sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O sertão entre as nuvens


Jorge Adelar Finatto




O regalório das trevas este mundo é.

Ofício neblinoso em mim reinventado, me fiz poeta. Eu, Farandolino Brouillon, inquilino da quimera.

Os fanicos da alegria no meu coração. Remendos que tecem esperanças. As coloridas e rasgadas vestes com que a melancolia se veste. No interior das pedras se ouvem vozes.

Agora é tempo morto. Espírito morto. Semente clara germina no fundo do meu silêncio.

Ah, quem dera a palavra em mim renascida. As tardes no banco da praça, o invisível canto dos pássaros que um dia foram.

Os cavalos do oblívio atravessam a  ponte. Algaravia nos cascos vermelhos. Moro nesse sertão entre as nuvens que é Passo dos Ausentes.  Sou poeta num tempo trevoso. Esse da morte do espírito. O que se vê. A arte do esquecimento tem uma única lei, o estatuto da deslembrança. O espírito está morto. Eu recolho o que sobra, o farelo das horas, o farelo do farelo. 

A pouca migalha do viver. As musas nem aí diante do triste espetáculo. A pétrea indiferença dos habitantes do gelo. Os afundados na coisa crua. Vivo agora os difíceis dias do abismo. Sentimento  enclausurado. Lágrimas são gotas salgadas (e quentes) que escorrem na face fria.  A melancolia do córrego.

Os Campos de Cima do Esquecimento. Moro no chapadão sobre as nuvens. Acorrentado estou no alto penedo. Arrosto as flechas geladas dos ventos. Eu viajante audaz do esquecimento, mergulhado nos haveres da sobra. O farelo. Espero dias de brisas leves e suaves poemas campestres. Os impossíveis remansos no estar no mundo.  Sou o desconhecido poeta, morador do chapadão.

Esse tal, esse que vem diante de vossa elevada ausência. Esse. Uns dizem filosofia, sintaxe, eu digo viver nessa miséria. Vivo esse tempo  cevado na barriga da escuridão, adaga atravessada no peito. A nossa passagem no mundo.

O que vejo dentro do claustro: a face iluminada de Deus. As manhãs se  fabricam no poço violento da noite. Ah, essas desoladas horas passadas aqui no sertão das nuvens. A fé é um ranchinho branco  em cima do chapadão com a porta aberta, fumaça branca na chaminé, entre camélia e jasmim. Esse lugar onde resisto. O frio glacial, a tamanha ausência.

photo: jfinatto

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Farandolino Brouillon, poeta, colecionador de crepúsculos, estudioso do estranho fenômeno das estrelas cadentes nos céus de Passo dos Ausentes.
Fotos: J. Finatto 1) Ponte na neblina, Laje de Pedra, Canela 2) Pátio  do rancho de Farandolino Brouillon.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Andança

Jorge Adelar Finatto


De tempo em tempo
converso com Deus
na esquina

de tempo em tempo
ardo no frio
da memória

de tempo em tempo
choro como uma estátua
não pode fazer

de tempo em tempo
ressuscito
em teus braços

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Casa de Villa

Jorge Adelar Finatto

A poesia cotidiana e quase imperceptível da vida comum na música de Guinga.
 

O compositor, cantor e poeta Guinga é uma das melhores revelações da música brasileira nos últimos 20 anos. Em meio ao prato feito (e muitas vezes insosso) dos modismos e imposições da indústria do disco, é raro o aparecimento de um artista com o preparo técnico, a inspiração e a intuição deste carioca nascido no subúrbio. Músico compenetrado em seu ofício, com conhecimentos de música erudita e popular, Guinga prepara  e serve requintadas iguarias com seu violão, seus versos e sua voz.

O cd Casa de Villa foi gravado entre novembro e dezembro de 2006, no estúdio da gravadora Biscoito Fino, e lançado em 2007. É um grande prazer ouvir as sonoridades e harmonias criativas e inusitadas, que fogem muito ao fácil posto. O que se espera de um artista é que seja inventivo e nos abra novos portões no casarão da sensibilidade. Pois surpresa é o que nos reserva este disco do senhor Carlos Althier de Souza Lemos Escobar.

De tempo em tempo, ponho-me a escutar essas trilhas de  encantadora luminosidade. São caminhos que nos levam para um Brasil que existe cálido nas casas humildes, sobrados, quintais e ruas dos bairros das nossas cidades. A poesia cotidiana e quase imperceptível da vida comum está viva na obra deste grande músico.

Guinga aparece como compositor em todas as doze faixas, às vezes só, às vezes em boa companhia. A reverência a Villa-Lobos é uma promessa e um compromisso que se confirmam ao longo do disco. O refinado letrista (poeta) revela-se em versos carregados de simbolismo como: o fogo da refinaria é boitatá (Maviosa).

Mar de Maracanã, a primeira música, é a feliz  abertura disso tudo que faz deste trabalho algo original e belo que merece a nossa atenção do início ao fim.

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Foto: 1) Guinga. Autor: Adriano Scognamillo. Fonte: site oficial do artista: www.guinga.com 2) capa do disco.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Pra que servem os poetas?

Jorge Adelar Finatto


Na oficina invisível onde trabalham os poetas, as portas e janelas da percepção estão sempre abertas.  O artesanato é difícil. Encontrar poesia nos seres e nas coisas,  com o imenso cuidado de não diminuí-la, é tarefa que exige sensibilidade, entrega, perseverança, humildade. É ofício de uma vida inteira.

A que serve o poeta? Ele tenta descobrir e revelar a poesia errante. A rara essência que existe além do que os olhos podem ver. Procura o poeta, com desvelo, colher a revelação através da construção do poema. O fracasso acompanha esse esforço, temperado, aqui e ali, por um feliz achado.
 
A arte desse silencioso artesão é trabalho não remunerado, clandestino, à margem da agitação e do tempo. Quando um novo poema acontece, é a própria maravilha que se desvela à mente e ao coração dos homens.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Alguém visitou

Jorge Adelar Finatto


Alguém visitou
minha tristeza
soltou as gaivotas
no azul insular

não quero ser doido
desmemoriado
habitante
do penhasco

embora só
quero estar junto

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Do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Foto: J. Finatto

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Caso Cesare Battisti

 Jorge Adelar Finatto


Ainda não consegui entender a decisão do governo brasileiro de negar a extradição de Cesare Battisti para a Itália. Na sexta-feira passada, 31/12/10, no último dia de seu mandato, o Presidente Lula decidiu não extraditar o ex-ativista político italiano, condenado à revelia por quatro homicídios em seu país. A Justiça Italiana aplicou-lhe a pena de prisão perpétua pelos assassinatos ocorridos entre 1977 e 1979, época em que Battisti (que nega as acusações) integrava o grupo Proletários Armados pelo Comunismo.

A decisão condenatória foi tomada nas três instâncias da Justiça Italiana. A Corte Europeia de Direitos Humanos, à qual recorreu Battisti, entendeu que no julgamento não houve ofensa ao seu direito de defesa e nem nulidades processuais  por perseguição política (ver, a propósito, comentários no blog do jurista Walter Fanganiello Maierovitch, em 22/02/10 e 03/01/11: maierovitch.blog.terra.com.br).

Não encontro justificativa jurídica ou humanista para a decisão do Presidente Lula, adotada com base em argumentos da Advocacia-Geral da União (AGU), entre eles o do alegado risco para a integridade  da vida de Battisti no caso de ser extraditado.

A Itália é um país democrático, uma das grandes democracias do mundo, e o seu Poder Judiciário é uma instituição respeitada. Não se trata de uma ditadura na qual se restrinjam direitos humanos dos cidadãos. Nem existe notícia de que o Judiciário daquele país aja movido por vingança ou perseguições de qualquer espécie, pelo contrário.

Não cabe ao Brasil, portanto, negar à Itália o direito de executar uma decisão soberana. Como em nosso país não existe a pena de prisão perpétua, a extradição, se concedida, restringiria a sanção a 30 anos de prisão, máximo permitido pela legislação penal brasileira.

As nações democráticas devem-se respeito e colaboração entre si, sob pena de favorecer a impunidade e o avanço do crime organizado, que hoje, como se sabe, opera além fronteiras.

Cesare Battisti encontra-se preso na Penitenciária da Papuda, em Brasília, à espera de uma definição do caso, que agora foi remetido para deliberação ao Supremo Tribunal Federal. As autoridades italianas estão indignadas com a decisão e pretendem dela recorrer junto ao STF e à Corte Internacional de Justiça, com sede em Haia, na Holanda, mesmo que esta não tenha força vinculante.

Hoje é a Itália que exige respeito a uma decisão soberana e democrática. Amanhã poderá ser o Brasil.

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Foto: Cesare Battisti na Penitenciária da Papuda, em Brasília, em 17 de novembro de 2009. Autor: José Cruz, da Agência Brasil. Fonte: Wikipédia.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A viagem da umbela

Jorge Adelar Finatto


Agora todos estão dormindo. Escuto o sino que bate na pequena igreja ao longe. Gosto desse som pela música ancestral que ele traz. Estou sentado diante da janela do escritório. Não leio nem escrevo nada. Respiro o ar fresco da noite e é uma ventura esse respirar.

Em certos dias o coração fica seco. Não navego nenhum mar. Nenhum barco me leva. Parado no cais noturno.

Um guarda-chuva passa voando sobre os telhados de Passo dos Ausentes. A mão invisível o carrega pelo ar. De onde veio, pra onde vai? Outras coisas mais pesadas que o vento voam nos Campos de Cima do Esquecimento a essa hora.

Uma aquarela serrana surge em silêncio. Pinceladas de um delicado pintor. A cálida pintura se compõe e se desfaz a cada instante. Nenhum traço jamais se repete. A vida se transforma. A dor acontece e passa.

O guarda-chuva vai perdendo altura e cai no jardim abandonado na neblina. Calado e feliz como um viajante que acabou de chegar. O dia amanhece.
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Foto: J.Finatto