terça-feira, 9 de março de 2010

O aborto e o Papa

Jorge Adelar Finatto

 
 
A frase na parede de um prédio público, quase à beira do Rio da Prata, me fez parar sob um sol forte, a poucas quadras do belo e tradicional Teatro Solis, em Montevideo, em janeiro passado.
 
O Uruguai é um país de gente que lê, opina, discute, participa. O que me motivou a fotografar?
 
Primeiro, o argumento. Se o Papa fosse mulher, uma papisa, portanto, a questão do aborto teria mesmo outro tratamento? Será que a compreensão do problema do aborto é uma questão só de gênero?
 
Segundo, eu não tenho opinião definitiva sobre o assunto e não faço julgamento moral a respeito. O que eu queria é entender.
 
O grafite montevideano expressa a opinião de milhões e milhões de mulheres no mundo inteiro. O aborto é uma questão de gênero. Mas não só.
 
Gerar ou não uma vida no próprio ventre é, em boa medida, uma decisão da mulher, por diversas razões.
 
A rejeição da gravidez ou a omissão dos homens em relação ao fato é uma delas.
 
A legalização do aborto é uma das faces de um problema maior, mas está longe de ser a principal.
 
A afetividade, a sexualidade e a responsabilidade pela geração da vida estão intimamente ligadas. Fazer sexo, sexo casual, é diferente de fazer amor.
 
A indústria da propaganda, em geral, separa o corpo e o sexo do resto. Existem corpos lindos, mas não existe espírito nesses corpos.
 
Corpos maravilhosos de mulheres são utilizados para vender qualquer coisa. O mesmo também acontece agora com corpos masculinos.
 
A erotização começa na infância, através dos comerciais, filmes, programas, séries e novelas de televisão.
 
Coisas como compromisso nas relações, autoestima, estima e respeito pelo outro são tratadas de maneira  residual.
 
Em vários países o aborto foi legalizado.
 
No Brasil, a discussão permanece e sua prática ainda é crime, salvo nos casos em que não houver outro meio de salvar a vida da gestante e quando resultar de estupro (desde que precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal).
 
Dizem os defensores da legalização que mulheres pobres, que não podem mais ter filhos, muitas vezes são levadas a fazer aborto em condições sub-humanas, longe do sistema público de saúde, com elevado índice de letalidade, enquanto mulheres com boas condições econômicas pagam por procedimentos particulares e recebem melhor atendimento.
 
Informação do Ministério da Saúde estima em 1,4 milhão de abortos clandestinos no Brasil por ano, conforme dado colhido do site Themis, Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, de Porto Alegre.
 
Dizem também os defensores do aborto que a mulher tem o direito de dispor do próprio corpo.
 
Os que são contra a legalização afirmam que a mulher não pode interromper uma vida que já não lhe pertence, mas é de outra pessoa depois da concepção.
 
Eu não sou especialista no assunto, mas também não sou hipócrita.
 
O aborto é um tema a ser tratado por toda a sociedade, mulheres e homens.
 
Tratado, sim, mas num espectro mais amplo do que a mera legalização, que, pelo que vejo, acabará acontecendo.
 
Está na hora de pensar a sexualidade humana de modo mais responsável, penso eu. Isso é mais do que simplesmente distribuir milhões de camisinhas no carnaval e achar que está tudo certo.
 
Este grafite na parede de um edifício, em Montevideo, sob o sol escaldante do Rio da Prata em janeiro de 2010, me fez parar e tentar entender.
 

segunda-feira, 8 de março de 2010

A hora do farelo

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
O coração do outono pulsa ao som dos Noturnos de Chopin.
Enquanto filósofos desvelam os insondáveis desígnios da condição humana, eu espero pelo pinhão cozido na chapa do fogão a lenha.
O vento roça os telhados e janelas.
A chegada da estação se adivinha na neblina, um pouco de frio, amarelo nas folhas.
Essas coisas me vêm na hora imprópria do farelo, olhando a estrela.
Espero que os pinheiros não se deixem morrer na crise cósmica que atravessamos.
O egoísmo e a maldade humana estão nos levando para o buraco.
Por cima vêm as catástrofes naturais como poucas vezes antes.
Existe alguma coisa que cala e sente quando vem o anoitecer, que olha a lonjura das estrelas, observa o mistério inumerável da vida, sabe que o tempo é curto pra conhecer e sentir tanta beleza.
Existe, na revelação do farelo, o sentimento de que faltam mais encontros com os amigos.
Faltam mais mesas pra ficar com as pessoas a quem amamos.
Há um excesso intolerável de realidade.
A beira da noite, no outono, impõe austeridades.
Ermos são os caminhos da hora do farelo.
As folhas amarelas do tempo caem em volta dessa hora descarnada.
A beleza da vida num voo de borboleta.
A impressionante leveza que a faz girar, levitar, divagar entre flores e ramos.
O ocre do outono deita sedas nos caminhos.
A palavra escrita recolhe nossa presença no mundo.
A palavra existe pra ser partilhada.
A hora do farelo traz a vontade de voar sobre os abismos e certezas.
Em que lugar enterraram o mistério, em que ilha de ausência no meio do oceano?
Talvez longe demais.
Se ao menos um anjo surgisse dizendo que nada foi em vão…


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Foto: J. Finatto

sábado, 6 de março de 2010

Johnny Alf e a brisa

Jorge Adelar Finatto


Entre nós e a maravilha, há o trabalho silencioso de homens e mulheres na arte.

São pessoas que entram na nossa sensibilidade, tocam fundo a nossa emoção e o nosso pensamento.

De Cenair Maicá a Chopin, de Heitor Saldanha e Jorge Luis Borges, muitos desses criadores andam comigo nas duras ruas do cotidiano, todos fazem parte da família espiritual que me ilumina.

O pianista, compositor e cantor Johnny Alf era um desses seres especiais.

Morreu na quinta-feira, 04 de março, aos 80 anos, de câncer de próstata, em Santo André, na região do ABC paulista. Nascido em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, de família muito pobre, acabou se tornando um dos precursores e criadores da Bossa Nova, movimento que projetou mundialmente a música brasileira a partir dos anos 50 do século passado.

Alf construiu uma obra absolutamente original. Compôs obras-primas como Eu e a brisa, Ilusão à toa, Céu e mar, Olhos Negros, Fim de semana em Eldorado, Rapaz de bem, entre tantas outras. Foi o delicado inventor de harmonias raras, sofisticadas, inesquecíveis.

Não existe um continuador para  a obra de Johnny Alf . O seu modo único de criar e cantar termina com ele.

A experiência estética de Alf resulta da combinação de gêneros como samba, samba-canção e jazz. Foi cultuado pelos grandes nomes da Bossa Nova como Tom Jobim, João Gilberto e Newton Mendonça, que acompanhavam suas apresentações na boate Plaza, em Copacabana, entre 1953 e 1954. Menores de idade, Carlos Lyra, Roberto Menescal e Luís Carlos Vinhas assistiam clandestinamente aos concertos de Alf na boate.

Entre as suas influências, estão os americanos Nat King Cole e Sarah Vaughan.

Um homem muito tímido, humilde e gentil. Era preciso fazer silêncio para ouvi-lo falar.

O seu talento ainda não foi reconhecido como devia. Não tinha queixas, era uma pessoa nobre.

Dizem que os grandes artistas vêm ao mundo continuar a obra de Deus.

Alfredo José da Silva, o nosso Johnny Alf, com certeza foi um desses escolhidos.

Se prestarmos atenção na brisa, provavelmente ouviremos ao longe a voz cálida e suave de Johnny Alf.


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Foto de Johnny Alf. Divulgação do show realizado pelo artista no Sesc Vila Mariana, São Paulo, 2009. Fonte: site do jornal O Estado de São Paulo.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Cartas perdidas

Jorge Adelar Finatto 


O que acontece quando uma carta não chega ao destinatário? Em que misteriosos desvãos se perdem essas correspondências que não encontraram seus legítimos donos?

A comunicação postal faz parte da vida humana. Um mundo sem cartas e sem correio é algo sombrio.

A livre expressão do pensamento, nas cartas, é vista como perigosa pelos estados autoritários. As ditaduras limitam e, não raro, suprimem a liberdade de correspondência.

Esse direito está assegurado no art. XII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e, no Brasil, pela Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XII).

As cartas e o correio estão na origem da civilização. Os mensageiros sempre existiram. Relatos bíblicos contêm referências expressas a respeito deles, como se vê no livro de Jeremias 51:31  (escrito no ano 580 antes de Cristo) e no livro de Ester 3:13 (escrito por volta de 475 a.C.)

Com o advento da internet, o correio tornou-se lento no que diz com a troca de mensagens. Mas o velho sistema persiste, entre outras razões, porque o modo de tratar dos assuntos nas cartas é muito diferente daquele do e-mail, por exemplo. Além disso, o correio permite a remessa física de documentos e objetos.

Voltemos. O descaminho de uma correspondência pode mudar a vida de uma pessoa. O raro leitor não acredita?

Pois foi isso mesmo que aconteceu com o médico norte-americano Royal Ellwood Durham.

O fato só veio à tona em fevereiro de 1987. O correio dos Estados Unidos entregou-lhe, naquela ocasião, dois pacotes com data de 1917. Portanto, com 70 anos de atraso…

O Dr. Ellwood Durham tinha então 92 anos e vivia num asilo na localidade de Linwood, Nova Jersey (nordeste dos EUA).

A correspondência atrasada continha dois documentos assinados pelo ex-presidente dos Estados Unidos Thomas Woodrow Wilson. O primeiro deles consistia na nomeação de Durham para o posto de primeiro-tenente da seção médica do corpo de oficiais da reserva da Marinha americana, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O segundo nomeava-o médico do Jefferson Medical College.

Os pacotes chegaram misteriosamente ao hospital episcopal da Filadélfia, Pensilvânia (costa leste dos EUA), no dia 04 de fevereiro de 1987. Naquele hospital o velho médico havia trabalhado entre 1916 e 1917. Dali foram remetidos para o asilo.

Durham surpreendeu-se, como não podia deixar de ser. Custou acreditar no que via. Ignorava que uma vez o presidente dos Estados Unidos havia se ocupado dele, decidindo coisas importantes a seu respeito.

O médico soube, então, que entre a vida que foi e a que poderia ter sido havia uma correspondência extraviada. Dois documentos que se perderam no caminho, e só encontrariam o destinatário sete décadas depois, quase centenário, enredado nos escaninhos da memória.

As armadilhas do correio e do tempo não conseguiram extraviar o bom humor de Durham. Ao ler o conteúdo dos documentos, comentou: “Isso é uma coisa extraordinária, depois de tanto tempo. Dá o que pensar. O que terá acontecido em todos esses anos?”.

O fato pode levar a algumas incômodas digressões.

E se fosse uma carta contendo uma declaração de amor?

O que poderia fazer com isso setenta anos depois?


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Foto: Jorge Finatto
jfinatto@terra.com.br

quinta-feira, 4 de março de 2010

A face do amanhecer

Jorge Adelar Finatto




A palavra é claridade na casa escura.
Que barulho é esse no corredor?
São os passos perdidos de quem não voltou.
Há um lírio cortado na mão do arlequim.
O sangue brota do ventre frio da solidão.
Que agonia é essa subindo a escada?
São as correntes da memória arrastando a dor.
Quando a janela se abrir, haverá talvez uma flor.
A palavra tece a face do amanhecer.


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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 3 de março de 2010

O barco mais triste do mundo

Jorge Adelar Finatto



 
A minha paixão por barcos e navegações sempre me leva a cidades de mar ou rio. Sou um bicho das águas.

O fato de ter nascido e de viver numa cidade serrana é apenas uma das contradições que me definem.

O sonho menino de tornar-me marinheiro jamais me abandonou. Por isso, talvez, essa busca recorrente pelas águas e por embarcações.

A nostalgia dos barcos não sai do meu coração.

Em Coimbra, existe um barco de passageiros com o nome de Basófias, fundeado no pequeno cais, perto do centro da antiquíssima cidade portuguesa.

Resolvi um dia ir ao encontro do Basófias e fazer um passeio pelo Mondego, o rio que me faz sentir saudades de todos os rios do mundo.
Ocorre que, nas três ocasiões em que fui ao cais, não consegui realizar a navegação.

Numa das vezes, o barco estava em manutenção; noutra, não havia passageiros além de mim; numa outra ainda, o tempo mau não permitiu levantar âncora.

Em suma, para meu desencanto, nunca consegui navegar no Basófias. A nave permaneceu, no meu imaginário, como um barco que jamais saiu do cais.
photo: j.finatto. Coimbra
A tripulação do Basófias é composta por marinheiros uniformizados a rigor, afáveis no trato. A pose e o orgulho náutico não deixam dúvida de que estamos diante de calejados navegadores.

Às vezes, fico pensando.

O Basófias, nas amarras que o impedem de lançar-se ao rio e realizar o destino para o qual nasceu, é o barco mais triste do mundo.

Mas não deixa de ter sua graça a imóvel embarcação.

De certa forma, o Basófias é a metáfora da existência de muitos.

Dele me enterneço, porque é o retrato de tantas vidas que ficam à margem, esperando no cais, esperando por uma viagem que nunca acontecerá.


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Fotos: J.Finatto. Imagens de Coimbra, Portugal.

terça-feira, 2 de março de 2010

O tempo de construir a palavra

Jorge Adelar Finatto


Ana Luísa Amaral é uma das vozes mais importantes da moderna poesia portuguesa.

Nascida em Lisboa em 1956, ensina Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutorou-se em Literatura Norte-Americana, com uma tese sobre a poeta Emily Dickinson.

É autora de onze livros de poemas, entre os quais Minha Senhora de Quê (1990), Coisas de Partir (1993), Às Vezes o Paraíso (1998), Imagias (2002).

Também publicou obras para a infância, como Gaspar, o Dedo Diferente e Outras Histórias (1999), e A História da Aranha Leopoldina (2000).

Está traduzida para diversas línguas, como castelhano, inglês, francês, alemão, holandês, russo, búlgaro, croata, entre outras. Sairá este ano um livro seu na Suécia e uma antologia de poemas na Itália.

Desde a idade de nove anos vive na cidade de Leça da Palmeira, de frente pro mar, perto da cidade do Porto.

Em 2007 recebeu o Prêmio de Poesia Correntes D’Escritas /Casino da Póvoa, pelo livro A Gênese do Amor (2005), também galardoado na Itália com o Prêmio de Poesia Giuseppe Acerbi.

Em 2008, recebeu o Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores pelo livro Entre dois rios e outras noites (2007).

A entrevistada faz do poema um caminho através do silêncio.

Nele percorre a concretude e a transcendência dos seres e coisas do mundo.

Parece vir de outras esferas essa experiência de existir e de contar que habita os poemas de Ana Luísa.

De Lisboa com o Tejo ao fundo, viagem pelas delícias e asperezas do verbo e do ser, passagem por anjos caídos, andanças até a mais alta estrela, retorno ao chão humilde dos solitários e abandonados, o peso do tempo a suportar, tudo pode ser matéria de poesia aos olhos e ao coração da poeta.