quarta-feira, 17 de novembro de 2010
Em certas ruas
Em certas ruas
em certas tardes
penso em ti
os barcos
as ilhas
do Guaíba
nos definiram
no inverno
te enovelas
feito gato
no esconderijo
do apartamento
à beira rio
primavera
quedas esvoaçante
ao pôr-do-sol
crepúsculo
outro nome
dessa cidade
tão afeita
a silêncios
e despedidas
esperas
amanhecer
diante da dor
o rio e os peixes
não secarão o sal
da tua alma
escreves poemas
os poemas
são teu jeito
de suportar
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Poema do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Foto: J.Finatto
terça-feira, 16 de novembro de 2010
O Mondego
Jorge Adelar Finatto
Vou encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, qu'é da tua água,
Qu'é dos prantos que eu chorei
António Nobre
O Mondegome dá
saudade
do Guaíba
os últimos barcos
partem
ao entardecer
deixando atrás
o sonho dos homens
o poema de António Nobre
escrito na pedra
à beira do rio
me recorda Porto Alegre
seus poetas esquecidos
a bilha vazia
da alma
o açúcar queimado
do crepúsculo
em Coimbra
me faz voar
sobre os telhados
agarrado no vestido
da Princesa Inês
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Poema do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
Foto: J. Finatto
sábado, 13 de novembro de 2010
Passos de algodão
Jorge Adelar Finatto
A silenciosa presença do amigo, sabê-lo por perto, partilhando a vida, é motivo de consolo e esperança.
Depois de longa e sentida ausência, ele retornou ao convívio das tardes no escritório. Conheço meu amigo de outros invernos. Partiu em fevereiro sem dizer nada, tão ao seu estilo, e me deixou aqui todo esse tempo sem poder ouvir sua voz cava e rascante, sem poder ver sua plumagem luminosa, seus olhos redondos e atentos.
Sempre sinto falta do seu olhar de banda, da maneira estrambótica de aterrissar num só pé na sacada do escritório. Alziro tem temperamento forte e, às vezes, um certo mau humor o acompanha quando o tempo está pra chuva.
Ele voltou com suas cores vivas para suavizar o inverno. Eu andava mesmo precisado de sua companhia. Não que ele converse muito. No fundo, nem é isso o mais importante.
A silenciosa presença do amigo, sabê-lo perto, partilhando a vida, é motivo de consolo e esperança.
Providenciei hoje a reposição de pedaços de banana no pratinho dos pássaros, fruto muito do seu gosto.
Em certos dias, Alziro deixa a cerimônia de lado, entra no escritório, em passos de algodão, e ensaia uma pequena incursão no ambiente. Olha o teto, os lustres, a mesa, os livros, os quadros, as plantas e relógios, tudo com silenciosa atenção. Faço que não percebo para deixá-lo à vontade.
Do mesmo jeito que chega, o meu amigo vai embora. Como sempre, não se despede e nem diz quando voltará, apenas alça o improvável voo adunco rasgando o ar.
O que importa, diz o coração, é que a velha e boa amizade está rediviva. Se tudo der certo, talvez ele retorne amanhã ou quem sabe depois. Só espero que não me falte tão cedo, porque meu inventário de ausências já vai longo na vida.
Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.
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Foto: J. Finatto. Alziro em visita.
Foto: J. Finatto. Alziro em visita.
Texto publicado no blog em 24/8/10.
sexta-feira, 12 de novembro de 2010
Pedaços de vida
Jorge Adelar Finatto
Claudionor, o Anacoreta, recebeu-nos como irmão na sua caverna no Contraforte dos Capuchinhos. Fazia um frio de - 2º . Dormimos em volta do fogo armado no chão. Não foi possível observar o céu com o famoso telescópio do nosso anfitrião, por causa da espessa névoa. Nas noites claras, ele costuma mirar o universo à procura de sinais de Deus.
Pelas cinco e meia da manhã, Claudionor preparou o café, passado como antigamente, em saco de pano, a chaleira de água fumegando. O pão que ele faz não tem nada parecido neste mundo. Depois da oração (de mãos dadas, como quer Claudionor) e do abraço, embarcamos, Juan Niebla e eu, no Besouro Vermelho e seguimos viagem.
Niebla não precisa que o conduzam, anda por todo lugar com seus secretos sensores e sua bengala. O comprido capote preto, os óculos escuros, redondos, de tartaruga, o bandoneón pendurado no ombro e uma rara sensibilidade fazem dele um ser único.
Pelas cinco e meia da manhã, Claudionor preparou o café, passado como antigamente, em saco de pano, a chaleira de água fumegando. O pão que ele faz não tem nada parecido neste mundo. Depois da oração (de mãos dadas, como quer Claudionor) e do abraço, embarcamos, Juan Niebla e eu, no Besouro Vermelho e seguimos viagem.
Niebla não precisa que o conduzam, anda por todo lugar com seus secretos sensores e sua bengala. O comprido capote preto, os óculos escuros, redondos, de tartaruga, o bandoneón pendurado no ombro e uma rara sensibilidade fazem dele um ser único.
A estrada que desce até São Francisco de Paula tem uma inclinação severa e perigosa. A visão deslumbrante do encontro dos Campos de Cima do Esquecimento com os Campos de Cima da Serra entontece o viajante. Entusiasmado com a abertura da exposição de fotografias, na tarde de hoje, em Gramado, Niebla tocou algumas músicas durante o percurso, dentro do side-car.
Dois loucos viajando num motociclo musical pelas sinuosas estradas da serra. Andamos com a cara no frio, rasgando o vento. Coração aceso.
Retratos são esses instantes efêmeros, pedaços de vida, recolhidos num luminoso olhar.
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Foto: J. Finatto, da exposição Retratos. Abertura hoje, 18h, na Cafeteria Bello Gusto, Gramado, Av. Borges de Medeiros, 2193, centro.
quinta-feira, 11 de novembro de 2010
Retratos, exposição em Gramado
Jorge Adelar Finatto
Estou saindo agora de Passo dos Ausentes com o velho motociclo Besouro Vermelho. Levo no side-car meu amigo Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade. Começamos a atravessar o Vale do Olhar em direção ao Contraforte dos Capuchinhos.
A densa neblina fecha todos os caminhos. O frio é intenso e venta como sempre. Vamos devagar pela estrada de chão batido, escorregadio. Contornamos os abismos com medo e esperança. A cabeleira branca de Niebla voa pelas bordas do boné de couro marrom. Pretendemos dormir hoje na caverna de Claudionor, o Anacoreta. Dali partiremos cedo na manhã de sexta e percorreremos 100 quilômetros adiante e para baixo, até São Francisco de Paula. Depois, Canela e, enfim, Gramado, estação final.
A densa neblina fecha todos os caminhos. O frio é intenso e venta como sempre. Vamos devagar pela estrada de chão batido, escorregadio. Contornamos os abismos com medo e esperança. A cabeleira branca de Niebla voa pelas bordas do boné de couro marrom. Pretendemos dormir hoje na caverna de Claudionor, o Anacoreta. Dali partiremos cedo na manhã de sexta e percorreremos 100 quilômetros adiante e para baixo, até São Francisco de Paula. Depois, Canela e, enfim, Gramado, estação final.
Saímos dos Campos de Cima do Esquecimento, a 1800 metros de altitude, e vamos para os Campos de Cima da Serra, que ficam a 800 metros do nível do mar.
O motivo da viagem é a inauguração da minha exposição Retratos, que ocorrerá amanhã, 12/11, às 18h, no Café Bello Gusto, em Gramado. O fundo musical do evento estará nas mãos de Juan Niebla. No programa, peças de Piazzolla, irmãos Gershwin, Villa-Lobos e Hermeto Pascoal.
Alberta de Montecalvino promete receber os que aparecerem com o espumante moscatel Postal da Ausência acompanhado de fatias do delicioso bolo caseiro que só ela sabe fazer. A entrada, assim como o abraço, é de graça. Quem quiser confirmar presença pode ligar e falar com Mocita de La Vega.
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Foto da exposição Retratos: J. Finatto
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
Construção
Eu sou o que me construo
entre um apocalipse e outro
uma aurora e outra
Sou como essas partículas
de luz
que se expandem no espaço
flutuam nas alturas solitárias
Traço o poema
entre um abismo e outro
uma alegria e outra
e avanço
apesar do nevoeiro
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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto
terça-feira, 9 de novembro de 2010
José e Pilar
Uma perda irreparável o acabar de cada dia.
José Saramago*
Assisti ao documentário José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes, que está sendo lançado no Brasil e em Portugal. O filme mostra como era o cotidiano dos últimos anos de vida do escritor e poeta português José Saramago ao lado de sua mulher, a jornalista espanhola Pilar Del Rio. Saramago morreu em 18 de junho passado, aos 87 anos, na ilha de Lanzarote, situada no arquipélago espanhol das Canárias, onde vivia. A filmagem estendeu-se por três anos.
A sinceridade e a abertura do escritor ao deixar-se mostrar na vida doméstica e no trabalho são tocantes. Não há pose, há o José Saramago inteiro, homem e cidadão. Coisa rara nesses dias. Frases espontâneas, simples e profundas, comentários sobre a vida, a morte, os direitos humanos, a difícil situação do planeta, tudo ele compartilha com a naturalidade de quem conversa em volta da mesa. Aquele que nasceu de uma família muito pobre, na aldeia de Azinhaga, e que consolidou uma carreira literária depois dos 50 anos, tem uma solidez de princípios, integridade e humanismo comparável à das rochas vulcânicas da ilha onde viveu.
O documentário capta o escritor em sua casa e viajando pelo mundo, dentro de aviões, aeroportos, hotéis, em sessões de autógrafo, conferências, entrevistas, homenagens e no dia-a-dia com Pilar Del Rio. Pilar não é apenas coadjuvante do primeiro Prêmio Nobel de Literatura de Língua Portuguesa (1998), é a companheira que trabalha incessantemente, com seu talento e suas ideias, interlocutora permanente. Impressiona o quanto o casal se amava e se completava, cada um com sua individualidade, ambos personalidades fortes.
De tudo que li e vi de Saramago, com o acréscimo deste excelente documentário, fica-me a impressão de que ele foi o escritor mais lúcido, solidário e comprometido com o lado humano que tivemos nas últimas décadas em todo o mundo.
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* Frase dita pelo escritor no documentário.
Foto: José e Pilar. Cena do filme. Divulgação.
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