segunda-feira, 20 de junho de 2011

Kabuki do solitário samurai

Jorge Adelar Finatto



Devia ter dito: cuidado, frágil, delicado. Devia ter escrito num cartaz, em letras vermelhas, pregado na testa: atenção, favor não quebrar um coração. Mas não. Havia, qual Adamastor apaixonado, o pudor de não reconhecer a profundidade impossível daquelas águas.

Devia ter anunciado, sem receio, entre mas pise com desvelo. Mas não, todos os avisos foram desligados naquele barco desmantelado, em sua louca travessia pelo mar de seda ondulante.

Como um samurai na leve embarcação de bambu, rumo às ilhas desertas, ele se jogou na colossal aventura. A lua de papel de arroz lilás num céu azul clarinho.

Devia, ó devia, ter imaginado o previsível abismo. Devia ter falado isto e muitas outras coisas, dias de sol e nevoeiro na abertura do postigo, os primeiros ruídos matinais na casa da solidão, os ventos e os mastros desnudos no cais escondido.

A presença de velhas e incuradas cicatrizes o levou a arrostar de peito aberto a temerária navegação.

Na praia, deitado na areia fria, a cabeça entre os braços abertos em candelabro, pernas recolhidas. A chuva molha a face apagada, o quimono com a sanguínea flor bordada, a nódoa do abandono no peito em silêncio.

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Do livro Calado observador do fim do mundo, Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2010.
Foto: J. Finatto

sábado, 18 de junho de 2011

José Saramago, presença e falta

Jorge Adelar Finatto


José Saramago foi um escritor brilhante que nos legou uma obra notável (o que, em si, não é pouco). Mas foi também um cidadão do mundo, um que sempre se posicionou toda vez que sua consciência se deparou com a injustiça. Jamais se escondeu atrás das honrarias literárias e das conveniências do mercado e do poder. Podíamos discordar de algumas de suas ideias e opiniões, mas ninguém ousaria colocar em causa a sua honestidade, o seu apreço incondicional ao justo.

Não sei se houve, na segunda metade do século XX e no início deste, outro escritor com tamanha lucidez ao pensar as difíceis questões que assolam o planeta globalizado (global na violência contra os menos favorecidos, na prepotência e na arrogância dos que têm mando, na injúria aos mais fracos, nunca ou quase nunca na distribuição dos bens e da justiça). Poucos como ele tiveram tanta coragem intelectual. 

Minha admiração pelo autor de O conto da Ilha desconhecida já era grande quando ele - primeiro Prêmio Nobel de Literatura da Língua Portuguesa - veio para o oceano da internet com seu blogue O Caderno de Saramago, em setembro de 2008. Saramago virou blogueiro com a naturalidade de um adolescente candidato a escritor. Fez-se presente em nossas vidas diariamente com seu talento e seu espírito humanista. Tornei-me freguês do Caderno e todos os dias, lá pela meia-noite, ia em busca do alimento servido naquela mesa generosa e acolhedora.

  Ninguém é eterno, mas pessoas como Saramago bem que podiam dar-nos um tempo maior de convivência, permanecendo por mais tempo entre nós. A obra, importante e bela, permanece. A falta do homem, contudo, é incontornável. Às vezes me vejo pensando no que Saramago diria disto ou daquilo, como reagiria diante dos dramas que nos afetam, que crônica escreveria de um dia de sol numa praça de sua amada Lisboa.

Irmão mais velho, irmão bom, o nosso Saramago. Hoje, um ano após sua morte, reproduzo o texto que publiquei sobre o escritor.

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Post scriptum*

Foi um dia difícil aquele 31 de agosto de 2009. De madrugada, em torno de uma e meia da manhã, li, quase por acaso, o texto intitulado Despedida, em que José Saramago (falecido no dia 18 de junho de 2010, aos 87 anos) declarou que encerrava ali seu blog O Caderno de Saramago. Motivo declarado: precisava de tempo para escrever um novo livro.

A notícia era uma tristeza.

Divulguei a informação no site Judiciário e Sociedade (na época, não tinha ainda blogue), tão logo publicada na rede. Até onde sei, o autor português era o único Prêmio Nobel de Literatura a manter um blogue. Isso revela a atitude participante, corajosa e humilde de um escritor consagrado que vinha cotidianamente à internet compartilhar suas opiniões, inquietações, esperanças, sentimentos e valores (penso que cada post pode ser um ato de criação literária e, no caso de Saramago, com certeza era) com leitores do mundo inteiro, em tempo real.

Era uma exposição rara, sabendo-se que o mundo virtual não é exatamente um território fraterno e transparente, havendo de tudo para qualquer gosto, principalmente para o mau gosto.

Pois Saramago deu-nos o exemplo, veio ao encontro de todos.

Escreveu belas e importantes palavras durante o tempo em que manteve o blogue, iniciado em setembro de 2008. Tornou a web mais sensível, inteligente e, sobretudo, mais humana. Ajudou a dar forma mais digna e mais viva ao mundo virtual.

No mesmo texto em que se despedia, acrescentou um PS, no qual deixava uma fresta aberta. Dizia que, se sentisse necessidade de comentar ou opinar sobre algo, poderia eventualmente voltar ao blogue.

Aqueles leitores que, como eu, levaram fé no PS foram recompensados: leram mais alguns raros posts que ele colocou no ar. Mas nunca mais voltou a ser o que era, aquela presença quase diária na vida de muita gente. Acredito que a saúde foi um dos principais motivos que determinaram o afastamento.

A internet ainda é um ambiente muito pobre em cultura e humanismo. É um lugar inseguro, onde sobram maldades, loucuras, vaidades e faltam exemplos, conteúdos, generosidades. Por isso, a presença de um Saramago foi tão fundamental quanto enriquecedora.

Sempre fui freguês do Caderno. Os textos foram reunidos depois em dois livros. Mas confesso a falta que sinto do blogueiro Saramago. O escritor, contudo, está muito vivo nas obras, na palavra partilhada.

Recomendo a visita ao site da Fundação José Saramago e, nele, um passeio pelo Caderno em seu ambiente natural. Certamente, é uma das melhores coisas que existem na internet e já faz parte de sua história.

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Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Foto: Saramago ao tempo em que escrevia o romance Caim. Fonte: acervo da FJS

*Post de 4 de agosto, 2010.
Adeus, Saramago, foi publicado em 19 de junho, 2010.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Andarilho do fim do mundo


Jorge Adelar Finatto



Caminho na tarde fria de Passo dos Ausentes. Ando à procura de ar limpo e claro. Sim, ar bom pra respirar no fatigado cenário de fim de outono (que pode ser, também, de fim de mundo). Nunca se sabe, do jeito que a coisa vai. Na bruma literária dos cartapácios, o mundo está acabando desde que avô Adão e avó Eva - dizem - foram expulsos do jardim.  Quem sabe?

O planeta na capa da gaita, tanta coisa triste acontecendo em todo lugar, tanta gente ruim estragando a vida dos outros. Exausto e sem ver muita saída (a não ser a estrada que me tira de onde não quero estar), subo a serra e saio a perambular.

É preciso fugir sempre do ar sinistro das salas. Quero estar caminhando numa estrada de chão batido como essa no dia em que tudo acabar (refiro-me ao meu fim de mundo pessoal, que o outro é mui vago e, se Deus quiser, não vai acontecer). Deus haja. 

A névoa faz o trabalho de embaçar as espessas lentes dos óculos e molha o capote de lã azul. 

Paciência, é preciso ter muita paciência. Não esquecer de cultivar paciência. Em todo caso, é bom ter uma grande paciência. Ando devagar para exercitar paciência e assim evitar ridículas quedas de andarilho de pouca visão. A valorosa máquina de fotografia, velha e boa Coruja, engatilhada na mão. Arma contra o lado obscuro.

Percebo o quanto o inverno mandou notícias através de seus mensageiros e eu não vi. Oficialmente o inverno chegará ao hemisfério austral em 21 próximo, mas suas tropas já avançaram sobre esta cidade perdida nos Campos de Cima do Esquecimento.

O general nevoeiro com seus enormes fios de cabelo e barba prateados vem à frente, montado no cavalo de nuvem.

Entre galhos desfolhados, árvores esquálidas, ninhos vazios  a descoberto, imagens imprecisas, abre-se, por um efêmero momento, em meio às lentes de fundo de garrafa, a luzerna do céu sobre a água.

Uma breve, rara aquarela. Não dura mais que poucos instantes, o suficiente para iluminar os ramos e a alma. Talvez pra lembrar que há sempre um recomeço. E que nada está perdido.

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Foto: J. Finatto

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Zeca Afonso

Jorge Adelar Finatto


Grândola, vila morena
terra da fraternidade
o povo é quem mais ordena
dentro de ti, ó cidade*
                   
Uma tarde de inverno europeu em 2002, de passagem por Coimbra, onde estava para conversar com estudantes da Faculdade de Letras, ouvia a chuva bater na janela do quarto do Hotel Botânico. Meu espírito andava às voltas com António Nobre, Eça de Queirós e o Mondego, esse rio que me traz saudades do Guaíba.

Em Porto Alegre, o Guaíba me dói porque não me deixa esquecer o Mondego.

A tarde já caminhava para a noitinha quando liguei a televisão na RTP. Foi quando ouvi, pela primeira vez, falar nele. No dia seguinte, fui a uma loja e comprei uma caixa com dois discos.

O que há no canto do poeta, compositor e cantor português José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos - o Zeca Afonso - que faz o coração da gente bater fundo e claro?

Dentro de ti, ó cidade
o povo é quem mais ordena
terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Que emoção é esta que nos convida a sair pelas ruas de mãos dadas?

De que profundeza brota essa vaga azul de sentimento que se alteia no horizonte e depois invade a cidade, distribuindo esperança em meio ao feroz egoísmo?

Em cada palavra que pronuncia, no canto geral que celebra a vida, Zeca Afonso fala-nos da gente, da terra, do compromisso com o justo. A voz que sincera se levanta vem de uma alma sensível, sedenta de justiça, harmonia entre os homens e beleza. Vem das origens de um povo esta voz forjada no sonho e na luta.

Zeca Afonso nasceu em Aveiro a 2 de agosto de 1929, filho de pai juiz e mãe professora primária, com os quais viveu em certos períodos, tendo, em outros, ficado aos cuidados de tios e tias. Morreu em Setúbal, em 23 de fevereiro de 1987.

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
em cada rosto igualdade
o povo é quem mais ordena

O canto de Zeca Afonso, comprometido com a fraternidade, oferece abrigo e consolo a pessoas do mundo inteiro. Não por acaso a belíssima Grândola, Vila Morena, é uma canção-símbolo dos novos tempos nascidos em Portugal com o movimento que se cristalizou na Revolução dos Cravos, a 25 de abril de 1974, que levou democracia ao país depois da longa escuridão da ditadura. 

Nós do Brasil precisamos conhecer a obra do Zeca Afonso.

À sombra duma azinheira
que já não sabia a idade

jurei ter por companheira
Grândola, a tua vontade

Grândola, a tua vontade
jurei ter por companheira
à sombra duma azinheira
que já não sabia a idade

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* Grândola, Vila Morena, letra e música de José Afonso.
Foto: José Afonso. Fonte: imagem do Google. O crédito será dado tão logo tenha informação sobre o autor.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Hay vida antes de la muerte?

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
Em Montevidéu, até os grafites têm espírito. As inscrições públicas nas ruas montevideanas não perdoam a superficialidade. Uma vez lidas, não deixam o caminhante em paz.

Pressentindo que seria um absurdo virar simplesmente as costas e ir embora, resolvi fotografar e trazer comigo a inquietante frase.

Hay vida antes de la muerte?

Não bastassem as perplexidades e angústias de cada dia, acrescentei agora mais esta ao meu baú de assombros.

Afinal, haverá mesmo vida antes da morte ou seremos apenas tristes fantoches com a boca rasgada e olhos opacos às voltas com o anonimato, o desamparo, a solidão?

O que sei é que há dias em que me sinto vivo. Parece que a morte ainda não foi inventada. Em outros, contudo, viver não vale um caco colorido de vaso quebrado.
 
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Foto: J. Finatto
Mais sobre a arte do grafite no texto Basquiat, anjo caído, de 28 de novembro, 2010.

domingo, 12 de junho de 2011

Fernando Pessoa, 123 anos

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. Lisboa

A vida prática sempre me pareceu o menos cómodo dos suicídios. (Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, trecho 247)

Fernando Pessoa completaria 123 anos de vida nesta segunda-feira, 13 de junho, ele que nasceu em Lisboa em 1888 e ali morreu em 1935, aos 47 anos. Poucos, raros poetas foram tão bem acolhidos e amados pela posteridade como ele. Uma vida aparentemente banal, sofrida, estoica, verteu para o mundo uma obra absolutamente única e encantadora. A vida do homem Fernando Pessoa foi e continuará a ser um grande mistério em meio ao aparente nada que o cercou, por maiores que sejam os esforços de seus biógrafos e estudiosos.
Para comemorar o aniversário, publico este texto que resultou de um encontro que tive com o senhor António Seixas, filho de Manassés, barbeiro de Pessoa, em 2007.

O barbeiro de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa habita um quarto do apartamento do primeiro andar, lado direito, do edifício nº 16 da Rua Coelho da Rocha, no bairro Campo de Ourique, em Lisboa. Cuida da aparência e dos fatos (ternos), que compra de bons fornecedores, apesar das sérias dificuldades financeiras. O que ganha trabalhando em casas comerciais, como responsável pela correspondência em inglês e francês, é insuficiente.

Costuma frequentar a Barbearia Seixas, quase na frente do edifício. Para lá se dirige seguidamente. Quando a única cadeira está ocupada por outro cliente, o poeta faz um discreto gesto, uma senha para o barbeiro Manassés. Este, tão logo se desocupa, dirige-se ao apartamento onde Fernando vive na companhia da irmã, do cunhado e da sobrinha. A visita de Manassés tanto pode ocorrer de dia como à noite.


A pequena sala abre a porta de madeira marrom sobre a calçada. Faz parte de um prédio antigo, castigado. Trata-se, hoje, de uma oficina de equipamentos de som. Nesse território perdido no tempo, encontro o senhor António Seixas, quase octogenário, que vem a ser o responsável técnico (ou será melhor dizer o alquimista?) do estabelecimento. É o filho de Manassés.*

No local exíguo, acumulam-se muitos aparelhos. Não existe uma ordem aparente. Mover-se, ali, requer estreitamento de ombros e movimentos de cintura. Coisa difícil.

Peço licença para entrar. António me recebe com um sorriso. Revela-se gentil no trato, tem excelente disposição física e boa memória.

Encantado pelos sons mágicos que brotam das caixas lumisosas, António Seixas não seguiu a profissão do pai, que ali se estabeleceu há mais de oitenta anos.


O menino António, com cinco, seis anos de idade, muitas vezes acompanhou Manassés até o quarto do Senhor Pessoa (assim refere-se ao poeta). Faço perguntas a respeito dessas incursões. António não é mesquinho nas respostas. Ao contrário, demonstra satisfação em recordar aquele tempo e a relação do pai com Pessoa.

Fernando mudou-se para a Rua Coelho da Rocha em 1920, tendo ele próprio alugado o imóvel. Cansado de perambular por quartos de aluguel e de parentes em Lisboa, fixa naquele apartamento e naquela rua o seu lugar de viver, o recanto de aconchego físico e emocional que lhe dará condições de desenvolver o trabalho literário num dos períodos mais produtivos.

Ali viveu com a mãe Maria Madalena e os irmãos, após o retorno destes de Pretória, África do Sul, onde o padrasto João Miguel Roza era cônsul, tendo lá falecido. Mais tarde, após a morte da mãe, foram morar naquele local a irmã Henriqueta Madalena (Teca) e o cunhado, coronel Francisco Caetano Dias. A sobrinha Manuela nasceu nesse apartamento. Neste endereço, o poeta viveu até a morte em 1935.

Manassés, segundo António, era mais do que barbeiro do Senhor Pessoa, era também seu amigo e confidente.

Fernando os recebia e os levava até seu quarto. António Seixas recorda o forte cheiro de tabaco daquele lugar pequeno e pouco iluminado, que tinha apenas uma janela. A primeira providência de Manassés, enquanto conversava com o Senhor Pessoa, era limpar os cinzeiros cobertos de “beatas” (pontas de cigarros já fumados).

António lembra a mesa do quarto cheia de papéis, os livros apertados em duas estantes. Perto da cama, a cortina da janela iluminada pela luz que vinha da rua. Observa que o Senhor Pessoa era um homem reservado, educado, atencioso com o menino.

Aqueles que conviveram com o poeta dizem que ele era especialmente afável com os mais humildes. Pessoa ouvia com atenção o que lhe falava Manassés. Durante muitos anos o poeta comeu em restaurantes, bebeu e fumou muito, pouco dormiu. A morte com apenas 47 anos talvez tenha sido apressada pela vida que levou.

O edifício número 16 da Rua Coelho da Rocha abriga atualmente a Casa Fernando Pessoa. Concebida pela Câmara Municipal de Lisboa, foi inaugurada em 1993 e destina-se a preservar a memória do poeta. Encontra-se nela a biblioteca pessoal do escritor, com muitas anotações feitas por ele em diversos dos cerca de mil e duzentos volumes. Os livros tratam dos mais variados ramos do conhecimento. Entre objetos e documentos pessoais do autor, estão os óculos, canetas, máquina de escrever, fotografias, documentos e manuscritos, além dos poucos móveis que o acompanharam em vida. A famosa arca onde guardava seus escritos, que estava em poder da família, foi leiloada e está agora com um colecionador no norte de Portugal.


O que mais impressiona na Casa é o quarto do poeta. Um espaço pequeno, humilde, um tanto sombrio. Prova de que, para o verdadeiro criador, não existe lugar melhor ou pior para escrever. A arte muitas vezes floresce em lugares tristes e sem perspectiva, talvez até mesmo como reação do espírito à adversidade.

Os restos mortais de Pessoa repousam hoje no Mosteiro dos Jerônimos, no bairro de Belém, diante do Tejo. Em sua companhia, naquele lugar, está o não menos poeta Luís de Camões, além de Vasco da Gama.

Em meio à conversa, António Seixas me chama a atenção para um equipamento sonoro que ele mesmo inventou. Não existe nada melhor em matéria de som, segundo afirma. Liga o aparelho em alto volume, pergunta se já ouvi algo com esta qualidade. Não sei exatamente o que responder, mas o entusiasmo e a confiança do meu interlocutor são tamanhos que não tenho nenhuma dúvida a respeito do valor deste invento.

Despeço-me de António, agradecendo a generosidade por falar de suas lembranças do Senhor Pessoa.

Saio a andar pela rua que tantas vezes ouviu os passos do poeta. Um dos grandes gênios da literatura universal.

Vou até o restaurante da esquina. Tomo um caldo verde.


Mar Português
                   Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

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Fotos: J. Finatto

Pela ordem: 1) grafite do poeta em rua do bairro Chiado, em Lisboa; 2) Casa Fernando Pessoa, onde viveu o poeta; 3) oficina do Senhor António Seixas, onde funcionou a Barbearia de Manassés, seu pai; 4) desenho de Pessoa numa das janelas do edifício.
*Este encontro ocorreu em 2007.
O barbeiro de Fernando Pessoa foi publicado no blog em 15 de abril, 2010, e em 14 de março, 2011.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Homem com naufrágio dentro

Jorge Adelar Finatto




O homem morava dentro do escafandro.
Os peixes o acompanhavam aonde quer que fosse.
Habitava o território de uma aquarela marinha.
As tardes povoadas de barcos, gaivotas, ventos, búzios.
Ela partiu certa manhã para um giro em torno da ilha onde viviam.
Gostava de ouvir o rumor azul do mar batendo nas pedras.
Nunca mais retornou.
O homem foi mirar os longes na beira do alto penhasco.
A barba cresceu, o tempo misturou as folhas do calendário, enquanto ele esperava.
A lágrima verteu cálida sobre a face fria.
Ele foi então morar no interior do escafandro.
Homem com naufrágio dentro.
Ela estava deitada no leito submerso do seu coração.
Nada em sua nudez lembrava a cálida presença.
O rosto parecia sereno, feliz.
Os cabelos flutuavam como anêmona.
Ele quis morar com ela no fundo das águas.
O irremediável abismo o chamava.
Muitas noites adormeceu com a esperança de não acordar.
Os peixes desenhavam coloridos traços ao redor do homem para despertá-lo.
Um dia ele acordou nas profundezas da manhã austral.
Uma força impressionante puxou o escafandro, ele enfim subiu,
arrastando suas correntes.
A praia vazia, as palmeiras, o horizonte.
A voz dela se distanciando na trompa dos búzios.
O homem saiu a andar na praia deserta da aquarela.
O que ele fez para suportar todas as manhãs que vieram depois? É um segredo que só os cavalos-marinhos e as anêmonas conhecem.

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Foto: J. Finatto