quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Camafeu sentimental


Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto
 

Deve ter sido assim
num lugar assim
num tempo assim

ele foi feliz um dia
sem saber o que era
 felicidade
 

Uma fotografia guardada há muito tempo na gaveta. Ele já esteve nesse lugar. Nem sabe quando. Uma velha casa de madeira entre pinheiros. Um córrego esperto cantando ali perto. Pode ouvi-lo agora claramente. Na janelas laterais, floreiras com gerânios de variadas cores.

Lá dentro, em volta de uma grande mesa, pessoas se reúnem para o café da tarde. Um alarido de véspera de primavera. O menino olha aqueles rostos iluminados. O cheiro de pão feito em casa, no fogão de barro, se espalha por tudo.

Em volta daquela mesa, retratos na parede. Em volta da parede, o mundo gira em lentas rotações.

O aroma de jasmim invade o ambiente. No quintal grande, caminha-se entre laranjeira, ameixeira, romãs, pitangueira, mamoeiro, parreira, abacateiro. O cinamomo florido abre os galhos perto do poço, o banco pintado de branco embaixo.

Há muito tempo ele não visitava a casa da infância.

As buganvílias exalam azul e branco no jardim.

O gato dorme entre novelos de lã na cadeira de balanço.

Um dia recortado no tempo. Pessoas vivendo sem medo da separação. Cálida alegria.

A fotografia, camafeu sentimental.

Deve ter sido assim, num lugar assim, num tempo assim, ele foi feliz um dia, sem saber o que era felicidade.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O livro eletrônico

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. novas folhas nascerão
  

Se o caro leitor teme que o livro eletrônico poderá varrer do planeta o livro de papel, fique calmo, isto não acontecerá. Dia desses, vi na televisão (sempre ela) a demonstração de como funciona o livro digital.

As palavras estavam lá  na pequena tela luminosa, intercaladas por imagens, entre elas algumas que, tocadas com a ponta do dedo, movimentavam-se coloridas como num filme. São breves animações que ilustram o texto, podendo ser utilizadas, se assim quiser o leitor.

Gosto muito da associação de textos e imagens, o que fica claro no tipo de trabalho que tento fazer aqui no blogue. Se é possível acrescentar recursos técnicos que valorizam o texto, tornando a leitura mais atraente, com imagens, notas explicativas, dicionários, sons e outros, penso que isto é válido. Em nada prejudica a leitura, pelo contrário, enriquece o ato de ler.

Não sou favorável a qualquer manipulação do texto literário em função do suporte. Nada de resumos, cortes, compactações. Simplesmente, deve oferecer o texto tal como é, podendo o leitor usar ou não os recursos disponíveis.

O livro eletrônico é uma realidade irreversível. Ainda é muito caro, eu não me animo a comprar um. Mas deverá tornar-se cada vez mais acessível. Um mesmo aparelho, do tamanho de um livro de bolso, poderá carregar não só uma, mas várias bibliotecas, além de permitir o acesso a jornais e revistas em meio digital, entre outras possibilidades.

O livro impresso não irá desaparecer, mas sem dúvida deixará de ser o principal instrumento de leitura. Gente como eu, que ama o livro de papel, nada perderá. Haverá outras opções de leitura apenas, e isto é muito bom.

Com relação à formação das novas gerações de leitores, acredito que a tecnologia aplicada ao livro vai facilitar bastante o processo, nestes tempos em que o computador faz parte da vida das pessoas.

Estarei sendo moderno ou ingênuo além da conta? Terei sido abduzido por falsas promessas de felicidade?

O que vocês acham?


domingo, 4 de setembro de 2011

Não escrevemos o primeiro verso

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. magnólias


Não escrevemos o primeiro verso
há tudo por ser dito
mas sou teimoso
insisto no jogo

quando desanimares pensa em mim
que não abandonei as ferramentas
que não dei um verso para a eternidade


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Do livro Claridade, Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Ah, uma tarde solto por aí

Jorge Adelar Finatto


barco de papel: j.finatto

Ah, uma tarde solto por aí. Navegando pelo rio no meu barco de papel. Ao largo do continente, sem compromissos, distante das mesquinharias, das bocas que nunca se calam, da violência, das cotidianas grossuras e vaidades.

Esqueço de mim, de ti, da nossa infinita desimportância no arranjo cósmico.


Deito no fundo do barco, olho as nuvens. 

Descortino o voo leve, lento e branco da gaivota. Só escuto o som do vaivém das ondas batendo na quilha.

Ah, um dia longe da cidade, disso tudo que tira a cor da alegria e corrompe a força da beleza.

Coração ao vento, sem hora pra voltar. 


quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A caixa do mágico


Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. saudade de Passo dos Ausentes


Tão divagado, tão ermo, tão falto de poder.

Um bardo não devia sair por aí numa hora dessas.  A temerária cidade e seus perigosos caminhos.

Alguém falou que é tarde demais, a utopia afundou, o encanto acabou, é melhor desistir dos sonhos.

Eu sei que é madrugada, faz frio, setembro dobra a esquina e quase tudo está perdido.

Trago a poesia na caixa de mágico.

Por isso abri o guarda-chuva e atravessei o medo da cidade. Por isso fugi da escura casa. Por isso, pra não secar o rio dentro de mim, estou aqui perto da tua ausência.

Para ir ao teu encontro escolhi as melhores palavras no livro dos espantos. Nessa longínqua hora. 

Carrego um lírio numa mão e o chapéu cheio de pássaros na outra. Eles não param de sair.

Os meus pássaros voam para ti e em teu nome levantam o róseo véu da aurora.


segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Vingança

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto



O que eu faço sentado
na solidão desta praça
que o outono pintou
de amarelo?

eu me vingo das salas


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Do livro Claridade, Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.


domingo, 28 de agosto de 2011

Promessa do sol

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto



Estou vivo e lúcido
na tarde da América do Sul

entre palmeiras verticais
e andorinhas azuis

entre o que restou do teu jeito
e a promessa generosa do sol
batendo na minha cabeça



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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.