domingo, 15 de janeiro de 2012

O boné de marinheiro

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. O Rio Guaíba


Meu amigo Luiz e eu tínhamos 9 anos e um sonho comum.

Um dia embarcaremos num navio da Marinha do Brasil, no cais de Porto Alegre, sairemos a navegar pelas águas do Guaíba, da Lagoa dos Patos e, por fim, chegaremos ao mar.

Ser marinheiro era nossa maravilha. Luiz tinha parentes na Marinha. Possuía, portanto, as informações sobre como realizar o sonho. 

Vendo minha seriedade no trato das coisas do mar, ele me presenteou com um boné de marinheiro de verdade. Uma emoção que ainda hoje me toca. Já me sentia um membro da armada nacional.

Algum tempo depois, apareceu lá em casa um grupo de rapazes e moças participantes de uma gincana. Estavam atrás de um boné de marinheiro que valia muitos pontos na tal competição.

Não sei quem lhes deu a informação, o fato é que, diante dos apelos e da promessa de devolução, emprestei-lhes o meu precioso boné.

Esperei por meses que eles voltassem. Mas jamais nenhuma daquelas pessoas veio para devolver o boné ou dar qualquer explicação.

Anos mais tarde, Luiz ingressou na Marinha, realizando assim o nosso sonho na parte que lhe cabia. Eu permaneci ilhado no continente, minha vida seguiu por outras águas.

Às vezes fico diante do rio, olhando os navios, os barcos, as gaivotas. Isso me enche de saudade de algo que não aconteceu.

Nunca deixei de ser o menino que um dia sonhou ser marinheiro. No fundo, acho que esse é o meu maior tesouro.


quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A casa de Federico García Lorca em Granada


Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Sierra Nevada, Espanha

A viagem de trem de Sevilha a Granada dura cerca de três horas. Quando nos aproximamos da cidade, surge na janela a visão de Sierra Nevada, um quadro maravilhoso.

Viajar de trem é uma das belezas desta vida.  No tempo de menino, lembro dos percursos entre Porto Alegre e Caxias do Sul. O trem subia a serra lentamente, à beira de córregos e pinheirais, contornando abismos. Havia aqui e ali uma cascata se derramando na encosta de uma montanha.

photo: j.finatto. Casa-Museu FGL, Granada

(Infelizmente, o transporte ferroviário foi extinto em nosso país a partir da década de 1950, com a implantação da indústria automobilística e a expansão de setores da economia ligados ao transporte rodoviário. Um erro colossal. Um país com as dimensões do Brasil sem uma rede de trens de passageiros e de cargas é algo inconcebível. O pouco que existe é absolutamente insuficiente. Por conta disso, estradas saturadas e mal conservadas levam a milhares de mortos todos os anos em virtude de acidentes, sem falar nas pessoas que ficam com sérias sequelas físicas. Embora com atraso, o governo federal retoma (dizem) o investimento nos caminhos de ferro.)

photo: j.finatto

Casa-Museu Federico García Lorca

photo do poeta: Fundación Federico García Lorca

A noite tornou-se íntima
como uma pequena praça.
(Romance Sonâmbulo)

Volto à Espanha. Ao chegar à Granada, a atenciosa taxista informou-me onde se situa a casa em que Federico García Lorca (uma das minhas devoções literárias) viveu por largos períodos de sua vida. Instalei-me o mais rápido que pude no hotel e fui a pé em direção ao parque que leva o nome do poeta, no qual se situa a Casa-Museu Federico García Lorca. A bela propriedade conserva o nome original, Huerta de San Vicente (homenagem à mãe do escritor, Vicenta).

photo: j.finatto

A casa está localizada a cerca de um quilômetro e meio da região central de Granada. O pai de Lorca adquiriu-a para ser residência de verão (a família tinha outro domicílio no centro da cidade). Foi ocupada pelos Lorca entre 1926 e 1936. Nela o poeta escreveu algumas de suas obras mais importantes. Ali passou os dias que antecederam sua prisão e assassinato, em agosto de 1936, no início da Guerra Civil Espanhola.

Huerta de San Vicente acolheu muitas reuniões e saraus frequentados por artistas e intelectuais. Os dois pavimentos abrigam diversos móveis daquela época, além de quadros e outras obras de arte. Há também manuscritos de Lorca em exposição. Nas paredes, quadros de pintores como Salvador Dali (amigo do poeta), entre outros.

Na sala do piano, apresentaram-se músicos como o próprio Federico (tocava violão e piano) e o também espanhol Manuel de Falla (1876 - 1946), grande compositor, amigo do escritor que tentou em vão impedir seu assassinato.

photo: j.finatto. O quarto de Lorca

O quarto do poeta, no qual escreveu parte significativa de seus textos, no pavimento superior, ainda conserva sua escrivaninha e objetos pessoais.

Não é permitido fotografar no interior da casa-museu, que pertence ao município desde 1985. A visita é guiada. O preço varia entre 3 euros (mais ou menos 9 reais) para adultos e 1 euro, havendo também ingressos gratuitos para estudantes e nas quartas-feiras.

photo: j.finatto

Numa sala anexa à casa, há exposição e venda de livros e de objetos relacionados ao poeta andaluz.

Um lugar acolhedor com pátio florido, árvores e bancos para sentar.  Bom para ler, respirar e pensar, em meio à fragrância do roseiral que cerca a casa.

photo: j.finatto

Neste lugar de memória, história e arte, parece que a qualquer momento vamos escutar a risada do poeta, sua fala e seu violão gitano.

Alguém, em Granada, perguntou o que, afinal, me levou àquela cidade. Ora, respondi, vim para visitar o poeta Federico em sua amada casa. E para ler seus poemas neste jardim de silêncio.

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Leia mais sobre Federico García Lorca:

A memória em busca do poeta:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/08/federico-garcia-lorca-memoria-em-busca.html

Zambra para Federico:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/11/zembra-para-federico.html

Com Lorca pela Andaluzia:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/11/com-lorca-pela-andaluzia.html

Site oficial da Casa-Museo FGL:
http://www.huertadesanvicente.com/index.php

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Autorretratos

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


A fotografia e o texto são autorretratos da alma. Escrevemos e fotografamos coisas que nos dizem algo e isso fala a nosso respeito. Quem cria alguma coisa o faz com seu ser inteiro, a menos que se trate de uma farsa.

As nossas obras testemunham a nossa passagem na Terra. Dizem sobre nós mais do que qualquer palavra. O resto são nuvens.

O que se busca, na arte, é comunicação com o outro. Esse outro sem o qual a nossa existência fica em suspenso. Só existimos verdadeiramente na medida em que alguém nos reconhece.

Através da composição queremos dizer algo válido a esse alguém.

Não quero competir com ninguém ao escrever, ao fotografar. Quero apenas arrumar as palavras e as imagens em busca de poesia e de algum sentido em meio ao caos. Se isso tocar o leitor, ganhei meu dia. Se não, a vida segue.

A luta pela expressão vale por si. E a esperança é uma arma poderosa.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O peixe e o fantasma

Jorge Adelar Finatto

ilustração: Clarinha Moura
O peixe Moisés está vivo dentro do rio. Ele costuma me acompanhar nas navegações que faço pelo Guaíba no meu barco de papel. Vai feliz, saltando pelos lados do Sonhador. Mas é nos dias em que o barco se chama Solitário que sua companhia me é mais cara.

Às vezes, Moisés vem à superfície e observa a cidade. Coisa estranha. Tanto barulho, tanta fumaça, tanta agitação. No fundo do rio é tudo silencioso. Não existe gente apressada e infeliz.

Está muito difícil viver no interior das águas, ele diz. A cidade joga muito lixo no rio. No leito submerso, há pneus velhos, garrafas, sapatos, objetos inumeráveis. Até sofá, geladeira e televisão jogam no rio. Não é fácil viver como peixe nesse ambiente "humanizado".

Por isso, Moisés se afasta cada vez mais da beira da cidade, vai nadar lá longe, quer ficar distante da sujeira. Por isso, é raro ver um peixe de perto, à flor dágua, brilhando sob o sol. Por isso, para a maioria das pessoas o peixe é apenas uma imagem que habita as páginas de livros, revistas e telas de computador.

Se não cuidar do peixe e do rio, o homem vai acabar também como a imagem de algo que não existe mais, uma recordação do passado, um fantasma numa cidade abandonada.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Mais escândalo (ou a angústia da beleza)

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto




O estatuto luminoso que as flores estão a proclamar, em meio à profunda sombra, é motivo de imenso desalento. Afinal, pra que espalhar tanta beleza na espessa escuridão do mundo?

Onde antes havia secura de seivas, elas agora aparecem trazendo alegria e encanto.

photo: j.finatto

Até essa explosão de formas e cores, tínhamos garantida a tristeza de cada dia. Havia certeza em relação à desolação.

photo: j.finatto

Ninguém esperava mais nada. Felicidade era coisa de dicionários. História de romance água-com-açúcar.

Agora vem esse tempo de delicadezas recordar-nos o paraíso, a criar em nós a angústia da beleza.

photo: j.finatto

Por que essas flores nos deixam assim tão indefesos?

O que fazer com o velho jeito de sofrer e ser infeliz?

photo: j.finatto

sábado, 31 de dezembro de 2011

Leveza no tranco

Jorge Adelar Finatto

ilustração: Maria Machiavelli

 
A palavra que escolhi para o novo tempo, espécie de busca-vida nesse início de ano, é leveza.

Sim, um pouco mais de leveza. Leveza no modo de sentir e levar a vida.

Leveza no trato com as pessoas.

Nada de grandes pesos na mala. Uma existência mais suave, com menos fantasmas a acordar-nos à noite.

Que o peso da vida, se for inevitável, se distribua com algum equilíbrio ao longo da viagem, sem arruinar a travessia.

Leveza, sim, um pouco de leveza.

Para admirar a paisagem, para conversar com o passageiro ao lado, para cultivar sentimentos.

Leveza, enfim, para expulsar o desespero e a tristeza da nossa porta.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O faxineiro da casa

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Jardim do Palácio da Alhambra, Granada, Espanha.


Este é tempo de casa cheia. Gente ausente vem de longe para as comemorações de Natal e Ano Novo. As festas são, na verdade, um pretexto pra rever a quem se ama e pôr em dia a sempre adiada convivência.

A reunião implica, por outro lado, divisão de tarefas. Como não sei cozinhar e nem possuo outras habilidades, sou designado para a limpeza dos banheiros. Mister, aliás, de que muito me orgulho. Estou entre aqueles que acreditam que nada na vida é por acaso.

A modéstia, contudo, me impede de dizer que poucas pessoas sabem limpar e arrumar um banheiro como eu. Haverá faxineiros mais graduados e com melhor currículo, desses que trabalham em hotéis de luxo e navios de cruzeiro. Mas ainda não encontrei mais esforçado.

Com a minha experiência no metiê, posso afirmar que nós, operadores da limpeza, nos ressentimos da falta de reconhecimento. Aos cozinheiros, todos os louros são conferidos. Assim também aos arrumadores dos quartos e demais ambientes da casa, aos lavadores e passadores de roupa, aos jardineiros, motoristas, babás, etc.

Ninguém nunca diz: que banheiro mais asseado, que louças tão alvas e lustrosas, que toalhas bem postas, que belo arranjo floral, que frescura de campo. Parece até que o serviço se faz por si.

Não quero polemizar com as outras categorias, longe de mim. Mas que há uma indiferença em relação ao pessoal da faxina não tenho dúvida.

Gostaria de lembrar que estamos abertos a elogios e mostras de apreço em geral. Um afago não ia nada mal, assim como um avental novo e colorido de vez em quando.

Um 2012 limpo e perfumado é o que desejo a todos.