quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Cálido

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto
 
 
 
Preciso escrever
o poema
que vai salvar
esse dia

o poema cálido
para atravessar
o tempo difícil
que ainda tenho
pela frente

o poema que vai
expulsar
a vontade
de morrer
que chega
aos poucos
como um felino


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Do livro Memorial da vida breve, Jorge Finatto, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Tarde de primavera, a luz, os peixes

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
 
Contarei esta estória suspirando,
Daqui a séculos e séculos em algum outro lugar:
Duas estradas, num bosque, divergiam; e eu
Tomei a que era menos frequentada;
E foi isso a razão de toda a diferença!
                                                             Robert Frost*

O sábado estava com sol amarelo e céu azul, as estradas de chão batido querendo ser caminhadas. Andarilho do fim do mundo, parti na caminhada polifônica** em meio às árvores, perto do riacho. Me misturei na paisagem, longe da cidade, longe dos gritos da realidade.

Foi quando, na beira do córrego, encontrei esses peixes entre pedras e aguapés, numa luz de primavera.
 
A arte da fotografia é uma forma de fazer cessar o tempo. Um modo calado e atento de preservar o momento e adiar o oblívio.

photo: j.finatto

A foto é, de fato, um território revelado que se bate contra a morte.
 
Sou fotógrafo amador e trago comigo o entusiasmo dos velhos fotógrafos em missão de desvelar o oculto que súbito se ilumina.

photo: j.finatto
 
Na linguagem dos peixes, pedi licença e colhi algumas imagens. Valeu a pena. A tarde de sábado foi salva do esquecimento com  esses coloridos habitantes.

photo: j.finatto

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*Poema A estrada que não tomei, do livro Poemas Escolhidos do poeta americano Robert Frost (1874 - 1963). Tradução de Marisa Murray. Editora Lidador Ltda., Rio de Janeiro, 1969.
 ** A caminhada polifônica:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/08/o-peixe-da-boca-vermelha.html
 

sábado, 10 de novembro de 2012

A literatura morreu (a palavra, não)

Jorge Adelar Finatto
 
 

Agora que a literatura morreu, escrever e ler são atos póstumos, libertos da concorrência e da busca frenética pelos holofotes. Pelo que dizem os arautos do apocalipse, a essa altura somos todos, escritores e leitores, uns pobres moribundos à beira do crematório literário. 

Mas não convém perder a esperança. Poupemos o último suspiro.

Alguns observadores, menos funestos, afirmam que os livros estão perdendo a face humana. É verdade.  A estética e a ética da publicidade, em estreita harmonia com o deus mercado, tomaram conta do mundo dos livros (e de outros mundos), antes um território de culto à beleza e ao espírito. 

Podemos estar vivendo o crepúsculo da era de Gutenberg. O livro como objeto de arte e de cultura tem um futuro incerto pela frente. Menos pelo surgimento de novos meios de leitura, como o livro eletrônico, e muito mais pela perda de valor intrínseco do que se publica. 

Há um estrangulamento de sentido na literatura (o que não vende não tem significado nesse universo - ou é digno de pena). 

A literatura passa por um tempo de anemia como todo o resto. Excesso de autores e de obras, pouca inventividade, rasa originalidade (incluindo cópia de textos alheios na cara dura sem menção das fontes) são alguns dos componentes deste quadro. 
 
A banalização da palavra, o surgimento de escritores com pouca ou nenhuma leitura, a onipresença da linguagem padronizada à maneira fast-food levam ao previsível esgotamento de um certo  tipo de literatura.
 
A palavra não morre. O que morre é a literatura frívola, insípida e mercantil, que pouco ou nada oferece.
 
Nem tudo está perdido. Há escritores dignos deste nome para além dos fogos de artifício, da lista dos mais vendidos, dos modismos, do marketing pessoal, do texto embromador que se escreve com óculos escuros e de olho no dinheiro e na fama.

A boa literatura é um território luminoso, um lugar que não diminui o ser humano. 

O importante, penso eu, é não parar de procurar a alegria que só os livros podem nos dar.

Os clássicos estão sempre aí e é possível identificar, entre os novos, autores que têm algo a dizer. Não desistir da condição de leitor é uma luta que ainda vale o esforço. 

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foto de livros antigos. fonte: freepik.com
 

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O barco mais triste do mundo

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto. Rio Mondego, Coimbra


A minha paixão por barcos e navegações sempre me leva a cidades de mar ou rio. Sou um bicho das águas.

O fato de ter nascido e de viver numa cidade serrana é apenas uma das contradições que me definem.

O sonho menino de tornar-me marinheiro jamais me abandonou. Por isso, talvez, essa busca recorrente às águas e às embarcações.

A nostalgia dos barcos não sai do meu coração.

Em Coimbra, existe um barco de passageiros com o nome de Basófias, fundeado no pequeno cais, perto do centro da antiquíssima cidade portuguesa.

Resolvi um dia ir ao encontro do Basófias e fazer um passeio pelo Mondego, o rio que me faz sentir saudades de todos os rios do mundo.
 
Ocorre que, nas três ocasiões em que fui ao cais, não consegui realizar a navegação.

Numa das vezes, o barco estava em manutenção; noutra, não havia passageiros além de mim; numa outra ainda, o tempo mau não permitiu levantar âncora.

Em suma, nunca consegui navegar no Basófias. A nave permaneceu, no meu imaginário, como um barco que jamais saiu do cais.
 
photo: j.finatto. Coimbra
 
A tripulação do Basófias é composta por marinheiros uniformizados a rigor, afáveis no trato. A pose e o orgulho náutico não deixam dúvida de que estamos diante de calejados navegadores.

Às vezes, fico pensando.

O Basófias, nas amarras que o impedem de lançar-se ao rio e realizar o destino para o qual nasceu, é o barco mais triste do mundo.

Mas não deixa de ter sua graça a imóvel embarcação.

De certa forma, o Basófias é a metáfora da existência de muitos.

Dele me enterneço, porque é o retrato de tantas vidas que ficam à margem, esperando no cais, esperando por uma viagem que nunca acontecerá.
 
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Texto publicado em 03 de março, 2010.
 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Canção da bruma

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 

Senhor
quando chegar
a minha vez
de cruzar a ponte
deixa eu levar comigo
no alforje de nuvem
os dias de sol

as tardes
de outono

os pinheiros
da serra onde
nasci

deixa eu levar
o som do riacho

as antigas
conversas
da Rua São João

me concede
a memória
dos amigos
da infância

na bruma
que serei
me alcança
um bosque
e pássaros
para tecer
a minha casa

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Poema do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Viver é tudo que temos: vivamos

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto
 
Além da difícil luta pela sobrevivência, que nos consome mundos de sacrifício, nervos e paciência, temos de prover as necessidades do espírito. Nem só de pão vive o homem, diz o ensinamento bíblico (Mateus 4:4, Lucas 4:4).
 
Cada um faz o que pode (ou pelo menos devia). Em geral, trabalha-se duro uma vida toda para garantir o sustento e um pouco de segurança. Sobra pouco tempo para olhar os detalhes da paisagem e as coisas interiores.

Mas quem quer trilhar o caminho do conhecimento e do alumbramento não deve desistir.
 
Como passar por este mundo tão belo sem deter o passo para admirar, endender e sentir o que nele pulsa?
 
Aquele que diz que não tem sede espiritual é porque já está seco por dentro. Os secos não têm precisão de leitura, música, pintura, conversas, teatro, janelas, barcos no cais, pinheiros na Serra.
 
As crianças não são indiferentes ao mundo ao seu redor, olham amorosamente para os seres e as coisas. Veem a vida sempre pela primeira vez. Esse olhar inaugural é que faz bater o coração, adoça o pensamento.

Sejamos como as crianças. 

Não vale a pena desistir da beleza e da busca só porque alguns fazem tudo para estragar a travessia.

Viver é tudo que temos, raro leitor, é a nossa única oportunidade. Na dúvida, vivamos.
 
Enquanto escrevo estas linhas, a solidão e o drama se renovam no planeta azul.

Mas também as gaivotas, as pontes e o olhar primitivo das crianças. Vivamos.

Essas palavras, de tão breves e leves, nenhuma marca deixarão no ar onde flutuam.

Em segredo e em silêncio, vivamos.
 

sábado, 3 de novembro de 2012

A mágica flauta de Plauto Cruz

Jorge Adelar Finatto

Plauto Cruz. Foto: Jefferson Botega, Agência RBS.
 

O Choro é considerado a música erudita brasileira. É um gênero urbano, com origens no Rio de Janeiro da década de 1870, que se alastrou para outros lugares do Brasil, ampliou suas possibilidades.

Expandiu-se num universo harmônico e melódico de rara sofisticação e inventividade. É cultuado por admiradores fiéis em lugares tão distantes do Brasil como o Japão*.

A execução do Choro se dá em conjuntos formados com bandolim, violões de seis e sete cordas, pandeiro, cavaquinho e instrumentos de sopro como a flauta, entre outros.

Escutei nessa semana o disco Choros e Canções do virtuose da flauta e compositor Plauto Cruz, nascido em São Jerônimo, Rio Grande do Sul, em 15 de novembro de 1929. Fiquei encantado com o trabalho. Nunca antes havia me detido a ouvi-lo com a devida atenção.

Num país que valorizasse seus talentos, Plauto Cruz estaria tocando para o povo com apoio governamental, num grupo musical popular, num conjunto de câmara ou numa orquestra. Apresentaria por todo o país suas composições altamente elaboradas, dignas de figurar em qualquer sala de concertos.

O Brasil e o mundo não sabem o quanto perdem por não conhecer melhor este instrumentista e compositor. Canções como Choro para o Aguinaldo, Doce ternura, Beatriz e Choro para Ana são belas e universais. Algumas em estilo tradicional, outras com uma levada de jazz, todas primorosas

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*Naomi Kumamoto:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/07/naomi-kumamoto.html