sábado, 13 de março de 2010

O Clube da Esquina

Jorge Adelar Finatto




O que nos dizia o Clube da Esquina no vendaval das nossas vidas pequenas e massacradas na década de 1970? Dizia que era possível ir muito além da pobreza material e espiritual daqueles dias. Dizia que valia a pena acreditar na amizade, no encontro, na ousadia, na transgressão do ódio e da hipocrisia.

Mostrava que nada podia amputar nossos sonhos, nossa criatividade. A vida podia e devia ser bonita.

O Clube da Esquina não tinha carteirinha, nem endereço, tampouco piscina e sede campestre. Era um lugar espiritual onde as pessoas se reuniam em qualquer dia, qualquer hora, qualquer estação do ano. Os sócios espalhavam-se pelo Brasil.

A senha dos frequentadores do Clube estava no jeito, no olhar, no modo de ser, na amizade verdadeira, na busca.

Muitos construíram saídas existenciais frequentando o Clube da Esquina. Ali se cultivavam encontros, pomares de alegria, viveiros de afeto. Um modo diferente de olhar a vida num país que tinha perdido o encanto e a esperança.

Uma maneira diferente de traduzir essa coisa tão velha que é o indivíduo estar no mundo, mergulhado numa paisagem sombria, sob sol e chuva, e seguir adiante, apesar de tudo.

Construções melódicas e letras inusitadas, instigantes, sensíveis, tão diferentes do que tinha sido feito até então.

O fundo musical da minha adolescência foi inventado pelo Clube da Esquina, de Milton Nascimento, Lô Borges e companheiros de estrada. Estamos falando dos anos 1970. O famoso clube mineiro vinha dos anos sessenta, quando Milton tinha vinte e poucos anos e havia feito músicas eternas como Travessia (em parceria com Fernando Brant) e Morro Velho, que chamaram a atenção do mundo.

O Clube da Esquina, disco lançado em março de 1972, trazia um recado urgente. Era uma música nova, numa época difícil. As portas estavam fechadas para a juventude. Os ares das montanhas de Minas Gerais, o sertão, as veredas, as paisagens de concreto, vidro e aço das grandes cidades, a loucura da história, tudo vinha junto nas canções. O antigo e o moderno.

A impressão é que nada de importante escapava dos integrantes do Clube. Eram poetas lúcidos e líricos, profundamente brasileiros, latino-americanos, um canto universal.

Havia no trabalho daqueles jovens músicos e compositores muito de cinema, leitura de filosofia, literatura, conhecimento da arte em geral, que os levava a uma reflexão atual sobre a vida, a risco, a céu aberto. O paredão da censura e do medo não lhes caía bem, o grupo rejeitava com coragem esse tipo de interferência.

Eu estudava com meia bolsa numa escola particular de Porto Alegre, na qual havia filhos de famílias de classe média e alta. Quando vim a ter a minha primeira jaqueta Lee, americana, esse vestuário já saíra de moda.

Sempre estive fora de moda naquela escola. Ir todos os dias pra casa, no bairro distante, no ônibus velho e lotado, era de certa forma um alívio. As pessoas mais afortunadas não conseguem esconder certa estranheza diante dos pobres, quando eles entram no seu ambiente.

Mas a leitura e a música, duas coisas relativamente acessíveis, abrem caminhos ensolarados.

No Clube da Esquina não se barravam pessoas pela classe social ou qualquer outra. Aprendi a olhar nos olhos dos outros, sem ter vergonha de ser pobre e não ter as coisas materiais que, para muitos, são importantes. Havia outras riquezas.

Foi um amigo da escola, filho de militar de alta patente do Exército, quem comprou o primeiro Clube da Esquina. Me convidou para ouvir o disco. O cara tinha até um quarto só pra ele! Passamos muitas tardes de nossas vidas de adolescentes dentro do Clube.

Podíamos, então, sair em viagem com O tem azul (Lô Borges e Ronaldo Bastos):
Coisas que a gente se esquece de dizer
Frases que o vento vem às vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar
Você pega o trem azul
O sol na cabeça
O sol pega o trem azul
Você na cabeça
O sol na cabeça

O Clube da Esquina era a gente andando no meio do mundo. A gente vivendo numa realidade seca, mas com esperança.

Os militares ocupavam o poder de forma truculenta. Do outro lado, pessoas estavam na luta armada. O país se matava. Não havia conversa, não se encontravam saídas. Era o tempo dos assassinatos, dos sequestros, da tortura, dos banimentos, dos assaltos a bancos, das emboscadas, da violência como única forma de luta.

A luta encarniçada pelo poder.

A estética do Clube da Esquina era a da resistência e do rompimento com o atraso e a falta de imaginação. Em 1972, o antológico disco foi um enorme acontecimento. Entre os participantes estavam Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Lô Borges, Márcio Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Wagner Tiso, Paulo Moura, Nelson Ângelo, Eumir Deodato, além, claro, do próprio Milton. Em 1978, veio à luz o Clube da Esquina 2, com nomes em acréscimo, como Tavinho Moura, Paulo Jobim, Joyce, Ruy Guerra, Novelli, Danilo Caymmi, entre outros.

As pessoas que participavam do Clube da Esquina tinham em comum a inquietação pelo novo, na vida pessoal e no espectro coletivo, sendo a música a via de chegada a este tempo futuro, que já se fazia presente nas letras e canções. Pessoas de diferentes classes sociais, com aspirações de justiça e fraternidade, se encontravam no Clube.

Em 1975, Milton Nascimento apresentou-se com seus amigos em Porto Alegre. Foi no Gigantinho, ginásio de esportes ao lado do Gigante da Beira Rio, do Internacional, à beira do Guaíba. Lembro-me que não ocupamos a arquibancada, o público era pequeno. Sentamos no chão mesmo, à vontade, diante do palco improvisado, a poucos metros dos músicos. Foi um grande e inesquecível show, Milton cantando os "clássicos" que faziam tremer nossos corações. Depois, generosamente, atendeu aos pedidos de músicas extras.

O pessoal do Clube da Esquina não assumiu pose de ídolo. Eram ao natural. Começando pelo primeiro, Milton Nascimento, reservado, com notável intuição, informação cultural e uma capacidade impressionante para decifrar os enigmas do tempo e ver adiante. Com suas músicas, esses artistas iluminaram o nosso duro chão de viver.

Ainda hoje escuto as músicas do Clube da Esquina com o mesmo arrepio, o mesmo alumbramento dos anos setenta do século passado. Como puderam fazer algo tão bonito e ao mesmo tempo tão presente na vida de tanta gente? O trabalho dos integrantes do Clube vinha de outra esfera de consciência, reservas espirituais.

Estavam perto de Deus, dos anjos, dos homens.

Com eles, num domingo qualquer, sem nenhuma perspectiva, aprendemos que Nada será como antes (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos):
Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite
Um gosto de sol


Num domingo qualquer, qualquer hora
Ventania em qualquer direção
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está

Éramos urbanos, mas, nas canções do Clube, colocávamos os pés também no interior, em estradas de terra, conhecendo nosso país. Andávamos de carro de boi, atravessávamos vales e montanhas, tomávamos banho de rio e de mar.

Nenhum outro movimento musical nos disse tantas coisas, nos tocou tanto, nos projetou para o futuro, em um país que tratava - e ainda trata - seus jovens como marginais.

A obra visceral de Milton Nascimento e seus amigos nos alimentou com vida solidária e convivente.

Um sentido de partilha atravessou a escuridão.

Uma visão de transcendência espalhou-se no cotidiano.

Uma paisagem vista da janela mostrou-nos que a vida pode ser o que fizermos com ela.

Um pouco/muito da existência de muita gente no canto e na voz humana de Milton Nascimento.

No meu bornal de lembranças, lá está o trenzinho passando na frente das montanhas, com o sol atrás, como no desenho de Milton. Aquelas canções seguem dentro de nós pelas ruas vazias, nas salas de espera, nas filas dos ônibus, trens, barcos e aviões, nas calçadas, nos hospitais, praças, na volta do mercado público de Porto Alegre, nos difíceis ambiente de trabalho.

A vida nunca mais seria a mesma.

Milton gravou mais uma vez a amizade, no Clube da Esquina 2, na canção Que bom, amigo, de sua autoria:
Que bom, amigo
Poder saber outra vez que estás comigo
Dizer com certeza outra vez a palavra amigo
Se bem que isso nunca deixou de ser
Que bom, amigo
Poder dizer o teu nome a toda hora
A toda gente
Sentir que tu sabes
Que estou pro que der contigo
Se bem que isso nunca deixou de ser
Que bom, amigo
Saber que na minha porta
A qualquer hora
Uma daquelas pessoas que a gente espera
Que chega trazendo a vida será você
Sem preocupação

O Clube da Esquina, sem carteirinha de sócio e sem sede, nos acolheu e tratou como irmãos.
Como disse Milton, no excelente livro Os sonhos não envelhecem*, do poeta, escritor e autor de letras de canções Márcio Borges:

“E mais uma vez penso que o Clube não pertencia a uma esquina, a uma turma, a uma cidade, mas sim a quem, no pedaço mais distante do mundo, ouvisse nossas vozes e se juntasse a nós. O Clube da Esquina continua vivo nas músicas, nas letras, no nosso amor, nos nossos filhos e quem mais chegar”.

O Clube da Esquina, solto no espaço como nuvem, tem a porta de entrada no nosso coração.


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Foto: capa do disco Clube da Esquina, 1972.
*Os sonhos não envelhecem. Histórias do Clube da Esquina. Márcio Borges, p.358. Geração Editorial, São Paulo, 1996.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Cuba e os direitos humanos

Jorge Adelar Finatto

As ditaduras são feitas de cadáveres e prisões. Não existe a figura do bom ditador.

Sejam de direita ou de esquerda, ditaduras são igualmente infernais.

Após a morte do pedreiro e dissidente político Orlando Zapata Tamayo, 42 anos, em 23 de fevereiro de 2.010, em consequência de 85 dias de greve de fome, o psicólogo e jornalista cubano Guillermo Fariñas, 48 anos, também está em greve de fome, desde 24 de fevereiro. As informações mais recentes dão conta de que é muito preocupante seu estado de saúde.

Fariñas afirma que está pronto a sacrificar-se, se o governo de Cuba não libertar 26 presos políticos que estão com a saúde debilitada em prisões da ilha.

Os irmãos Fidel Castro Ruz, ex-presidente, e Raúl Castro Ruz, atual líder político de Cuba, não se mostram dispostos a permitir a democratização e nem a rever a forma de tratar os opositores do regime de partido único (Partido Comunista de Cuba).

A Revolução Cubana, vitoriosa em 1959, liderada por gente como Fidel Castro e Ernesto "Che" Guevara, combateu a ditadura do general Fulgencio Batista, que, entre outras violências, tratava com brutalidade os inimigos políticos.

Os atuais dirigentes cubanos repetem a intolerância contra os adversários. Dados do Departamento de Estado dos Estados Unidos informam a existência de 194 presos políticos em Cuba.

Informações divulgadas na imprensa mostram que a revolução trouxe avanços sociais a Cuba, principalmente em áreas como educação e saúde. É um país pequeno, que tem hoje cerca de 12 milhões de habitantes.

O embargo econômico imposto pelos Estados Unidos só tem colaborado para a falta de avanços políticos em Cuba. A posição americana é um obstáculo ao fim da ditadura e fortalece o discurso persecutório dos governantes cubanos.

Fidel Castro, seu irmão e sequazes cometem o erro essencial de todos os ditadores: acham-se insubstituíveis, e não admitem a transição democrática do poder. Consideram-se melhores e mais preparados do que todos os outros cidadãos e só eles sabem o que é bom para a sociedade.

O governo cubano não reconhece a existência de presos de consciência e afirma que o que há são mercenários a serviço dos Estados Unidos, alegação que não convence mais ninguém.

O que se pergunta é quantas prisões e mortes mais serão necessárias para que se estabeleçam o diálogo e o respeito aos que pensam diferente do governo em Cuba.

É uma violência aos direitos humanos um mesmo grupo manter-se no poder por tanto tempo, afastando a população da democracia, negando-lhe direitos políticos.

Não existe justificativa, do ponto de vista ético, político e social, para essa eternização, que só é possível mediante a eliminação da liberdade e, às vezes, da própria vida de quem é contrário ao sistema.

O que se espera do governo brasileiro é uma posição firme e clara contra a falta de democracia naquele país e contra a perseguição movida aos que se manifestam por mudanças. É incompreensível, aliás, o já longo silêncio das autoridades brasileiras em relação à escuridão política em Cuba.
 

quinta-feira, 11 de março de 2010

Discreta canção para um guarda-chuva perdido

Jorge Adelar Finatto

Se encontrares por aí 
um guarda-chuva perdido
toma-o na mão
e leva-o contigo

alguém distraído
perdeu-o
sem querer
na casa do vento

não o abandones
por favor
na neblina
do oblívio

acolhe esse amigo
que foi esquecido 
num banco de praça
na tarde vazia
de um domingo

oferece-lhe
afeto e abrigo

um dia talvez 
ele partilhará
a longa solidão
do inverno
contigo


















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Fotos: J.Finatto

quarta-feira, 10 de março de 2010

Breves anotações de um fantasma

Jorge Adelar Finatto

desenho a bico de pena, 1979, j.finatto
 
As dedicatórias, nos velhos livros dos sebos, me comovem.

Dói nelas a solidão de não mais pertencerem a alguém. Estão soltas no mundo como a mão que acaricia o vento. Caíram no alçapão do tempo, o afeto cobriu-se de pó.

Numa estante qualquer perdida no planeta, as velhas dedicatórias sofrem a tristeza da ausência.

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Abro ao acaso o volume das Elegias de Duíno*, poemas de Rainer Maria Rilke, livro que não visitava há muitos anos. Na orelha está a minha assinatura e o registro de um tempo: abril de 1977.

O primeiro verso da primeira elegia inaugura a perplexidade diante da existência, o recolhimento do ser, a transcendência:

Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?

                               &      &      &      &

Tenho o costume de fazer pequenos apontamentos nos livros que leio. Não me constranjo de sublinhar trechos, tecer comentários nas margens, corrigir alguma coisa que me pareça fora de lugar. Faço isso sem remorso, hábito enraizado como o de cheirar os livros. Cada um tem seu aroma.

Nunca me incomodo de encontrar anotações nos livros comprados nos sebos da vida. Pelo contrário, me interessa saber o que o anterior proprietário escreveu, o que lhe chamou a atenção, as impressões que lhe ficaram da leitura, alguma observação curiosa.

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Heitor dos Crepúsculos, o fantasma-mor de Passo dos Ausentes, costuma me visitar nos dias chuvosos como hoje, aqui no escritório onde leio, escrevo e, às vezes, desapareço em pleno ar.

Diz ele que os fantasmas são os grandes frequentadores dos sebos. À noite, no silêncio dos corredores desertos, entre estantes pesadas de volumes e o cheiro adocicado no ar, proveniente das páginas envelhecidas, os voláteis põem-se a vasculhar as histórias contidas nas dedicatórias e registros escritos. Sabem que existe vida ali.

Dos Crepúsculos afirma que os fantasmas amam a vida e só por isso são fantasmas.

Observa que eles procuram nos sebos o livro da vida perdida. Esse livro traz o perfume ressequido do tempo, e as marcas dos dias felizes.

- Costumo fazer anotações à margem das outras anotações. No futuro, quem sabe, ao lê-las, alguém vai se lembrar de mim com o mesmo carinho -, confidencia o volátil Heitor.

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* Elegias de Duíno, Rainer Maria Rilke, tradução de Dora Ferreira da Silva. Editora Globo, 2ª edição, Porto Alegre, 1976.

Ilustração em bico-de-pena (1979) e foto: J. Finatto

Coleção de clássicos

Jorge Adelar Finatto

A Editora Abril está lançando uma coleção de clássicos. O primeiro livro tem dois volumes e custa R$ 14,90. Não poderia ser melhor a escolha do título: Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. Os próximos livros sairão pelo mesmo valor, cada volume, e estarão nas bancas semanalmente.

A coleção terá 30 obras nos gêneros romance, conto, poesia e teatro, com nomes consagrados da literatura mundial. As publicações trazem estudos sobre os autores e suas obras, têm capa dura e são revestidas de tecido. O acabamento é bonito. Um regalo pra quem gosta de livros.

Fiz uma coleção semelhante nos idos de 1980, também lançada pela Abril. São obras fundamentais. Comprava cada volume com dificuldade, apesar do preço acessível. Valeu o esforço.

A boa leitura é um patrimônio cultural e espiritual pra toda vida.

terça-feira, 9 de março de 2010

O aborto e o Papa

Jorge Adelar Finatto

 
 
A frase na parede de um prédio público, quase à beira do Rio da Prata, me fez parar sob um sol forte, a poucas quadras do belo e tradicional Teatro Solis, em Montevideo, em janeiro passado.
 
O Uruguai é um país de gente que lê, opina, discute, participa. O que me motivou a fotografar?
 
Primeiro, o argumento. Se o Papa fosse mulher, uma papisa, portanto, a questão do aborto teria mesmo outro tratamento? Será que a compreensão do problema do aborto é uma questão só de gênero?
 
Segundo, eu não tenho opinião definitiva sobre o assunto e não faço julgamento moral a respeito. O que eu queria é entender.
 
O grafite montevideano expressa a opinião de milhões e milhões de mulheres no mundo inteiro. O aborto é uma questão de gênero. Mas não só.
 
Gerar ou não uma vida no próprio ventre é, em boa medida, uma decisão da mulher, por diversas razões.
 
A rejeição da gravidez ou a omissão dos homens em relação ao fato é uma delas.
 
A legalização do aborto é uma das faces de um problema maior, mas está longe de ser a principal.
 
A afetividade, a sexualidade e a responsabilidade pela geração da vida estão intimamente ligadas. Fazer sexo, sexo casual, é diferente de fazer amor.
 
A indústria da propaganda, em geral, separa o corpo e o sexo do resto. Existem corpos lindos, mas não existe espírito nesses corpos.
 
Corpos maravilhosos de mulheres são utilizados para vender qualquer coisa. O mesmo também acontece agora com corpos masculinos.
 
A erotização começa na infância, através dos comerciais, filmes, programas, séries e novelas de televisão.
 
Coisas como compromisso nas relações, autoestima, estima e respeito pelo outro são tratadas de maneira  residual.
 
Em vários países o aborto foi legalizado.
 
No Brasil, a discussão permanece e sua prática ainda é crime, salvo nos casos em que não houver outro meio de salvar a vida da gestante e quando resultar de estupro (desde que precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal).
 
Dizem os defensores da legalização que mulheres pobres, que não podem mais ter filhos, muitas vezes são levadas a fazer aborto em condições sub-humanas, longe do sistema público de saúde, com elevado índice de letalidade, enquanto mulheres com boas condições econômicas pagam por procedimentos particulares e recebem melhor atendimento.
 
Informação do Ministério da Saúde estima em 1,4 milhão de abortos clandestinos no Brasil por ano, conforme dado colhido do site Themis, Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, de Porto Alegre.
 
Dizem também os defensores do aborto que a mulher tem o direito de dispor do próprio corpo.
 
Os que são contra a legalização afirmam que a mulher não pode interromper uma vida que já não lhe pertence, mas é de outra pessoa depois da concepção.
 
Eu não sou especialista no assunto, mas também não sou hipócrita.
 
O aborto é um tema a ser tratado por toda a sociedade, mulheres e homens.
 
Tratado, sim, mas num espectro mais amplo do que a mera legalização, que, pelo que vejo, acabará acontecendo.
 
Está na hora de pensar a sexualidade humana de modo mais responsável, penso eu. Isso é mais do que simplesmente distribuir milhões de camisinhas no carnaval e achar que está tudo certo.
 
Este grafite na parede de um edifício, em Montevideo, sob o sol escaldante do Rio da Prata em janeiro de 2010, me fez parar e tentar entender.
 

segunda-feira, 8 de março de 2010

A hora do farelo

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
O coração do outono pulsa ao som dos Noturnos de Chopin.
Enquanto filósofos desvelam os insondáveis desígnios da condição humana, eu espero pelo pinhão cozido na chapa do fogão a lenha.
O vento roça os telhados e janelas.
A chegada da estação se adivinha na neblina, um pouco de frio, amarelo nas folhas.
Essas coisas me vêm na hora imprópria do farelo, olhando a estrela.
Espero que os pinheiros não se deixem morrer na crise cósmica que atravessamos.
O egoísmo e a maldade humana estão nos levando para o buraco.
Por cima vêm as catástrofes naturais como poucas vezes antes.
Existe alguma coisa que cala e sente quando vem o anoitecer, que olha a lonjura das estrelas, observa o mistério inumerável da vida, sabe que o tempo é curto pra conhecer e sentir tanta beleza.
Existe, na revelação do farelo, o sentimento de que faltam mais encontros com os amigos.
Faltam mais mesas pra ficar com as pessoas a quem amamos.
Há um excesso intolerável de realidade.
A beira da noite, no outono, impõe austeridades.
Ermos são os caminhos da hora do farelo.
As folhas amarelas do tempo caem em volta dessa hora descarnada.
A beleza da vida num voo de borboleta.
A impressionante leveza que a faz girar, levitar, divagar entre flores e ramos.
O ocre do outono deita sedas nos caminhos.
A palavra escrita recolhe nossa presença no mundo.
A palavra existe pra ser partilhada.
A hora do farelo traz a vontade de voar sobre os abismos e certezas.
Em que lugar enterraram o mistério, em que ilha de ausência no meio do oceano?
Talvez longe demais.
Se ao menos um anjo surgisse dizendo que nada foi em vão…


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Foto: J. Finatto