segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A canção do efêmero

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
O jardim explode em pétalas, aromas, caules, ramos e cores em novembro dos prodígios.

As flores que aparecem na capa do blog por esses dias são do jardim aqui de casa. Nessa época são muitas e variadas, de rosas a orquídeas, de belas e humildes hortênsias a ternos e sorridentes gerânios, sem falar nas primaveras, nas cerejeiras, nos copos-de-leite e tantas outras.

Nunca, como neste ano, a flora caseira esteve tão iluminada. Uma celebração de vida e de fecundidade. O jardim canta a canção do efêmero: tudo nele é transitório. Mas há, também, no seu território, um contínuo renascer.


photo: j.finatto

Sinto-me bem ao conviver com as flores, ao observá-las, fotografá-las, ao aspirar-lhes o perfume suave.

É uma espécie de terapia floral o querer bem a esses seres tão passageiros, generosos e delicados.

As flores do meu jardim renascem todos os dias com a promessa e a esperança das novas seivas. Que seja assim também em nossas vidas.

photo: j.finatto
  

sábado, 8 de novembro de 2014

Eduardo Salavisa e a viagem no quotidiano

Jorge Adelar Finatto


Eduardo Salavisa. Elevador da Glória, Lisboa
 
Eduardo Salavisa é um “desenhador do quotidiano”, conforme define o título do seu blog.¹  Descobri seu trabalho através do jornal Público², um dos mais importantes de Portugal, que reproduz a página do autor na edição da internet.
Num determinado lugar seleciona as figuras,  perscruta a luz, as cores, as formas, os tons, os significados, a vida escondida. Munido com as ferramentas de trabalho (cadernos, lápis, canetas, tintas, etc.) constrói sua arte impregnada com as coisas do dia a dia.
Um desenhador do cotidiano é alguém que habita a realidade, busca-lhe sentidos, nuances, beleza. Não se ausenta da experiência de viver, pelo contrário, vai para o ambiente físico e espiritual onde a existência acontece. Ali as pessoas vivem e tecem suas histórias.
O talento do artista leva-nos a percorrer com ele os caminhos por onde anda (que não são poucos). Seus passos desenham trajetos pelas ruas de Lisboa, a cidade natal onde vive, mas não ficam só ali, deambulam pelo planeta afora.
 
Eduardo Salavisa. Aqueduto das Águas Livres, Amoreiras, Lisboa


Ele enche cadernos e cadernos em cada saída de casa, em cada viagem. É um viajante do mundo. Leva pouca bagagem e muito olhar. O resultado deste inventário minimalista – pequenas coisas, na aparência, no seu traço ganham contornos de grandeza humana – pode ser visto nos desenhos que nos abrem a vista para o invisível, para o não manifesto, para os detalhes que revelam o coração dos seres e objetos.
Eduardo partilha sua arte e seu conhecimento através de aulas, oficinas, palestras e exposições, além dos livros que publica. Experiente no ofício, costuma ser convidado a organizar edições de obras com autores que se dedicam aos diários gráficos.
É o caso do livro "Diários de Viagem 2. Desenhadores-Viajantes", no qual ele coordena 30 viagens de vários desenhadores (pessoas de diversas profissões). Nele participa com um texto introdutório, além de um trabalho que fez sobre uma viagem à Patagônia. A obra será lançada no próximo dia 22 de novembro, em Lisboa, às 18h, no Museu Bordalo Pinheiro.
Conversei com Eduardo, por e-mail, nessa semana (em Lisboa tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente em janeiro deste ano). Fiz-lhe algumas perguntas e as respostas ilustram essa atividade que, para nós, no Brasil, ainda é uma novidade.

- Eduardo, o que é um diário gráfico e desde quando esta forma de expressão existe?
 
Eduardo Salavisa

O caderno de desenho tem uma longa tradição. Conhecemos os de Leonardo da Vinci, onde apontava as suas observações e reflectia sobre elas. Quando os jovens aristocráticos europeus faziam a viagem de iniciação, chamada “Grand Tour”, levavam sempre um caderninho para desenhar o que viam. Todos os artistas, ou pretendentes a serem-no, usam-no. Não só os das artes visuais mas também os da escrita. São suportes transportáveis que se podem usar em qualquer lugar e circunstância. Um apontamento, uma reflexão, um compasso de espera.

O nome Diário Gráfico começou a ser usado por um professor da Faculdade de Belas Artes, falecido em 2009, chamado Lagoa Henriques. Foi ele que fez a estátua de Fernando Pessoa à porta da Brasileira. Para mim ele era melhor desenhador e professor do que escultor. Ele queria que nós desenhássemos todos os dias.

Foi também por isso que comecei a usá-lo com mais frequência. Foi quando quis transmitir aos meus alunos adolescentes quão era bom desenhar. Os adolescentes não têm paciência para nada e o desenho requer alguma. E também tempo e concentração. E se aquele caderno se transformasse num diário, com desenho e escrita, e se eles relacionassem com uma viagem, uma viagem no seu quotidiano, talvez ficassem viciados na observação e no desenho. E alguns ficaram.

E o desenho, para mim, está muito relacionado com a viagem. É preciso disponibilidade mental para se desenhar. E na viagem nós temo-la.

- O que o leitor encontrará neste Diários de Viagem 2? 

Durante a longa viagem que fiz o ano passado pela América Latina desenhei muito e pensei também quais eram as diferenças que havia entre aqueles desenhos, feitos muitas vezes em más condições, e outros feitos no nosso atelier. Quando cheguei, pedi a alguns amigos meus, portugueses e espanhóis, para me descreverem uma viagem com 10 desenhos feitos em cadernos e um texto com o máximo de 1000 palavras.

Esses textos e esses desenhos ajudaram-me a estabelecer cerca de 12 características que os desenhos feitos em viagem têm. Assim, além deste pequeno texto e de 30 viagens feitos por desenhadores-viajantes, temos um outro texto escrito por uma jornalista e escritora de viagens, e de romances, que viveu no Rio de janeiro uns anos: Alexandra Lucas Coelho.

É preciso dizer ainda que dois dos autores não os conhecia pessoalmente e são, para mim, os maiores expoentes nas suas áreas e que, inesperadamente, quiseram participar: Álvaro Siza Vieira, arquitecto, e Miquel Barceló, pintor.

- Existe previsão de um diário sobre o Brasil?

Existe previsão de diários para todos os países, e para o Brasil em particular. Haja tempo e dinheiro.
 

Eduardo Salavisa. Largo do Carmo, Lisboa

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¹desenhador do quotidiano:
http://diario-grafico.blogspot.com.br/
²Público:
http://www.publico.pt/

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Meus amigos

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
Não esqueçam
de me visitar
nas noites
de inverno
quando o medo
cobra caro
e as feridas
não deixam mentir


insolúvel jogo
de espelhos
entre mim
e o que fui

ando bêbado
pela casa
meu coração
é operário
desempregado
com filho pra criar
mulher feia
sem crédito no armazém

me enrosco
em invenções
inúteis
pra repartir contigo
um espaço de ternura

sinto umas
coisas estranhas
caminharem atrás de mim
um cano de fuzil
um casal de velhos famintos
um câncer
e me desagrada não ser
como certos fantasmas

 
convoco o
silêncio e
suas raízes

inauguro a
manhã

não, eu não sou
uma estrela
um rio
um barco
nada se compara
ao que sinto

preciso todos
ao redor da mesa
principalmente
os desaparecidos
como certos crepúsculos
que a gente vê
fogem e nunca mais


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Poema do livro Claridade, Jorge Adelar Finatto, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Álbum de Porto Alegre (1860 - 1930)

Jorge Adelar Finatto
 
 
Gosto de livros de fotografia. Podem ser imagens antigas ou atuais. Me interessa a representação da realidade pelo olhar do fotógrafo, pela sensibilidade na escolha dos seres e objetos, pelo que deles extrai em sentido e sentimento.
 
Num dia desses estava na livraria. Como sempre acontece comigo, alguns livros parece que têm um poder secreto de chamar minha atenção entre a multidão de volumes que enchem as estantes. Não tinha naquele dia intenção de pesquisar livros de fotografia, até o momento em que parei, sem razão aparente, diante de uma estante onde estava o Álbum de Porto Alegre - 1860 - 1930.¹
 
Uma obra bem realizada graficamente e com bom conteúdo, entremeando imagens de Porto Alegre daquele período com textos de autores importantes como Alvaro Moreyra (o grande cronista e poeta porto-alegrense, hoje pouco lembrado, que utilizava o delicioso pseudônimo de Arlequim da Silva).
 
Na ocasião não comprei o livro, pois tinha escolhido outros antes e, além disso, o preço era salgado para mim. Mas ali mesmo, de pé diante da estante, li a introdução escrita pela professora de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Sandra Jatahy Pesavento (1946 - 2009). Resumo: poucos dias depois, voltei à livraria e comprei a introdução, quero dizer, o livro.

Sandra Jatahy Pesavento²
 
O texto de apresentação (nove páginas) foi a poção mágica sobre mim, pobre leitor indefeso diante de sua beleza literária e de suas informações. A professora Pesavento transfigura-se em escritora dotada de notáveis recursos. Sintaxe e refinamento de estilo dão-se as mãos e arrastam o legente para o espaço luminoso.
 
Reúne elementos importantes sobre o advento da fotografia e sobre seu significado na vida da cidade. A imagem como registro de diversas transformações ao longo do tempo. Ouçamos por um breve momento o que nos diz a escritora:
 
 (...) a fotografia, enquanto imagem, é rastro, marca e pegada daquilo que foi um dia. (...) se a foto é imagem, e não a coisa ou ser representado, ela é obra do homem, representação do real.
 
Mas - e aqui se revela o seu lado técnico de ser impressão de luz e registro de vida - ela atesta e exibe a presença daquilo que foi, ela presentifica uma ausência. (págs. 8/9).
 
Prefácio, apresentação, introdução, como queiram, mas, acima de tudo, ensaio precioso de alta eficácia literária. A autora nos envolve sedutoramente com sua palavra bem temperada, original e criativa. Mostra-nos o papel da imagem como perpetuadora de um instante que só chegou até nós porque ela existe.
 
O milagre da fotografia a resgatar do oblívio um momento fugaz na vida de uma pessoa, de uma cidade, de um planeta.
 
Uma das melhores coisas que li nos últimos tempos este ensaio da saudosa professora Sandra Jatahy Pesavento, de quem fui aluno quando cursava Sociologia na UFRGS, no final dos anos 1970.
 
Um bom trabalho literário merece leitura e divulgação. Às vezes, como neste caso, uma introdução vale um livro. Saio agora desta crônica e vou continuar apreciando as belas imagens e os outros textos do Álbum.
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¹Álbum de Porto Alegre (1860 - 1930). Organização: Marcos Lindenmayer. Editora Nova Roma, Porto Alegre, 2007.
²Foto do site Fronteiras do Pensamento.

domingo, 2 de novembro de 2014

Visão

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto


Eu olho as velas brancas
dos barcos que cruzam
as águas escuras do rio

Sentado no banco do parque
eu observo o indescritível
declínio da tarde
sobre o Guaíba

Aqui embaixo do eucalipto
o sangue escorrendo nas veias
os pés firmes na terra
eu acompanho o lento movimento
das águas e do planeta

Estou condenado ao continente
ao monótono traçado das ruas
à intromissão do tédio e do medo

Mas o rio é um caminho
onde a emoção navega
 
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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

sábado, 1 de novembro de 2014

Escutar o outro

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto. 31-10-2014


Escutar o outro é, talvez, a forma mais elevada de sensibilidade.

O mundo está povoado de seres falantes, que só escutam as próprias razões, num monólogo ensurdecedor. Cada vez tem menos gente disposta a ouvir e a refletir, de coração aberto, sobre o que o outro tem a dizer.

O respeito, a empatia, para essas pessoas, não têm voz nem vez. O que vale é ter razão sempre, impor a própria vontade, não importa a que custo.

Somos inquilinos de um tempo que não nos pertence.

Existimos por um momento e depois vamos habitar a memória de Deus (aqueles que creem) ou simplesmente nos esfarelamos e não se fala mais nisso (os que em nada acreditam). A transitoriedade da vida é comum a uns e outros.

Há aqueles, contudo, que vivem como se fossem eternos, como se não tivessem de devolver um dia o seu quinhão de vida. Sentem-se livres e legitimados a executar os próprios desejos e torpezas. O mundo é seu brinquedo.
 
A todos querem submeter e devorar com a urgência dos vampiros (tão em voga, hoje, nas telas). Vivem sem qualquer noção de limite, nenhuma ideia de bondade com o semelhante (e, menos ainda, em relação ao diferente).

Como viver em meio tão hostil e infenso a valores humanos?

De minha parte, estou empenhado em arrumar a casa do ser. Sonho e trabalho, de sol a sol, para mantê-la limpa, com ar fresco e o claro aroma das manhãs. Espero que as pessoas se sintam acolhidas nessa casa simples, com flores da estação na janela.

Sei que é possível ser solidário com o próximo, ainda que o espaço para generosidades esteja cada vez menor.

Todos estamos envolvidos na árdua tarefa da sobrevivência. Mas isso não justifica a violência que vemos no dia a dia, explícita ou dissimulada.

O sofrimento é filho da prepotência, da vaidade exacerbada, da indiferença e da arrogância. Todo exercício arbitrário de poder sobre os outros é perverso.

Podemos viver ao lado das pessoas e não contra elas. Amorosamente.

Enquanto estamos vivos, temos essa bela oportunidade. Não vamos desperdiçá-la.

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Texto revisto, publicado antes em 29, junho, 2011.
 

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Drummond 112

Jorge Adelar Finatto
 
Carlos Drummond de Andrade¹
 
                             
                            Mundo mundo vasto mundo,
                            se eu me chamasse Raimundo
                            seria uma rima, não seria uma solução.
                            Mundo mundo vasto mundo
                            mais vasto é meu coração.²
                                                   
                                             Carlos Drummond de Andrade
                                              
 
31 de outubro de 1902, Itabira, Minas Gerais. Nascia Carlos Drummond de Andrade, o grande poeta brasileiro do século XX.  Nos deixou em 1987.
 
Os 112 anos de seu nascimento hoje lembramos.
 
A Drummond a nossa sentimental recordação no seu dia, último de outubro. O nosso reconhecimento pelo notável cidadão que soube ser ao lado do poeta e escritor imensos.
 
A nossa gratidão pela obra imortal que legou à língua portuguesa e a todas as línguas do mundo.

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¹O crédito da foto será registrado tão logo conhecido o autor.
²Poema de Sete Faces, fragmento. In Reunião: 10 livros de poesia. Carlos Drummond de Andrade.   Livraria José Olympio Editora S.A., Rio de Janeiro, 1977.