quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Solidão na montanha: furdunço na aldeia

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

O solitário da montanha eu sou, às vezes. Mas gosto de percorrer o furdunço da aldeia, caminhar pelas vielas entre as bancas de peixe, frutas, flores e verduras.

Gosto de ouvir o alarido das conversas, os músicos, os contadores de histórias, as bailarinas, os saltimbancos.

Tem horas que me refugio na torre do silêncio. Preciso parar, sentir, pensar, digerir o vivido, imaginar, construir pontes, atravessar.

Agora estou aqui com os passarinhos na varanda do escritório. Eles na vidinha deles (que também não é fácil) e eu na minha. Nos reconhecemos pelo olhar e pelo gosto de voar. Eles comem as frutas nos potes, voltam para as árvores, para o seu canto.

Carregamos no coração uma esperança, Íntima e visceral, como o perfume de uma rosa num dia de tristeza.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A hora solitária

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 

Há uma hora solitária em que as estrelas não se apagaram ainda e nem o sol se levantou na linha do horizonte. Uma hora de expectativa e angústia.

O pássaro ensaia os primeiros movimentos do seu canto perto da minha janela. Eu passei a noite lidando com palavras. Frio e cansaço habitam essa hora erma.

Fecho as cortinas. Desligo as luzes. Puxo a manta até o pescoço, me estico no sofá do escritório.

Dom Quixote e Sancho Pança, exaustos de tantas andanças nas páginas do velho livro, dormem num canto da estante. Os personagens dos outros livros fazem o mesmo no silêncio e obscuridade das prateleiras.

Precisamos todos descansar das palavras. Precisamos dormir, dormir e esquecer. Não queremos claridade nem rumor de páginas tão cedo.

O dia avança como um touro louco pelas ruas da cidade. Corre furioso atrás de um incauto e distraído leitor. O touro nada sabe de livros. Leitores são presas fáceis na aurora.
 

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Segredos do implúvio

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

 
I

Dizem
que escrever
poemas
é ofício
de pouco valimento

mas pouco se revelou
sobre a memória
da sombra
as paredes úmidas
da velha casa de madeira
o sombrio corredor
onde se morria
um pouco todos os dias
sem notícia
sem amanhã

II

alguém precisava
recordar
os soturnos habitantes
da rua humilde
na cidade serrana

lembrar o cheiro
de suas vestes
as pedras soltas
na porta das casas

os casacos pretos
nas manhãs de geada

III

nada ou muito pouco
se disse
dos segredos do implúvio

eu me pergunto por que
esse vazio em torno

estaria no silêncio
acre das caves
o destino de partir?

trabalho lento
nas escarpas
do coração

IV

não fossem
os trilhos
do trem
o barulho santo
do trem
atravessando
a madrugada
criando ao menos
em tese
a possibilidade
da fuga
muitos teriam
desistido de tudo
ali mesmo
como fez Chico
o Esquecido

V

o coração não é
assim mero

cresce em segredo
na dura colheita

não se esvazia
o coração
como se esgotam
as cisternas

VI

alguém precisava contar
a náusea persistente
a longa e tortuosa estrada
que desce na Capital

melhor não inventar
histórias
de castelos e linhagens
que nunca existiram
e se houve
federam
como podem feder
as escadarias
dessas obscuras passagens
perdidas no planeta
que recolhem
seres rastejantes

VII

o que se registra
no tombo do tempo
é que há um menino
imóvel
à beira da jovem defunta

naquele lugar
a despedida
com alguma flor
sussurros abafados

ele pergunta
onde ela foi habitar

o que vê
é a morte
e seu absurdo trabalho
convertendo em pó
a luz dos olhos

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Do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998. 

sábado, 25 de outubro de 2014

A tragédia do pinheiro: retrato brasileiro

Jorge Adelar Finatto

foto: Corpo de Bombeiros
 
A vida sabe ser injusta e dura com os pobres.
 
Na madrugada de domingo (19 de outubro), ventava demais na serra do Rio Grande do Sul. Lá pelas quatro da manhã temi pelo que poderia acontecer, tal a intensidade das violentas rajadas. O tempo vinha mau há vários dias com chuvaradas, ventos, raios e granizo.
 
Na segunda-feira, de passagem por Gramado, parei para tomar um café. Soube, então, com profunda tristeza, que uma jovem de 29 anos, mãe de quatro filhos, havia morrido na antemanhã do domingo enquanto dormia, no bairro Jardim, após a queda de uma grande araucária sobre a casa de madeira onde vivia, na Travessa dos Pinheiros. A força do vento derrubou a árvore. 
 
O companheiro da vítima ficou muito ferido e teve de ser hospitalizado na UTI. Dos quatro filhos, apenas dois estavam na casa e, felizmente, nada sofreram apesar de toda a destruição.
 
Segundo jornais da cidade*, as autoridades do Município lamentaram o fato e prometeram ajudar a família. Destacaram, porém, que aquele local é área de preservação ambiental permanente, daí a presença ali de pinheiros. Moradias como a da vítima estavam construídas irregularmente. 
 
Familiares, vizinhos e amigos protestaram, na segunda-feira, diante da Prefeitura, afirmando que já haviam pedido providências ao Município para que realizasse o corte de algumas araucárias que ofereciam risco às casas. Foram informados de que já tinha sido expedido alvará para os cortes, mas o acidente aconteceu antes da medida ser concretizada.
 
Pois bem, o que mais dói nessa tristíssima história, além da morte da jovem mãe, que trabalhava como camareira, é a orfandade que se abate sobre seus quatro filhos. As crianças têm idades de 3, 6, 8 e 11 anos. Perder a mãe no começo da vida é uma das piores coisas que podem acontecer a um ser humano.

Vale recordar que ninguém constrói casa em área verde e de risco por mero capricho, mas sim por necessidade. As pessoas são levadas a isso por falta de condições econômicas, na grande maioria dos casos. É gente pobre que luta com imensas dificuldades, que levanta sua casa não onde quer, mas onde dá.
 
De acordo com informações dos jornais, a Prefeitura de Gramado pretende transferir famílias daquela localidade para outra que ainda está por ser definida. Não é tarefa fácil, mas cabe ao Município definir as áreas onde a população possa morar com dignidade e segurança.

O que espero é que, ao final, não se atribua à pobre mãe a culpa pela tragédia que lhe tirou a vida, por uma questão de respeito mínimo diante de um acontecimento como esse e das circunstâncias que o cercam, que englobam um fato natural trágico e um sério problema habitacional.

Como ninguém pode devolver a mãe aos pequenos órfãos, que pelo menos as autoridades e a comunidade de Gramado (um dos principais destinos turísticos do Brasil) façam esforços para possibilitar a sobrevivência digna destas crianças, diminuindo em parte seu imenso sofrimento.
 
Nenhuma mãe devia morrer desse jeito. Nenhum filho devia passar por isso.
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*Jornal de Gramado e Jornal Integração, edições de 21.10.2014.
 

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Breves anotações de um fantasma

Jorge Adelar Finatto
 
ilustração em bico de-pena (1979): jfinatto
 
 
As dedicatórias, nos velhos livros dos sebos, me comovem.

Dói nelas a solidão de não mais pertencerem. Estão soltas no mundo como as folhas que o vento acaricia. Caíram no alçapão do tempo, o afeto cobriu-se de pó.

Numa estante qualquer perdida no planeta, as antigas dedicatórias sofrem a tristeza da ausência.
                              
Abro ao acaso o volume das Elegias de Duíno*, poemas de Rainer Maria Rilke, livro que não visitava há muitos anos. Na orelha está a minha assinatura e o registro de um tempo: abril de 1977.

O primeiro verso da primeira elegia inaugura a perplexidade diante da existência, o recolhimento do ser, a transcendência:

Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?
                              
Tenho o costume de fazer breves apontamentos nos livros que leio. Não me constranjo de sublinhar trechos, tecer comentários nas margens, corrigir alguma coisa que me pareça fora de lugar. Faço isso sem remorso, hábito enraizado como o de cheirar os livros. Cada um tem seu aroma.
 
Isto tudo faz parte do mundo dos livros, espécie de marginália do tempo.

Nunca me incomodo de encontrar anotações nos livros comprados nos sebos da vida. Pelo contrário, me interessa saber o que o anterior proprietário escreveu, o que lhe chamou a atenção, as impressões que lhe ficaram da leitura, alguma observação curiosa.
                              
Heitor dos Crepúsculos, o fantasma-mor de Passo dos Ausentes, costuma me visitar nos dias ventosos como hoje, aqui no escritório onde leio, escrevo e, às vezes, desapareço em pleno ar.

Diz ele que os fantasmas são os grandes freqüentadores dos sebos nas madrugadas. Como não? À noite, no silêncio dos corredores desertos, entre estantes pesadas de volumes e o cheiro impregnado no ar, proveniente das páginas envelhecidas, os voláteis põem-se a vasculhar as histórias contidas nas dedicatórias e registros escritos. Sabem que existe vida ali.

Dos Crepúsculos afirma que os fantasmas amam a vida e só por isso são fantasmas.

Observa que eles procuram nos sebos as histórias das vidas perdidas. Esses livros trazem o perfume ressequido do tempo, e as marcas de momentos felizes.

- Costumo fazer anotações à margem das outras anotações. No futuro, quem sabe, ao lê-las, alguém vai se lembrar de mim com o mesmo carinho -, confidencia com timidez o volátil Heitor.
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* Elegias de Duíno, Rainer Maria Rilke, tradução de Dora Ferreira da Silva. Editora Globo, 2ª edição, Porto Alegre, 1976. Texto revisto, publicado no blog em 10 de março, 2010.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Pequenas humanidades

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto

O problema, raro leitor, é que quando a pessoa deixa de gostar de si mesma a vida torna-se muito dura. A dela e a dos que estão por perto. Por isso é do interesse geral que todos sejam felizes ou, pelo menos, o mais próximo disso que puderem.
 
O infeliz arrasta o mundo para o buraco com ele. Qualquer um de nós já passou por isso. Aparece aquela nuvem carregada sobre a cabeça. Essa nuvem se expande com facilidade.

Nessas horas precisamos de uma palavra, um olhar, um aconchego para voltar a viver. Acontece que na vida de aparências em que estamos metidos somos cada vez menos estimulados a falar de nossos sentimentos. Somos esfinges no deserto.
  
Conheço pessoas que nada mais esperam da vida. Perderam a alegria de viver. Sobrevivem a duras penas. Não que queiram. Simplesmente aconteceu. Não sabem o que fazer. Têm medo de viver, de sonhar, de sofrer de novo. Os medos.
 
Esse estado de espírito é um dos principais legados da sociedade materialista, competitiva, agressiva e desumana em que vivemos. O outro é o inimigo em armas. Existe pouco espaço para a mansidão e a solidariedade.
 
Só o afeto tem o poder de nos reconciliar com o próximo e com a vida. Longe do calor humano tudo é o mesmo que nada.

Afeto não tem preço, não se aluga, não se compra, não se vende. Se dá e se recebe.

Não precisamos ser íntimos de alguém pra passar afeto. Isso se faz num gesto de gentileza, cordialidade, atenção.

São coisas simples que, enlaçadas, são capazes de causar uma grande revolução. Está todo mundo esperando e precisando muito dessas pequenas humanidades.

Eu acredito que podemos investir mais na nossa espécie, na reciprocidade dos bons gestos, no afago.

De mãos dadas a vida é outra.

Começo a terça-feira oferecendo a você essas palavras, minha amiga, meu amigo. Elas estão vivas. Cuide bem delas, dos outros, de si mesmo. Você merece. Nós merecemos.
 

Interesse público e curiosidade pública

Frederico Vasconcelos
Repórter Especial do jornal Folha de São Paulo

Frederico Vasconcelos
 
 
Juiz defende autorização do biografado e fixação de prazo para o exercício do direito pelos herdeiros.

Sob o título “O fim da vida privada e da intimidade“, o artigo a seguir é do juiz Jorge Adelar Finatto, do Rio Grande do Sul. O autor trata da polêmica sobre a autorização prévia para publicação de biografias. “O indivíduo tem direito de recusar-se à divulgação de eventos de sua existência privada pela singela razão de que a sua vida é o seu maior patrimônio e ninguém pode nela entrar sem pedir –e obter– licença”, afirma o magistrado aposentado e poeta em seu blog “O Fazedor de Auroras”.
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