todos fazem parte da família espiritual que me ilumina.

O pianista, compositor e cantor Johnny Alf era um desses seres especiais.

Morreu na quinta-feira, 04 de março, aos 80 anos, de câncer de próstata, em Santo André, na região do ABC paulista. Nascido em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, de família muito pobre, acabou se tornando um dos precursores e criadores da Bossa Nova, movimento que projetou mundialmente a música brasileira a partir dos anos 50 do século passado.

Alf construiu uma obra absolutamente original. Compôs obras-primas como Eu e a brisa, Ilusão à toa, Céu e mar, Olhos Negros, Fim de semana em Eldorado, Rapaz de bem, entre tantas outras. Foi o delicado inventor de harmonias raras, sofisticadas, inesquecíveis.

Não existe um continuador para  a obra de Johnny Alf . O seu modo único de criar e cantar termina com ele.

A experiência estética de Alf resulta da combinação de gêneros como samba, samba-canção e jazz. Foi cultuado pelos grandes nomes da Bossa Nova como Tom Jobim, João Gilberto e Newton Mendonça, que acompanhavam suas apresentações na boate Plaza, em Copacabana, entre 1953 e 1954. Menores de idade, Carlos Lyra, Roberto Menescal e Luís Carlos Vinhas assistiam clandestinamente aos concertos de Alf na boate.

Entre as suas influências, estão os americanos Nat King Cole e Sarah Vaughan.

Um homem muito tímido, humilde e gentil. Era preciso fazer silêncio para ouvi-lo falar.

O seu talento ainda não foi reconhecido como devia. Não tinha queixas, era uma pessoa nobre.

Dizem que os grandes artistas vêm ao mundo continuar a obra de Deus.

Alfredo José da Silva, o nosso Johnny Alf, com certeza foi um desses escolhidos.

Se prestarmos atenção na brisa, provavelmente ouviremos ao longe a voz cálida e suave de Johnny Alf.


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Foto de Johnny Alf. Divulgação do show realizado pelo artista no Sesc Vila Mariana, São Paulo, 2009. Fonte: site do jornal O Estado de São Paulo.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Cartas perdidas

Jorge Adelar Finatto 


O que acontece quando uma carta não chega ao destinatário? Em que misteriosos desvãos se perdem essas correspondências que não encontraram seus legítimos donos?

A comunicação postal faz parte da vida humana. Um mundo sem cartas e sem correio é algo sombrio.

A livre expressão do pensamento, nas cartas, é vista como perigosa pelos estados autoritários. As ditaduras limitam e, não raro, suprimem a liberdade de correspondência.

Esse direito está assegurado no art. XII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e, no Brasil, pela Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XII).

As cartas e o correio estão na origem da civilização. Os mensageiros sempre existiram. Relatos bíblicos contêm referências expressas a respeito deles, como se vê no livro de Jeremias 51:31  (escrito no ano 580 antes de Cristo) e no livro de Ester 3:13 (escrito por volta de 475 a.C.)

Com o advento da internet, o correio tornou-se lento no que diz com a troca de mensagens. Mas o velho sistema persiste, entre outras razões, porque o modo de tratar dos assuntos nas cartas é muito diferente daquele do e-mail, por exemplo. Além disso, o correio permite a remessa física de documentos e objetos.

Voltemos. O descaminho de uma correspondência pode mudar a vida de uma pessoa. O raro leitor não acredita?

Pois foi isso mesmo que aconteceu com o médico norte-americano Royal Ellwood Durham.

O fato só veio à tona em fevereiro de 1987. O correio dos Estados Unidos entregou-lhe, naquela ocasião, dois pacotes com data de 1917. Portanto, com 70 anos de atraso…

O Dr. Ellwood Durham tinha então 92 anos e vivia num asilo na localidade de Linwood, Nova Jersey (nordeste dos EUA).

A correspondência atrasada continha dois documentos assinados pelo ex-presidente dos Estados Unidos Thomas Woodrow Wilson. O primeiro deles consistia na nomeação de Durham para o posto de primeiro-tenente da seção médica do corpo de oficiais da reserva da Marinha americana, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O segundo nomeava-o médico do Jefferson Medical College.

Os pacotes chegaram misteriosamente ao hospital episcopal da Filadélfia, Pensilvânia (costa leste dos EUA), no dia 04 de fevereiro de 1987. Naquele hospital o velho médico havia trabalhado entre 1916 e 1917. Dali foram remetidos para o asilo.

Durham surpreendeu-se, como não podia deixar de ser. Custou acreditar no que via. Ignorava que uma vez o presidente dos Estados Unidos havia se ocupado dele, decidindo coisas importantes a seu respeito.

O médico soube, então, que entre a vida que foi e a que poderia ter sido havia uma correspondência extraviada. Dois documentos que se perderam no caminho, e só encontrariam o destinatário sete décadas depois, quase centenário, enredado nos escaninhos da memória.

As armadilhas do correio e do tempo não conseguiram extraviar o bom humor de Durham. Ao ler o conteúdo dos documentos, comentou: “Isso é uma coisa extraordinária, depois de tanto tempo. Dá o que pensar. O que terá acontecido em todos esses anos?”.

O fato pode levar a algumas incômodas digressões.

E se fosse uma carta contendo uma declaração de amor?

O que poderia fazer com isso setenta anos depois?


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Foto: Jorge Finatto
jfinatto@terra.com.br

quinta-feira, 4 de março de 2010

A face do amanhecer

Jorge Adelar Finatto




A palavra é claridade na casa escura.
Que barulho é esse no corredor?
São os passos perdidos de quem não voltou.
Há um lírio cortado na mão do arlequim.
O sangue brota do ventre frio da solidão.
Que agonia é essa subindo a escada?
São as correntes da memória arrastando a dor.
Quando a janela se abrir, haverá talvez uma flor.
A palavra tece a face do amanhecer.


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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 3 de março de 2010

O barco mais triste do mundo

Jorge Adelar Finatto



 
A minha paixão por barcos e navegações sempre me leva a cidades de mar ou rio. Sou um bicho das águas.

O fato de ter nascido e de viver numa cidade serrana é apenas uma das contradições que me definem.

O sonho menino de tornar-me marinheiro jamais me abandonou. Por isso, talvez, essa busca recorrente pelas águas e por embarcações.

A nostalgia dos barcos não sai do meu coração.

Em Coimbra, existe um barco de passageiros com o nome de Basófias, fundeado no pequeno cais, perto do centro da antiquíssima cidade portuguesa.

Resolvi um dia ir ao encontro do Basófias e fazer um passeio pelo Mondego, o rio que me faz sentir saudades de todos os rios do mundo.
Ocorre que, nas três ocasiões em que fui ao cais, não consegui realizar a navegação.

Numa das vezes, o barco estava em manutenção; noutra, não havia passageiros além de mim; numa outra ainda, o tempo mau não permitiu levantar âncora.

Em suma, para meu desencanto, nunca consegui navegar no Basófias. A nave permaneceu, no meu imaginário, como um barco que jamais saiu do cais.
photo: j.finatto. Coimbra
A tripulação do Basófias é composta por marinheiros uniformizados a rigor, afáveis no trato. A pose e o orgulho náutico não deixam dúvida de que estamos diante de calejados navegadores.

Às vezes, fico pensando.

O Basófias, nas amarras que o impedem de lançar-se ao rio e realizar o destino para o qual nasceu, é o barco mais triste do mundo.

Mas não deixa de ter sua graça a imóvel embarcação.

De certa forma, o Basófias é a metáfora da existência de muitos.

Dele me enterneço, porque é o retrato de tantas vidas que ficam à margem, esperando no cais, esperando por uma viagem que nunca acontecerá.


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Fotos: J.Finatto. Imagens de Coimbra, Portugal.

terça-feira, 2 de março de 2010

O tempo de construir a palavra

Jorge Adelar Finatto


Ana Luísa Amaral é uma das vozes mais importantes da moderna poesia portuguesa.

Nascida em Lisboa em 1956, ensina Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutorou-se em Literatura Norte-Americana, com uma tese sobre a poeta Emily Dickinson.

É autora de onze livros de poemas, entre os quais Minha Senhora de Quê (1990), Coisas de Partir (1993), Às Vezes o Paraíso (1998), Imagias (2002).

Também publicou obras para a infância, como Gaspar, o Dedo Diferente e Outras Histórias (1999), e A História da Aranha Leopoldina (2000).

Está traduzida para diversas línguas, como castelhano, inglês, francês, alemão, holandês, russo, búlgaro, croata, entre outras. Sairá este ano um livro seu na Suécia e uma antologia de poemas na Itália.

Desde a idade de nove anos vive na cidade de Leça da Palmeira, de frente pro mar, perto da cidade do Porto.

Em 2007 recebeu o Prêmio de Poesia Correntes D’Escritas /Casino da Póvoa, pelo livro A Gênese do Amor (2005), também galardoado na Itália com o Prêmio de Poesia Giuseppe Acerbi.

Em 2008, recebeu o Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores pelo livro Entre dois rios e outras noites (2007).

A entrevistada faz do poema um caminho através do silêncio.

Nele percorre a concretude e a transcendência dos seres e coisas do mundo.

Parece vir de outras esferas essa experiência de existir e de contar que habita os poemas de Ana Luísa.

De Lisboa com o Tejo ao fundo, viagem pelas delícias e asperezas do verbo e do ser, passagem por anjos caídos, andanças até a mais alta estrela, retorno ao chão humilde dos solitários e abandonados, o peso do tempo a suportar, tudo pode ser matéria de poesia aos olhos e ao coração da poeta.

segunda-feira, 1 de março de 2010

O gesto de cada um

Jorge Adelar Finatto

Acredito que cada um de nós pode, a seu modo, fazer a diferença.

A vida em sociedade só é suportável se o indivíduo assume, pessoalmente, o compromisso de transformar o mundo, respeitando os que o rodeiam, lutando pra fazer valer a generosidade, a verdade, a justiça.

São os pequenos gestos individuais que tornam possíveis as grandes transformações globais de que tanto necessitamos. Pequenos apenas na aparência, mas imensos em significado e capacidade multiplicadora.

Um pacto imediato e geral pelo respeito ao outro fará bem à saúde física e emocional de todos. Um acordo por mais carinho e educação nas relações poderá salvar o resto do ano que se descortina a partir deste março que hoje começa. Vamos com fé e coragem. Que venham as seivas e os frutos.

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jfinatto@terra.com.br

domingo, 28 de fevereiro de 2010

As cercanias de abril

Jorge Adelar Finatto

As cercanias
              de abril
me fazem passageiro
              da bruma

tenho medo do perfume
das flores mortas

serão só folhas
na ventania
              ou serei eu
navegando a bordo
da incessante perda?
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Poema do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Foto: J.Finatto