sábado, 6 de fevereiro de 2010

Enquanto a manhã não vem

Jorge Adelar Finatto

Escrevo no tarde da noite.

Confesso que pouco sei sobre este tempo e seus soturnos habitantes. Sou parte do drama.

Sei o que sinto. E sentindo me dou conta que está ficando cada vez mais difícil sentir a realidade.

Faz poucos dias, em Porto Alegre, um menino com cerca de 10 anos foi morto dentro de casa com 34 facadas, num bairro pobre da cidade. Os assassinos seriam dois assaltantes, o caso está sendo investigado.

O menino estava sozinho enquanto a mãe trabalhava como doméstica.

Não sei o que fazer com isso. Estou mergulhado na escuridão que nos cerca.

Que sociedade é esta que gera monstros assim?

Que tipo de ser humano é capaz de cometer um crime dessa natureza?

Que justiça será capaz de reparar crimes como esse?

Quem devolverá a essa mãe o sentido de viver?

Que sentimento, ou falta de, faz com que o caso seja esquecido dias depois e ninguém mais fale no menino, na sua mãe, na casa destruída?

Quem se ocupará dessa dor depois que os jornais não tocarem mais no assunto?

O pouco que sei me diz que não foram apenas o menino e sua mãe que perderam algo irreparável.

A humanidade toda perdeu.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Ilhas e taperas

Jorge Adelar Finatto

photo: Eduardo Tavares. Veleiro em Porto Alegre


Um dia desses saí a navegar pelo Guaíba no meu barco de papel.
Às vezes se chama Sonhador, outras, Solidão.
No itinerário, desembarquei em algumas ilhas.
Confesso me assustei com as taperas que nelas encontrei.
Tapera, do tupi, aldeia extinta.
Habitação em ruína, lugar abandonado.
Filipo, o papagaio que me acompanha, costuma dizer tapera é em nós que ela existe.
Nos nossos gestos vazios, nas nossas omissões, na impotência de mudar a vida.
De tão abandonadas, as ilhas se transformam em território de fantasmas.
Cada um de nós é uma ilha nessas águas tão fundas do viver.
Quando olho em volta da minha ilha, encontro outras ilhas. Muitas ilhas.
Apesar da quantidade e da proximidade, não formamos  um arquipélago.
Existimos isoladamente.
Os habitantes das ilhas querem falar e ser ouvidos.
Raros, contudo, dispõem-se a escutar.
Esse o flagelo que assola o mapa das ilhas.
Habitamos taperas modernas, com computador, blogue, máquina de lavar, tv a cabo, aparelhos de som, ar-condicionado, mil coisas.
Em nosso íntimo, continuamos homens e mulheres das cavernas, com poucos amigos. Solitários, primitivos.
Lutamos para sobreviver, saímos à caça todas as manhãs, disputamos ferozmente espaços no  mercado de trabalho, no mercado das paixões.
Desconfiamos quando nos mostram os dentes ao sorrir.
Dores e medos são curtidos no recesso como se não existisse mais ninguém no bairro.
As nossas moradias, tugúrios onde nos escondemos. Planejamos a fuga para um lugar que não sabemos se existe, mas deve ser melhor.

Olho o movimento dos barcos na entrada do cais.
Ouço o ruído seco do vento na vela branca.
Uma gaivota atravessa o rio.
O entardecer aprofunda o exílio.
Não conseguimos formar um arquipélago.
O Guaíba embala a solidão das ilhas e taperas.

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Foto: Eduardo Tavares. Veleiro em Porto Alegre.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Henrique do Valle

Jorge Adelar Finatto




A última vez que o vi foi na Praça Dom Feliciano.

Era uma dessas manhãs mágicas de Porto Alegre. Céu azul claro, vento leve, a luz âmbar escorrendo entre as árvores. Devia ser maio.

Aquele lugar, no início do século XX, tinha o nome de Praça da Misericórdia. Estava na frente, do outro lado da rua, do grande edifício da Santa Casa, como ainda hoje. Dali se podia avistar o Guaíba e os barcos passando ao fundo. Era o local de encontro do Grupo dos Sete, formado por jovens poetas simbolistas, entre os quais figuravam Alvaro Moreyra e Felipe D´Oliveira.

Naquele dia, meu amigo poeta estava acompanhado de uma linda mulher. Parecia feliz, em paz com a vida. Saí do encontro contente ao perceber nele uma celebração nova diante da existência, uma maior paciência em relação à difícil realidade cultural, humana e política daquele final dos anos setenta.

Pouco antes de morrer, em 1981, aos 22 anos de idade*, Henrique do Valle me confiou alguns poemas. “Espero que aproveites estes textos”, escreveu no envelope. Eu não estava em casa. Lembro que chovia muito naquela tarde. Na época, eu organizava uma revista literária com poetas de vários cantos do Brasil. Quando encontrei o recado, lamentei o desencontro. Queria muito conversar com ele.

Eis um dos poemas daquele envelope encantado:


Te chamei porque queria que guardasses
meus peixes e flores
agora que vou viajar.

Conhecerei novas terras, outras pessoas
e isso me enche de tanta alegria
que nem sei como expressar.

Prometo que te trarei presentes
e que te contarei tim tim por tim tim
tudo que passei.

Mas até eu voltar, dá uma força,
cuida bem dos meus peixes e flores.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O homem que tira sentimento de pedra

Jorge Adelar Finatto



Deus está no seixo como está no homem, na nuvem, no vento  e no peixe.



O ser humano pode conversar com pedras. É possível desvelar emoção adormecida na densa concentração de matéria.

À luz da obra escultória de João Bez Batti Filho, as pedras são seres vivos.

As esculturas de basalto do artista conversam com o observador, fazem pensar e comunicam sentimento. São seres falantes que pulsam e querem partilhar beleza. Transcendem a condição de coisa vulcânica, arrepiam-nos ao leve toque.



São rochas que, antes de tornarem-se esculturas e adquirirem vida, dormiam como qualquer outra em remota obscuridade. Agora que nasceram e respiram, têm histórias para contar, e nos contam.

A visão desses objetos de criação nos leva a algumas considerações.

Existem memória e mistério ocultos na profundeza da pedra.

A emoção habita o álgido coração da rocha.

A vida é breve, o basalto é eterno

Uma secreta linguagem irmana Bez Batti e as pedras.

O trabalho paciente do escultor demanda força física para o duro enfrentamento. Com inspiração, ideias claras e perseverança, ele extrai raras revelações.

Ouçamos o que diz Ferreira Gullar: "Em arte, todo fazer é uma aventura imprevisível. Por isso, como o basalto é duro, e o risco, maior, Bez Batti, antes de atacá-lo, desenha a forma que pretende esculpir. Mas com isso não exclui de todo o imprevisível que nasce da resistência da pedra à ação que a agride, embate em que se misturam a sabedoria adquirida pelo escultor e a aceitação do acaso que se infiltra em sua ação".¹

O basalto é a terceira rocha mais dura que há na natureza. Origina-se de antiquíssimos derramamentos vulcânicos.

Egípcios, sumérios e pré-colombianos estão entre os poucos povos que se aventuraram a trabalhar com gravação e escultura em basalto.

O irmão rio
Bez Batti dialoga com as pedras desde a infância, na beira do Rio Taquari, no Rio Grande do Sul, onde vivia com a família.

O menino saía em solitárias caminhadas pela beira do rio (que é uma continuação do Rio das Antas), indo ao encontro dos seixos em suas margens e leito. Atravessava escarpas, sumia na sombra frondosa do arvoredo sobre a correnteza azul.

Nascido em Venâncio Aires (RS) em novembro de 1940, Bez Batti (tem o mesmo nome do pai, um imigrante italiano severo e trabalhador) um dia mudou-se para Bento Gonçalves. Fixou ateliê e residência na Linha São Pedro, numa casa de basalto com mais de cem anos, que faz parte dos Caminhos de Pedra, itinerário cultural onde se documenta a história da imigração italiana.





Desde então nunca ficou muito tempo longe do Rio das Antas. E quer que suas cinzas sejam espalhadas sobre as águas no dia em que morrer.

O Rio das Antas, essa criatura murmurante que caminha pela Serra do Rio Grande do Sul desde o início dos tempos.

O rio e seu ambiente ocupam o centro das preocupações ecológicas de Bez Batti. Há alguns anos administradores públicos vêm ali desenvolvendo projetos de engenharia, envolvendo represamento de águas e instalação de usina elétrica. Estas obras estão alterando a conformação do leito, submergindo áreas onde antes se podiam ver corredeiras, cristalinos lajeados entre as encostas verdes da mata. O rio escorrendo sobre o basalto.

De tanto conversar com as pedras e as águas, Bez Batti ganhou-lhes a confiança. Tornaram-se conviventes.

Os pequenos seixos e os altos penedos confidenciam-lhe coisas.

Falam de um tempo ancestral em que o Rio das Antas era um lugar povoado de claridade. Nele homens, bichos, plantas e pedras viviam em harmonia. Entendiam-se através da língua da intuição, do toque, do olhar demorado, da conversa, do respeito.

As esculturas do artista nos remetem ao encantamento de formas silenciosas, poéticas, sensuais. As saliências e concavidades nos levam à aurora da criação do mundo.

A arte africana toca o escultor muito de perto. Também marcam sua sensibilidade artistas como Pablo Picasso, Amedeo Modigliani, Constantin Brancusi, Henry Moore, e a arte antiga.

Basalto sanguíneo e o Arroio Tega

Em suas longas caminhadas pela natureza (ele não dirige, alguém o leva até os lugares de observação, pesquisa e meditação), descobriu novas faces, formas e cores do basalto. Segundo afirma, Caxias do Sul está erguida sobre uma das mais impressionantes províncias minerais de basalto que se tem conhecimento. Provavelmente não existe outra região com essa característica.



Além do basalto cinza, o mais comum de todos, ali se encontram inusitadas rochas de cor verde, verde-oliva, cacau, negra, rosa.

O basalto sanguíneo é resultado da persistente procura de Bez Batti. Identificou-o pela primeira vez no leito do Arroio Tega, que atravessa Caxias do Sul. Uma pedra tão bela quanto rara. O escultor acredita que, pelas evidências que colheu até hoje, o sanguíneo só existe no leito do Tega.

O encantador de pedras

Bez Batti é este artista que ousou abrir portas para uma maneira diferente de fazer escultura. Pagou um alto preço por isso. O caminho foi duro como um paredão de basalto.

Onde só havia rigidez mineral e o peso abissal da noite de milênios ele encontrou delicadeza e sentido.

Só um homem obstinado pela vida e pela beleza, absolutamente devotado à sua arte, poderia atingir os resultados que Bez Batti alcançou. Isto depois de enfrentar todas as incompreensões, limitações materiais e espirituais que o nosso meio costuma impor àqueles que se arriscam pelos caminhos da arte e da sensibilidade.




Ele nos mostra que existe beleza em estado bruto, esperando quem a desvele. E comprova, com seu ofício, que é preciso trabalhar muito para merecer o belo.

O senhor das pedras é também o homem da fé inabalável no trabalho. Nunca esperou apoios e estímulos, infelizmente quase inexistentes.

Construiu com as mãos uma arte inaugural.

Um encantador de pedras, ele diz que gostaria de ser (e é).

Bez Batti consegue extrair claridade do elemento mais primitivo que existe na natureza.

O que acontece com as rochas nos interstícios, nos poucos momentos de descanso do escultor? Elas se calam, retornam ao estado inanimado, por falta de seu poeta.

A arte, caminho para a iluminação

O que será o trabalho de uma vida senão esse lapidar constante sobre nossas imperfeições?

Ninguém nunca está completo. Ninguém é um bom ser humano por acaso.

Há que pegar o cinzel e reconstruir o homem e a mulher. É preciso reinventar a vida.

Sim, de toscas pedras podem brotar preciosos pássaros, plantas, frutos, cabeças humanas, torsos, semblantes, nichos, naturezas vivas, maternidades, segredos, tartarugas, peixes, rios, abstratos jardins.



Das mãos e da obstinação de Bez Batti nasce a maravilha. 

Até Bez Batti ir viver na beira do rio, ninguém conversava assim com os seixos e as rochas. Ninguém saía a andar pelo mundo armado apenas com o coração e a força do invencível cinzel.

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1. Uma poética do basalto. Texto de Ferreira Gullar no livro Bez Batti - Esculturas, do Instituto Moreira Salles, São Paulo, outubro de 2006.

2. Crédito das imagens:  1 - A foto de Bez Batti é de autoria de Ricardo Chaves. 2 - As fotos das esculturas são de Valdir Ben, que acompanha o escultor há mais de trinta anos; algumas delas estão publicadas no portal Artista Net.   

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Ilha de San Michele, ilha dos mortos


Jorge Adelar Finatto


vitrine veneziana. photo: j.finatto

A Ilha de San Michele repousa serena diante de Veneza.

Não devemos perturbar o sossego de seus habitantes. Na gôndola em que navegamos em torno desse território calado, nada deve ser ouvido além do remo na água verde-safira. Entre os altos muros de ocres tijolos, à sombra de ciprestes, os mortos descansam na antiquíssima ínsula.

San Michele é um pequeno pedaço de terra no Mar Adriático, mas é, acima de tudo, uma metáfora.

A ilha dos mortos tem o olhar voltado desde o exílio para a República Sereníssima.

Ilha de San Michele, ao fundo. photo: j.finatto

A ilha-cemitério é um testemunho da brevidade humana e um alerta contra as vaidades do mundo.

Façamos silêncio, portanto, nessa viagem pelas cercanias de lugar tão despojado.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Borges e a névoa do tempo

Jorge Adelar Finatto




Gradualmente, o aprazível universo o foi abandonando; uma insistente névoa apagou as linhas de sua mão, a noite se despovoou de estrelas, a terra era insegura sob seus pés. Tudo se afastava e se confundia. Quando soube que estava ficando cego, gritou; o pudor estóico ainda não fora inventado e Heitor podia fugir sem menoscabo. "Não verei mais (sentiu) nem o céu cheio de pavor mitológico nem este rosto que os anos vão transformar." ¹

Jorge Luis Borges

Buenos Aires, calle Tomás Manuel de Anchorena, 1660. Neste endereço está a Fundación Internacional Jorge Luis Borges (http://www.fundacionborges.com/lafundacion/lafundacion.html).

Aqui se encontram objetos de uso pessoal e documentos que pertenceram a Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo, entre eles duas bengalas, manuscritos, fotografias, talismãs, medalhas, títulos, coisas curiosas como uma vestimenta de samurai, e livros, muitos livros, como as primeiras edições de suas obras, e publicações de outros escritores, como Os Lusíadas, de Luís de Camões.

O lugar é silencioso. Os iniciados na obra de Borges vêm a esta casa numa peregrinação em busca da memória do mestre. Querem ver algum sinal, algum vestígio, saber se Borges de fato existiu ou se foi só um sonho sonhado pelo outro Borges, o fantasma que vaga pelos espelhos e bibliotecas.



Na escadaria da antiga casa, paira o seu retrato. A senhora que atende o visitante é atenciosa. Informa que no andar superior será montado, em breve, o quarto do autor de Fervor de Buenos Aires (1923), Historia Universal de la infamia (1935),  Ficciones (1944), El Aleph (1949), Los Conjurados (1985), entre outros. Neste espaço todos os detalhes passam pelo exame da guardiã da memória de Borges, María Kodama,  viúva do escritor.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Cais

Jorge Adelar Finatto



Tem dias em que saímos

com o corpo nu

para alojá-lo na primeira copa de árvore

e chorar longe dos homens


dias em que os desejos

até os mais secretos

sucumbem apagados

na penumbra


tempo de total privação

da carne e do sonho

tardes em silêncio reveladas

intervalo entre dois mundos