quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O Conde de Lautréamont e as magnólias

O Cavaleiro da Bandana Escarlate

As magnólias só se entregam a quem foge das salas fechadas, numa tarde azul.


photo: j.finatto


Saio a passear na tarde azul de Gramado (enfim, o azul voltou), fugindo da sala escura do cinema, numa espécie de vingança, após esses dias de claustro. Levo comigo o poeta Isidore Ducasse (Montevidéu, 1846 - Paris, 1870), que me acompanha nessa aventura ao Festival de Cinema. O amável e tristonho Conde de Lautréamont, como gosta de ser chamado, habita o velho e grosso volume de Os Cantos de Maldoror.

Como é de seu costume, Lautréamont resolveu sair das páginas do livro e me faz companhia durante a viagem. Ele gosta de ficar na mesinha diante da janela do quarto de hotel. Escreve coisas a lápis num antigo calepino. Às vezes, levanta-se e olha a cidade e seus telhados. Observa o Vale do Quilombo em frente. Ali, de vez em quando, uma águia mergulha em diagonal entre os penhascos, após emitir estridente guincho.

Com sua roupa do século XIX, colete e gravata de lacinho, anda a meu lado pelas ruas calmas. Fica muito admirado de ver tanta gente jovem conversando animadamente, entrando e saindo dos cafés, do cinema, ocupando a praça, tirando fotografias. Tudo tão diferente da minha triste vida em Montevidéu e Paris - confidencia.


photo: j.finatto

Fica encantado com o brilho das magnólias que povoam a cidade. Elas se parecem muito com aquelas que havia no jardim lá de casa, na Ciudad Vieja, diante do Rio da Prata - diz o poeta.

O meu amigo tem razão de emocionar-se. As magnólias são o grande espetáculo de Gramado e do resto da serra gaúcha no inverno. Contudo, poucos se dão conta disso.

As magnólias só se entregam a quem foge das salas fechadas, numa tarde azul.

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O Cavaleiro da Bandana Escarlate, menestrel medieval e livre-pensador, faz a cobertura do Festival de Cinema de Gramado para o blogue a convite de Alberta de Montecalvino. Como o blogue não tem mecenas, o Cavaleiro paga todas as suas despesas e acha que está muito bem assim.

Texto publicado em 12, agosto, 2011.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Mare nostrum

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Uma lembrança de Deus aos homens.

O paredão de basalto e mata nativa é apenas um pedaço visível da eternidade.

O perfil alcantilado da montanha intocada rasga o ar azul e se projeta no espaço, qual nave no mar das nuvens, dos vales e das verdes alturas.

Araucárias, mata, bichos, córregos  habitam as encostas e o leito do chapadão.

Promontório de vigília sobre o horizonte aberto.

Somos pequenos e transitórios perto da densa matéria.

Que palavra se ouvirá no âmago calado da montanha?

Que silenciosa bailarina dançará em seus bosques interiores?

O nosso mar, o único mar, o mar dos Campos de Cima do Esquecimento, em Passo dos Ausentes.

domingo, 15 de janeiro de 2012

O boné de marinheiro

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. O Rio Guaíba


Meu amigo Luiz e eu tínhamos 9 anos e um sonho comum.

Um dia embarcaremos num navio da Marinha do Brasil, no cais de Porto Alegre, sairemos a navegar pelas águas do Guaíba, da Lagoa dos Patos e, por fim, chegaremos ao mar.

Ser marinheiro era nossa maravilha. Luiz tinha parentes na Marinha. Possuía, portanto, as informações sobre como realizar o sonho. 

Vendo minha seriedade no trato das coisas do mar, ele me presenteou com um boné de marinheiro de verdade. Uma emoção que ainda hoje me toca. Já me sentia um membro da armada nacional.

Algum tempo depois, apareceu lá em casa um grupo de rapazes e moças participantes de uma gincana. Estavam atrás de um boné de marinheiro que valia muitos pontos na tal competição.

Não sei quem lhes deu a informação, o fato é que, diante dos apelos e da promessa de devolução, emprestei-lhes o meu precioso boné.

Esperei por meses que eles voltassem. Mas jamais nenhuma daquelas pessoas veio para devolver o boné ou dar qualquer explicação.

Anos mais tarde, Luiz ingressou na Marinha, realizando assim o nosso sonho na parte que lhe cabia. Eu permaneci ilhado no continente, minha vida seguiu por outras águas.

Às vezes fico diante do rio, olhando os navios, os barcos, as gaivotas. Isso me enche de saudade de algo que não aconteceu.

Nunca deixei de ser o menino que um dia sonhou ser marinheiro. No fundo, acho que esse é o meu maior tesouro.


quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A casa de Federico García Lorca em Granada


Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Sierra Nevada, Espanha

A viagem de trem de Sevilha a Granada dura cerca de três horas. Quando nos aproximamos da cidade, surge na janela a visão de Sierra Nevada, um quadro maravilhoso.

Viajar de trem é uma das belezas desta vida.  No tempo de menino, lembro dos percursos entre Porto Alegre e Caxias do Sul. O trem subia a serra lentamente, à beira de córregos e pinheirais, contornando abismos. Havia aqui e ali uma cascata se derramando na encosta de uma montanha.

photo: j.finatto. Casa-Museu FGL, Granada

(Infelizmente, o transporte ferroviário foi extinto em nosso país a partir da década de 1950, com a implantação da indústria automobilística e a expansão de setores da economia ligados ao transporte rodoviário. Um erro colossal. Um país com as dimensões do Brasil sem uma rede de trens de passageiros e de cargas é algo inconcebível. O pouco que existe é absolutamente insuficiente. Por conta disso, estradas saturadas e mal conservadas levam a milhares de mortos todos os anos em virtude de acidentes, sem falar nas pessoas que ficam com sérias sequelas físicas. Embora com atraso, o governo federal retoma (dizem) o investimento nos caminhos de ferro.)

photo: j.finatto

Casa-Museu Federico García Lorca

photo do poeta: Fundación Federico García Lorca

A noite tornou-se íntima
como uma pequena praça.
(Romance Sonâmbulo)

Volto à Espanha. Ao chegar à Granada, a atenciosa taxista informou-me onde se situa a casa em que Federico García Lorca (uma das minhas devoções literárias) viveu por largos períodos de sua vida. Instalei-me o mais rápido que pude no hotel e fui a pé em direção ao parque que leva o nome do poeta, no qual se situa a Casa-Museu Federico García Lorca. A bela propriedade conserva o nome original, Huerta de San Vicente (homenagem à mãe do escritor, Vicenta).

photo: j.finatto

A casa está localizada a cerca de um quilômetro e meio da região central de Granada. O pai de Lorca adquiriu-a para ser residência de verão (a família tinha outro domicílio no centro da cidade). Foi ocupada pelos Lorca entre 1926 e 1936. Nela o poeta escreveu algumas de suas obras mais importantes. Ali passou os dias que antecederam sua prisão e assassinato, em agosto de 1936, no início da Guerra Civil Espanhola.

Huerta de San Vicente acolheu muitas reuniões e saraus frequentados por artistas e intelectuais. Os dois pavimentos abrigam diversos móveis daquela época, além de quadros e outras obras de arte. Há também manuscritos de Lorca em exposição. Nas paredes, quadros de pintores como Salvador Dali (amigo do poeta), entre outros.

Na sala do piano, apresentaram-se músicos como o próprio Federico (tocava violão e piano) e o também espanhol Manuel de Falla (1876 - 1946), grande compositor, amigo do escritor que tentou em vão impedir seu assassinato.

photo: j.finatto. O quarto de Lorca

O quarto do poeta, no qual escreveu parte significativa de seus textos, no pavimento superior, ainda conserva sua escrivaninha e objetos pessoais.

Não é permitido fotografar no interior da casa-museu, que pertence ao município desde 1985. A visita é guiada. O preço varia entre 3 euros (mais ou menos 9 reais) para adultos e 1 euro, havendo também ingressos gratuitos para estudantes e nas quartas-feiras.

photo: j.finatto

Numa sala anexa à casa, há exposição e venda de livros e de objetos relacionados ao poeta andaluz.

Um lugar acolhedor com pátio florido, árvores e bancos para sentar.  Bom para ler, respirar e pensar, em meio à fragrância do roseiral que cerca a casa.

photo: j.finatto

Neste lugar de memória, história e arte, parece que a qualquer momento vamos escutar a risada do poeta, sua fala e seu violão gitano.

Alguém, em Granada, perguntou o que, afinal, me levou àquela cidade. Ora, respondi, vim para visitar o poeta Federico em sua amada casa. E para ler seus poemas neste jardim de silêncio.

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Leia mais sobre Federico García Lorca:

A memória em busca do poeta:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/08/federico-garcia-lorca-memoria-em-busca.html

Zambra para Federico:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/11/zembra-para-federico.html

Com Lorca pela Andaluzia:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/11/com-lorca-pela-andaluzia.html

Site oficial da Casa-Museo FGL:
http://www.huertadesanvicente.com/index.php

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Autorretratos

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


A fotografia e o texto são autorretratos da alma. Escrevemos e fotografamos coisas que nos dizem algo e isso fala a nosso respeito. Quem cria alguma coisa o faz com seu ser inteiro, a menos que se trate de uma farsa.

As nossas obras testemunham a nossa passagem na Terra. Dizem sobre nós mais do que qualquer palavra. O resto são nuvens.

O que se busca, na arte, é comunicação com o outro. Esse outro sem o qual a nossa existência fica em suspenso. Só existimos verdadeiramente na medida em que alguém nos reconhece.

Através da composição queremos dizer algo válido a esse alguém.

Não quero competir com ninguém ao escrever, ao fotografar. Quero apenas arrumar as palavras e as imagens em busca de poesia e de algum sentido em meio ao caos. Se isso tocar o leitor, ganhei meu dia. Se não, a vida segue.

A luta pela expressão vale por si. E a esperança é uma arma poderosa.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O peixe e o fantasma

Jorge Adelar Finatto

ilustração: Clarinha Moura
O peixe Moisés está vivo dentro do rio. Ele costuma me acompanhar nas navegações que faço pelo Guaíba no meu barco de papel. Vai feliz, saltando pelos lados do Sonhador. Mas é nos dias em que o barco se chama Solitário que sua companhia me é mais cara.

Às vezes, Moisés vem à superfície e observa a cidade. Coisa estranha. Tanto barulho, tanta fumaça, tanta agitação. No fundo do rio é tudo silencioso. Não existe gente apressada e infeliz.

Está muito difícil viver no interior das águas, ele diz. A cidade joga muito lixo no rio. No leito submerso, há pneus velhos, garrafas, sapatos, objetos inumeráveis. Até sofá, geladeira e televisão jogam no rio. Não é fácil viver como peixe nesse ambiente "humanizado".

Por isso, Moisés se afasta cada vez mais da beira da cidade, vai nadar lá longe, quer ficar distante da sujeira. Por isso, é raro ver um peixe de perto, à flor dágua, brilhando sob o sol. Por isso, para a maioria das pessoas o peixe é apenas uma imagem que habita as páginas de livros, revistas e telas de computador.

Se não cuidar do peixe e do rio, o homem vai acabar também como a imagem de algo que não existe mais, uma recordação do passado, um fantasma numa cidade abandonada.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Mais escândalo (ou a angústia da beleza)

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto




O estatuto luminoso que as flores estão a proclamar, em meio à profunda sombra, é motivo de imenso desalento. Afinal, pra que espalhar tanta beleza na espessa escuridão do mundo?

Onde antes havia secura de seivas, elas agora aparecem trazendo alegria e encanto.

photo: j.finatto

Até essa explosão de formas e cores, tínhamos garantida a tristeza de cada dia. Havia certeza em relação à desolação.

photo: j.finatto

Ninguém esperava mais nada. Felicidade era coisa de dicionários. História de romance água-com-açúcar.

Agora vem esse tempo de delicadezas recordar-nos o paraíso, a criar em nós a angústia da beleza.

photo: j.finatto

Por que essas flores nos deixam assim tão indefesos?

O que fazer com o velho jeito de sofrer e ser infeliz?

photo: j.finatto