segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Os sapatos da primavera

Jorge Adelar Finatto




Da minha janela eu vejo a rua. A rua é um pedaço do mundo. É só uma rua entre tantas.

O mundo é um rio largo e fundo. O tempo das folhas secas cessou. A claridade de setembro invade a sombra.

Escuto na calçada o som de passos que vêm de muito longe. Mas não há ninguém lá fora nessa hora erma. O vento sacode as folhas nas árvores.

A carroça cheia de flores dobra a esquina, para no meio da quadra, debaixo do poste de luz. Na manhã que se aproxima, as pessoas encontrarão a carga suave e perfumada.

Enquanto escrevo, coisas luminosas acontecem em silêncio.  Da janela observo esse ponto pequeno e obscuro do universo, que chamo minha rua, onde todos agora dormem. Mãos desfalecidas nada podem segurar.

Nenhum grito assola a hora nua. O sonho levanta do escuro. 

Os sapatos da primavera cantam na calçada.

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Foto: J. Finatto

sábado, 28 de agosto de 2010

Um doce olhar

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Somos todos sobreviventes em um mundo que despenca ao nosso redor. Só há uma permanência em nossas vidas: a ausência.

Existe algo além de sexo barato, violência gratuita (doentia) e desprezo pelo humano no ar. Ao contrário do que pensa  uma parte dos realizadores de filmes, séries e novelas, pode haver mais do que isso. Sugerem eles que produção que atrai público é  aquela que  beira ou cai na baixaria. Não é verdade. As pessoas, em geral, gostam do que é bem feito, do que fala ao coração e ao pensamento.

O filme turco Bal (Um doce olhar, 2010), dirigido por Semih Kaplanoglu, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim deste ano, é obra simples e de grande qualidade. Nunca é demais lembrar que, na arte, o simples é o mais difícil de fazer. Muito mais fácil é ser pretensioso e ralo.

O título original, Bal, significa mel. A história se passa numa  pequena povoação em região montanhosa (muito bonita) da Turquia. É a parte final de uma trilogia de Kaplanoglu. Os outros dois títulos são os longas Yumurta (Ovo), de 2007, e Sut (Leite), de 2008.  Cada um deles mostra uma fase na vida do personagem Yusuf. Ovo trata do homem adulto, poeta sem reconhecimento, dono de um sebo, que retorna à cidade onde nasceu para o enterro da mãe. Leite enfoca o jovem que não consegue entrar da universidade, não é aceito no serviço militar e quer escrever poemas. Esses dois filmes não passaram ainda no Brasil, salvo em exibições especiais. Mas  não há problema para a compreensão de Um doce olhar. Cada um pode ser visto de forma independente. Os três compõem o roteiro de uma vida ao contrário.

Um doce olhar apresenta Yusuf (o ator mirim Bora Altas) com seis anos, vivendo entre montanhas, pássaros, córregos, sons, cores e mistérios da floresta, ao lado do pai, o apicultor Yakup (Erdal Besikçioglu), e da mãe Zehra (Tülin  Özen), cultivadora de chás.

A delicada obra mostra o olhar do menino se apropriando do mundo. É um olhar primevo, inaugural, iluminado pelo contato físico e espiritual com os seres e coisas que o cercam. Yusuf tem dificuldades na escola, onde está aprendendo a ler. Vai e volta sozinho pela estrada de chão. Muito tímido, gagueja sempre, quase não se relaciona.  A pessoa com quem mais e melhor se dá é o pai, que lhe passa conhecimentos sobre seu trabalho e a natureza. A história marca a passagem de Yusuf para outra esfera de consciência, em razão de um doloroso acontecimento.

A fotografia é cativante, com planos longos e silenciosos. Poucos diálogos. Gestos, expressões, objetos e árvores valem muito neste belo filme.

Somos todos sobreviventes em um mundo que despenca ao nosso redor. Só há uma permanência em nossas vidas: a ausência.

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A Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária e Geológica de Passo dos Ausentes (SHGFLGPA), leia-se Dom Sigofredo de Alcantis na presidência, Alberta de Montecalvino e Juan Niebla no setor cultural, me convida para continuar a escrever neste blog, depois dos textos que rabisquei sobre o Festival de Cinema de Gramado. Acho um gesto de  coragem  e grandeza da parte deles.

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Foto: Yusuf e o pai. Divulgação. Paris filmes.

Saiba mais sobre O Cavaleiro da Bandana Escarlate nos posts de 27 de abril  e 29 de julho de 2010.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Entre plátanos

Jorge Adelar Finatto



Entre plátanos
e borboletas
o menino brinca

contra a miséria da rua
e a tragédia familiar
ele cresce

por um momento
na manhã do mundo
o menino gira


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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Passos de algodão


Jorge Adelar Finatto

 
 
 
Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.

Depois de longa e sentida ausência, ele retornou ao convívio das tardes no escritório. Conheço meu amigo de outros invernos. Partiu em fevereiro sem dizer nada, tão ao seu estilo, e me deixou aqui todo esse tempo sem poder ouvir sua voz cava e rascante, sem poder ver sua plumagem luminosa, seus olhos redondos e atentos.

Sempre sinto falta do seu olhar de banda, da maneira estrambótica de aterrissar num só pé na sacada do escritório. Alziro tem temperamento forte e, às vezes, um certo mau humor o acompanha quando o tempo está pra chuva.

Ele voltou com suas cores vivas para suavizar o inverno. Eu andava mesmo precisado de sua companhia. Não que ele converse muito. No fundo, nem é isso o mais importante.

A silenciosa presença do amigo, sabê-lo perto, partilhando a vida, é motivo de consolo e esperança.

Providenciei hoje a reposição de pedaços de banana no pratinho dos pássaros, fruto muito do seu gosto.

Em certos dias, Alziro deixa a cerimônia de lado, entra no escritório, em passos de algodão, e ensaia uma pequena incursão no ambiente. Olha o teto, os lustres, a mesa, os livros, os quadros, as plantas e relógios, tudo com silenciosa atenção. Faço que não percebo para deixá-lo à vontade.

Do mesmo jeito que chega, o meu amigo vai embora. Como sempre, não se despede e nem diz quando voltará, apenas alça o improvável voo adunco rasgando o ar.

O que importa, diz o coração, é que a velha e boa amizade está rediviva. Se tudo der certo, talvez ele retorne amanhã ou quem sabe depois. Só espero que não me falte tão cedo, porque meu inventário de ausências já vai longo na vida.

Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.

 
 
 


 


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Fotos. J. Finatto.

domingo, 22 de agosto de 2010

Olinda, a epifania do olhar

Frederico Vasconcelos

 
"Olinda é só para os olhos. Não se apalpa, é só desejo.    Ninguém  diz: é lá que eu moro. Diz somente: é lá que eu vejo." (Carlos Pena Filho)

A primeira aproximação de Olinda deveria ser, sempre, pelo mar. Roteiro sentimental é escolha de foro íntimo, mas é a partir do mar que a cidade surge mais bela.

É só conferir nas gravuras de Franz Post ou nas vistas que Rugendas eternizou.

Receio que essa visão seja desperdiçada pelas novas gerações bem-sucedidas que passam velozes em suas lanchas, ansiosas para chegar a Itamaracá, ponto de exibição de jet skis, buggies e ultraleves -bons tempos aqueles quando a praia do forte Orange ainda era uma região deserta...

Há quem prefira a Olinda agitada dos Carnavais. Folião aposentado, hoje gosto mais da cidade tranquila dos dias de semana. Mas tenho boas lembranças dos desfiles de rua e da rivalidade -ainda presente- entre a Pitombeira dos Quatro Cantos e o bloco dos Elefantes (era adepto do primeiro, mas gostava do hino do rival, que ouvi, pela primeira vez, executado pelo autor, Clídio Nigro, no velho piano alemão da minha casa).


O desafio era "tirar" o bloco na sede, "pedir passagem", pulando nas ruas estreitas e íngremes, e aguentar o repuxo até o "regressar". Era preciso fôlego redobrado, ativado pela mistura prévia de "bate-bate com doce" (batida de frutas, açúcar e muita cachaça). É quando a população está com a "goitanga" (com o diabo no corpo, em bom "pernambuquês").

Na minha imaginação, prevejo o dia em que aquela massa humana, pulando ao mesmo tempo, abrirá uma grande cratera, descobrindo os túneis e subterrâneos secretos que cortam Olinda. Ou as botijas cheias de riquezas, enterradas nos tempos de saques e incêndios dos holandeses.

Conhecer Olinda não carece da companhia de guias ou de roteiros. É só fazer a ligação entre as igrejas e confirmar como eram espertos os primeiros ocupantes: jesuítas, beneditinos, franciscanos e carmelitas, todos souberam conquistar os espaços mais belos, no alto. É das celas dos mosteiros e conventos que se descortina a melhor paisagem litorânea.

Olinda pode ser dividida a partir das áreas de ocupação pelas várias ordens religiosas. Nasci numa casa na rua de São Bento, próxima ao mosteiro dos beneditinos. A rua é definida por historiadores como um referencial do núcleo urbano (a casa da primeira infância, na travessa do Fortim, o mar levou).
Graças à planta de Olinda de Gaspar Barleus (1674), descubro que a casa da minha juventude, na rua 27 de Janeiro, ficava exatamente na fronteira entre duas ordens religiosas. A frente da casa estava nos limites dos beneditinos. O quintal ficava em terreno pertencente aos frades carmelitas.

Referência maior, o "sobrado mourisco", hoje um famoso restaurante na mesma rua, já na praça de São Pedro, era no passado um armazém de secos e molhados, de propriedade do então prefeito. Na parte superior, residencial, minha mãe morou durante 20 anos.

Nos anos 70, já morando em São Paulo, voltei a Olinda acompanhado de um grupo de jornalistas. No alto da Sé, alguém pediu-me informações sobre o local onde haveria uma festa. Ofereci-me para servir de guia. A festa acontecia na rua da minha juventude e exatamente na mesma casa em que morei. Foi uma noite inesquecível.

São circunstâncias como essa que alimentam, mesmo à distância, a mania besta de todo olindense de achar que somos parte daquele patrimônio da humanidade.

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Este texto foi originalmente publicado na Folha de São Paulo, edição de 06/10/1997. Agradeço ao Frederico e à FSP a autorização para reprodução. 
J. Finatto

Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) ,  um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.
Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.
Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).
E-mail: fvasconc@folhasp.com.br

Fotos: As três fotografias são reproduções do site da Prefeitura de Olinda (www.olinda.pe.gov.br), tendo como autor Passarinho: 1) Igreja de São Pedro Apóstolo 2) Os Mascarados 3) Mosteiro de São Bento.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A pensão dos viajantes solitários


Jorge Adelar Finatto



A cidade é onde o abandono é dono.

As praças vazias onde me quedo ouvindo falecidas conversas.
Bardo obscuro e tabelião em Passo dos Ausentes, eu vivo os interstícios. Os ásperos padecimentos da humana travessia. A bordo de um frágil e ridículo corpo existimos. Ninguém sabe até quando.

Cheio pela borda de cansaços e desejos. Quem houvera nesta vida me escutasse os ais.

Viver é assunto proceloso e bem escuro.

As coisas que não aconteceram são as que mais se afeiçoam na minha lembrança. A biografia que merece os veros registros: a dos não-acontecimentos.

Por isso estou aqui. Me inventando, me contando.

Sou o bardo barroco, ressuscitado em salvadoras prosopopeias. A obsessão pela música interior. Essa que me faço. Conjuro o venturoso canto.

Não me interessa a realidade. Quem tiver a realidade, que a bem guarde e embale.

Sou viajante de um tempo que se esfuma.

A saudade é um retrato em branco e preto na gaveta da memória. Os destroços de cada um.

O meu coração habita um quarto de pensão. A pensão se chama Ao viajante solitário.

Às vezes penso que o mundo é uma grande pensão. A pensão dos viajantes solitários. A existência é um fio de orvalho estendido de manhãzinha sob o sol.

Somos parceiros das nuvens.

Caminho para o lugar mero do esquecimento.

Eu, Landgrave dos Santos Esquecido, inquilino do absurdo, de tudo dou fé e assino. Passo dos Ausentes, nos Campos de Cima do Esquecimento, Rio Grande do Sul.

Primavera, primaveras.

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Do livro Calado observador do fim do mundo, Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2010.
photo: j.finatto

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Cley e Cortázar

Jorge Adelar Finatto


"Sei que algum dia os brasileiros vão descobrir melhor Cley." Julio Cortázar

Volto ao livro Papéis Inesperados, de Julio Cortázar, sobre o qual escrevi semana passada. Um texto me chama a atenção, aquele em que Cortázar fala a respeito de seu amigo Cley Gama de Carvalho, que ele apresenta como jornalista e dramaturgo brasileiro. Impressiona o afeto, e também o respeito, que havia entre eles. Conheceram-se em Paris quando Cley fez uma entrevista com o escritor argentino.

Não eram amigos de se ver todo dia, mas de vez em quando, a intervalos de dois anos, em geral. Quando Cortázar lhe perguntava, pessoalmente ou através de carta, como estava,  a resposta era sempre a mesma: tudo bem.

Mas o escritor pressentia que as coisas não iam bem com o amigo, pelo contrário. Eram os anos dos governos de força neste lado do mundo e Cley teve sérios problemas com a ditadura militar no Brasil. Cortázar não sabia detalhes do que acontecia, pois Cley não era de lamentar-se e evitava o assunto. Mas sentia que a realidade, a cada dia, pressionava mais e mais o brasileiro.

É um texto cálido sobre o amigo que se suicidou no Brasil, no  final de 1976 ou inícios de 1977, não há precisão. O companheiro que enviava garrafas de cachaça, pelo correio, para Cortázar enfrentar o inverno.

O argentino refere-se, também, à peça de teatro que Cley escreveu, intitulada Cromossomos (Como somos), e que considera "magnífica", "cuja representação no Brasil não havia servido exatamente para facilitar a vida e a tranquilidade de Cley". Esse elogio, vindo do criador de Histórias de Cronópios e de Famas, tem que ser bem apreciado.

Nunca ouvira falar antes de Cley Gama de Carvalho até ler este texto. Tentei encontrar alguma informação sobre ele, algum trabalho de sua autoria, mas muito pouco consegui até agora. Vou continuar atento. Afinal, pelo que diz Cortázar (poderia haver melhor testemunha?), foi uma pessoa muito especial e um autor importante:

"algum dia os paulistas, todos os brasileiros, saberão melhor quem foi Cley Gama de Carvalho, como passou por seu tempo com uma dignidade de grande urso livre, com um sorriso calado de ironia sem maldade".

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Papéis Inesperados, Julio Cortázar. Para uma imagem de Cley, pp. 367/372. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2010.

Foto: Julio Cortázar. Fonte: www.juliocortazar.com.ar Nota do blog: o crédito será dado ao autor da foto tão logo tenhamos a informação.

Leia também Urso solitário, do artista plástico Mario Gruber sobre Cley:
http://www.memorial.org.br/acervo/obras-de-arte/homenagem-a-clay-gama-de-carvalho/urso-solitario/
 

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Tempo e palavra

Jorge Adelar Finatto
 

A maravilha custa caro

o tempo de viver
é o lugar
da elegia
e do milagre

as estrelas cadentes
são nossas irmãs

é preciso devolver
a Deus
a vida emprestada

o que nos vale
nesse desamparo?

a escrita introspectiva
e visceral
do poema
remete ao silêncio
e ao desapego
de tudo que é vaidade

de que tempo nos fala
o poema?
certamente não daquele
que se conta em ampulheta

fala de experiência outra
o coração abrangente
das coisas do mundo
que é o saber próprio
e intransferível
da poesia

é preciso que alguém
desvele o inefável
mostre o que vai além
procure com ternura
o território delicado

o poeta fala por nós
e para nós

a ele devemos
o supremo esforço
de traduzir o que se perde
na neblina

a face da palavra
me salva
na escuridão
do mundo

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Poema do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.

sábado, 14 de agosto de 2010

Contra a noite do esquecimento, pela esperança

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Mi Vida com Carlos é, talvez, a melhor produção apresentada em Gramado em 2010. Pelo menos, é o melhor que vi. E não vi tudo. Simplesmente, não consigo passar os dias em salas de exibição e/ou discussão. Falta-me o ar. Portanto, essa é a impressão de alguém que, em certos dias, ficou jogado no quarto de hotel, lendo Juan Carlos Onetti e Cortázar, na frente de uma taça de café, em vez de estar enfiado em salas cheias de gente.

Começo a sentir banzo depois de quinze dias longe do modesto solar onde vivo nas cercanias da Praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre.

Mi Vida com Carlos (Chile, 2009) é um excelente documentário sobre um filho (o próprio diretor, Germán Berger-Hertz) que está em busca do pai, com o qual não conviveu. Motivo: Carlos Berger, advogado e jornalista, foi brutalmente assassinado pela Caravana da Morte de Pinochet, em 1973, logo após a destituição, através de violento golpe de Estado, em 11 de setembro daquele ano, do governo socialista e constitucional de Salvador Allende.

A Caravana da Morte foi uma operação das forças armadas do Chile, desenvolvida em outubro de 1973, para exterminar os inimigos do regime  Pinochet. Através dela, cerca de 72 presos políticos teriam sido assassinados. Os corpos de alguns deles, como o de Carlos Berger, jamais foram encontrados.

É uma história trágica e comovente. Os pais de Carlos eram judeus que escaparam dos nazistas na Europa, vindos da Hungria e da Rússia. Sabe-se que muitos nazistas, fugitivos em 1945, passaram a viver e agir na América Latina,  em países como Chile, Brasil, Argentiva e Uruguai, havendo evidências de colaboração dos foragidos com governos ditatoriais, como o de Pinochet. 

Os Berger constituíram família no Chile, trabalharam, os filhos estudaram na universidade, tornaram-se pessoas produtivas e úteis para a sociedade. Até que o inferno Pinochet se abateu sobre o país. 


Não é um filme sectário, mas a visão de um filho que perdeu seu pai desde sempre (tinha menos de um ano de idade quando Carlos foi morto) e que teve ceifada uma parte de sua vida afetiva e familiar. Seus avós, pais de Carlos, suicidaram-se  alguns anos depois do desaparecimento do filho.  Um tio foi embora para o Canadá. O cineasta e sua mãe tiveram de ir para o exílio. É a experiência de um homem que viu sua família destroçada no terror daqueles dias. Não é pouco.

Germán afirma: "Este filme rompeu o silêncio que imperou em minha família por mais de 30 anos. A razão pela qual o fiz foi só uma: a enorme tristeza que impedia a todos de falar de meu pai" (www.santocine.com).

O documentário colhe depoimentos de amigos, familiares e da mãe do diretor, Carmen Hertz. Ambos estiveram em Gramado na apresentação do filme. Carmen empreendeu, junto com um grupo de pessoas, uma luta corajosa em defesa dos direitos humanos violados pela ditadura sanguinária. O notável trabalho desta senhora e seus companheiros gerou arquivos que foram declarados Memória do Mundo pela UNESCO, em 2003. Há ali registros de mais de três mil pessoas, entre mortos e desaparecidos, vítimas da ditadura do general Augusto Pinochet, que durou entre 1973 e 1990.

A história contada na tela nos ensina que não é possível uma nação seguir adiante sem apurar responsabilidades pelo terror que aconteceu no passado. É o que se buscou e se busca até hoje no Chile, para que esses crimes nunca mais se repitam.

Vou caminhar um pouco na neblina das ruas agora quase vazias de Gramado, antes de arrumar as coisas pra ir embora.

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Fotos: Divulgação.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Sem medo nem rancor

Frederico Vasconcelos


Final dos anos 60, em Recife, a tropa de choque, fortemente armada, impedia a passagem do enterro. No caixão, o corpo do padre Henrique, um assessor de dom Hélder Câmara que se dedicava a recuperar jovens viciados em drogas.

Na véspera, o padre fora encontrado no meio de um matagal, mãos e pés amarrados e com marcas de incrível violência em todo o corpo.

Ombro a ombro, os policiais militares fechavam a rua e não permitiam a passagem do féretro e das muitas faixas de protesto contra a ditadura.

Sem hesitar, o frágil dom Hélder toma a frente do cortejo, avança com passos firmes, seguido pelos sacerdotes que erguiam o caixão do companheiro assassinado.

O bloqueio é rompido. O comandante recolhe a tropa, que volta a surgir, alguns quarteirões adiante, agora todos perfilados, com os capacetes na mão, cabeças abaixadas, como num silencioso e incomum pedido de perdão.

A coragem pessoal de dom Hélder era um exemplo de resistência naqueles tempos de terror e trevas. Sem as pompas do cargo, o arcebispo morava sozinho numa casinha de pequenos cômodos, cujo muro havia sido metralhado, de madrugada, mais de uma vez.

"Vocês conseguem ver aqueles dois homens, ali em frente, atrás das plantas?", perguntou uma noite, sorrindo, ao se despedir depois de uma entrevista. "Eles estão escondidos, mas dizem que é para me proteger", ironizava.

"Às vezes, eu imagino colocar uma máscara, apenas para pregar um susto neles", comentou, brincando. Dom Hélder não tinha medos nem rancores.

O encontro fora coordenado pela corajosa jornalista, depois deputada, Cristina Tavares (que morreu em 1992). Cristina, como outros amigos, chamava-o apenas de "Dom". Da entrevista também participaram o jornalista Jeová Franklin e este repórter.

Publicada em "O Pasquim", capa de edição em março de 1970, ela teve o mérito de romper a longa censura imposta pelo regime militar a dom Hélder.

Como disse Janio de Freitas, realmente foi uma graça do destino tê-lo conhecido.

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Este artigo foi originalmente publicado na Folha de São Paulo, edição de 03/9/1999. Agradeço ao Frederico e à FSP a autorização para reprodução. J. Finatto
Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) ,  um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.
Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.
Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).
E-mail: fvasconc@folhasp.com.br

Foto: Dom Hélder Câmara (1909-1999). Fonte: www.google.com.br, Imagens de Dom Hélder. Nota do blog: o crédito será dado ao autor da foto tão logo tenhamos a informação.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Julio Cortázar em Porto Alegre

Jorge Adelar Finatto
 


A literatura passa um sentimento de permanência das coisas. Nós passamos, as palavras escritas ficam. A maior parte dos livros dura mais tempo do que as pessoas.

Os escritores que escolhemos para nos acompanhar na travessia são fundadores dessa eternidade de papel. Os livros fazem parte do que somos.

A lembrança mais remota que associo ao nome do escritor argentino (que escritor!) Julio Cortázar (1914 - 1984) é dos primeiros tempos de estudante universitário em Porto Alegre. O ano 1976, tinha dezenove anos. Estava lendo Histórias de Cronópios e de Famas e As Armas Secretas.

A fila do restaurante universitário era torturante pra quem tinha que ir pro trabalho cedo da tarde como eu. Estudante pobre, precisava trabalhar pra sobreviver, como muitos. Nas filas do ru, lia Cortázar. Então, aquele era também um bom momento do meu dia a dia. Depois li outros livros dele.

Agora, lendo Papéis Inesperados (tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht), livro de 490 páginas, com textos inéditos do escritor, publicado originalmente em 2009, vinte e cinco anos após sua morte, reencontro Cortázar. No Brasil, o livro foi lançado em 2010 pela Civilização Brasileira.

Os textos - encontrados em uma velha cômoda, na casa onde morou o autor, em Paris, por sua viúva Aurora Bernárdez - são poemas, contos, outras histórias de cronópios e de famas, episódios de Um tal Lucas, um capítulo de O Livro de Manuel, discursos, prólogos, artigos de arte e literatura, crônicas de viagens, etc.

A felicidade de encontrar material novo do autor, tantos anos depois, é muito grande.

O dado inusitado e, para nós gaúchos que amamos a literatura de Julio Cortázar, muito gratificante foi descobrir uma menção a Porto Alegre no texto Never stop the press, onde se lê a frase "uma vista escolhida do Tirol e/ou de Bariloche e/ou de Porto Alegre" (pág. 117).

Sei que Cortázar gostava do Brasil, onde esteve pelo menos em duas ocasiões, e que admirava, por exemplo, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, além de apreciar nossa música, especialmente Caetano Veloso, mas ignoro se alguma vez esteve em nossa cidade.

De qualquer forma, ver Porto Alegre nesse texto de Julio Cortázar, ainda que só de passagem, dá o que imaginar. Pensando bem, acho que ele tinha muito a ver com essa cidade povoada de barcos e crepúsculos, jardins escondidos no fundo de casas desaparecidas, silenciosos gatos que caminham sobre muros cobertos de hera, ruas esquecidas, fantasmas.
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Fotos: capa de Papéis Inesperados. Julio Cortázar (
http://www.juliocortazar.com.ar/)

terça-feira, 10 de agosto de 2010

La Vieja de Atrás

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Seres devastados por uma irremediável solidão. A incomunicabilidade das pessoas em suas vidas pequenas e sofridas. As difíceis relações de afeto num mundo em que não se para para olhar e sentir o outro. A busca dolorosa, às vezes desesperada, de alguém para compartilhar a vida e amenizar o deserto.

La Vieja de Atrás (A Velha dos Fundos), dirigido por Pablo Meza, que também assina o roteiro, foi exibido no Festival de Gramado, na noite de domingo (o8/08/2010). É mais um bom exemplo do tipo de cinema que se faz hoje na Argentina. Um filme que apanha o indivíduo no ato difícil de viver, que se preocupa em desvelar a vida interior dos personagens, com os pensamentos e sentimentos que os movem e lhes dão uma face.

Rosa (atriz Adriana Aizenberg) é uma velha senhora, na volta dos oitentanos, viúva há muito tempo, sem filhos, que vive sozinha num pequeno e obscuro apartamento numa rua movimentada de Buenos Aires. Marcelo (ator Martín Piroyansky) é um jovem tímido, vindo do interior, de la pampa, para estudar medicina na capital. De família pobre, sobrevive de fazer biscates, como distribuir papéis com anúncios, de mão em mão, pela calçada. Até que o dinheiro de Marcelo acaba e ele não consegue mais pagar o aluguel do apartamento em que mora, localizado no mesmo andar que o de Rosa. Um belo dia entram no elevador, que em seguida tranca. São obrigados a conversar, olhar-se. Rosa interessa-se em ajudar o rapaz e o convida a morar com ela. O mais que se passa daí em diante é pura condição humana.

Diferentemente de certos filmes brasileiros que tenho visto, em que há uma forte tendência para o documentário naturalista, percebo nos filmes dos vizinhos do Rio da Prata uma "ocupação" sensível e delicada com o assunto humano. Não se nega a realidade, mas esta se coloca enquanto cenário ou circunstância na qual os personagens existem e agem como seres pensantes, emocionalmente vivos. Não são meros marionetes manipulados por um destino implacável, supostamente realista.

A impressão que se tem, ao final, é de que Rosa e Marcelo vão sair da tela caminhando em direção à plateia, tal sua verdade emocional e complexidade psicológica. Um belo filme.
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Foto: personagens Marcelo e Rosa. Divulgação (cinema.cineclick.uol.com.br)

Filosofia nas ruas montevideanas


Grafites de Montevideo


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- Un país es un invento...
- Hay vida antes de la muerte???

Foto: J. Finatto, Montevideo, 2010.

domingo, 8 de agosto de 2010

Com licença, realidade: chegou a hora da ilusão (2)

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Estou num café, sentado diante da xícara fumegante de cappuccino. O livro de contos do Juan Carlos Onetti aberto ao lado. Para quem estava há quatro meses sem sair de casa, nas cercanias da Praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre, esse é um belo momento.  A convite do blog escrevo essas linhas sobre o Festival de Cinema de Gramado. O que mais posso querer da vida? 

Quando saí de Porto Alegre, chovia, fazia frio e a melancolia tomava conta do lugar. Aqui o clima é outro. Faz muito frio, neva  de vez em quando, garoa, mas, pelo que vejo, ninguém está pensando em se matar, por enquanto. Através das paredes envidraçadas do café vejo os infelizes que andam na rua, onde a temperatura agora beira zero grau.


A praça, na frente do cinema em que acontece o festival, está quase deserta. O sino da igreja tocou. A fria madrugada  avança através dos pinheiros e paredões de basalto. Entre a dureza da vida e a transcendência, existem caminhos a percorrer. O cinema nos ajuda na travessia. A arte nos torna pessoas melhores, se nos deixamos tocar e não fechamos as portas. 

Eu queria poder voar sobre a torre da velha igreja. Em mim mora um monge rebelde e voador, que passa os dias na biblioteca, avesso aos deveres do templo. Um monge que não quer caminhar no vento gelado até o quarto de hotel a essa hora.

Confesso: as duas grandes estrelas que encantaram minha vida são, pela ordem, Beth Faria e A Feiticeira (Elizabeth Montgomery, infelizmente já falecida). Elas não têm culpa disso. Às vezes, na solidão do hotel, sonho que, ao dobrar uma esquina qualquer de Gramado, dou de cara com uma delas. A emoção é tal que, ao invés de tentar uma conversa, acabo acordando suado, com falta de ar. 

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Na sessão de abertura (sexta, 6 de agosto), dois filmes brasileiros foram exibidos: Bróder e Enquanto A Noite Não Chega. São dois filmes razoáveis, no meu entender; o primeiro, mais razoável do que o segundo.


Bróder, dirigido por Jeferson De, segue a linha do cinema realista, abordando a temática da pobreza, do tráfico e da violência na periferia pobre de São Paulo. Envolve a vivência de amigos e de uma família. É um trabalho sério feito por gente séria. Mas a abordagem está muito colada a uma ideia realista de documentário, como vários dos filmes feitos a respeito. Acho que ainda falta uma boa história sobre o assunto, que não apenas mostre, mas que emocione, enleve, encontre fissuras na realidade, e permita respirar além.

Cássia Kiss participa do filme, com um ótimo desempenho, o que não é novidade. Ela disse tudo no palco, antes da projeção: falar da família, no cinema, é sempre muito importante.

Enquanto A Noite Não Chega, dirigido por Beto Souza, é baseado no livro homônimo do escritor  gaúcho Josué Guimarães, tem uma boa fotografia,  boa trilha musical, muito bons atores, Miguel Ramos e Clênia Teixeira. É um filme correto, mas arrastado.  E há um excesso de lágrimas nos olhos dos personagens interpretados por Miguel e Clênia.

Quando sobram lágrimas no palco e na tela, elas acabam faltando na plateia, nos olhos do espectador.

O cinema argentino me deixou mal acostumado nos últimos anos, com obras raras como Clube da Lua, O Filho da Noiva, O Segredo dos Seus Olhos e por aí vai. O uruguaio O Banheiro do Papa é outro filme incrível. Gosto de ver boas histórias na tela, e boas histórias são, em geral,  as histórias bem contadas, que nos fazem viajar de corpo e alma com elas.

Mas a opinião de alguém que não entende de cinema, mero espectador como eu, deve ser vista, no mínimo, com muita cautela. O indispensável é que cada um veja os filmes.
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Fotos: J. Finatto

sábado, 7 de agosto de 2010

A página infinita da internet *

José Saramago

Acabamos de sair da conferência de imprensa de São Paulo, a colectiva, como dizem aqui.

Surpreende-me que vários jornalistas me tenham perguntado pela minha condição de blogueiro quando tínhamos atrás o anúncio de uma exposição estupenda, a que é organizada pela Fundação César Manrique no Instituto Tomie Ohtake, com os máximos representantes e patrocinadores, e com a apresentação de um novo livro à vista. Mas a muitos jornalistas interessava-lhes a minha decisão de escrever na “página infinita da Internet”. Será que, aqui, melhor dito, nos assemelhamos todos? É isto o mais parecido com o poder dos cidadãos? Somos mais companheiros quando escrevemos na Internet? Não tenho respostas, apenas constato as perguntas. E gosto de estar escrevendo aqui agora. Não sei se é mais democrático, sei que me sinto igual ao jovem de cabelo alvoroçado e óculos de aro, que com os seus vinte e poucos anos me questionava. Seguramente para um blog.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 25 de novembro, 2008.
A grafia é a de Portugal.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Memória na câmara escura (2)

Frederico Vasconcelos


O Hermeto e o Sivuca (conheci pessoalmente o último) são dois gigantes. O que me impressiona em ambos é o fato de terem, em comum, nascido em região pobre, do Nordeste, ambos na infância sem condições de ter um instrumento ou um rádio. Salvo erro meu, os dois ouviam música a partir da janela do vizinho. Não sei de onde vinha tanta musicalidade. Meu pai fazia um bico como discotecário da Rádio Jornal do Comércio, no Recife, nos finais de semana. Eu ia com ele. Conheci figuras incríveis, como Luiz Gonzaga, Sílvio Caldas, Bob Nelson, entre outros. Sivuca entrava, pedia para papai colocar um disco. Ele ouvia, não tirava o instrumento da mala. Em seguida, entrava no auditório e tocava melhor do que o original. Toco piano - também amador - mas na juventude dei canjas em boates, restaurantes e "inferninhos" no Recife, locais que nós frequentávamos para ver e ouvir os profissionais, tentar "copiar" alguma coisa. É meu segundo teclado, como costumo dizer. Lembro-me de ter ouvido o Hermeto, com seu trio, numa das idas ao Recife, acompanhando uma cantora famosa. Detalhe: naquela época, ele tinha cabelo bem curto...


Toquei com um grupo de estudantes num baile (final de rodeio, lá chamavam de "vaquejada") na terra natal de Sivuca, na Paraíba. A noite toda, um homem simples, talvez um peão, ficou ao lado do piano, calado, desconfiado, vendo tudo que eu fazia. Cismado, como dizem lá. Pois bem, num intervalo, com forte sotaque, ele perguntou: "Você conhece Sivuca?". Respondi: "Conheço, para mim é o maior músico do mundo". O homem abriu um sorriso e até hoje não sei o que ele quis dizer com o seguinte comentário: "Ainda bem que você pensa assim..."

A Rádio Jornal do Comércio, no Recife, era uma potência, na época (muitos anos depois, já em São Paulo, comprei um rádio de ondas curtas, Zenith, e o manual indicava apenas duas rádios brasileiras: a Tupi, de SP, e a Rádio Jornal do Comercio, do Recife). O grupo Pessoa de Queiroz, usineiros, investiu na formação de uma orquestra, "importando" músicos e instrumentos da Europa. Pois bem, trouxeram um órgão eletrônico e ninguém sabia tocar. Sivuca começou a mexer no instrumento, à tarde. À noite, inaugurou o órgão no programa de auditório.

Eu vi essa cena: Sivuca dando "dicas" a um flautista da orquestra da TV, sobre como explorar melhor a embocadura...

Generoso, ele me viu "batucando" no piano do estúdio. Disse-me que eu deveria estudar.

Optei pelo jornalismo. O outro teclado.

Há mais de um ano, tenho aulas semanais com Cláudio Soares,  excelente professor de piano. Como leio mal e porcamente, e toco mais de ouvido, fazemos "rearranjos" de músicas de jazz e MPB. Como não tenho mais tempo para me dedicar à leitura, e ele é compreensivo e talentoso, eu fico a maior parte do tempo no teclado. E ele escreve - e reescreve - as pautas.

Semanas atrás, perdi no metrô um caderno com um ano de arranjos. Ainda bem que ele copiou a maior parte das peças.

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Este texto de Frederico Vasconcelos, como o anterior (post de  31 de julho), resulta de uma troca de e-mails  entre mim  e o jornalista. Entendendo que essas histórias, pelo  valor cultural  e pela forma como são contadas pelo autor, devem chegar a outras pessoas, pedi autorização para publicá-las. De forma generosa, Frederico concordou, esclarecendo que não pretende fazer história com episódios e observações pessoais. Estou certo de que os leitores sentirão o mesmo encanto  que sinto quando leio esses  belos relatos. J. Finatto

Frederico Vasconcelos é jornalista, repórter especial da Folha de São Paulo. Mantém o Blog do Fred (blogdofred.folha.blog.uol.com.br) ,  um dos mais importantes e acessados da área do sistema judicial brasileiro.
Pelos seus trabalhos, recebeu, entre outros, o Prêmio Esso, o Prêmio Bovespa de Jornalismo, o Prêmio BNB de Imprensa, o Prêmio Icatu de Jornalismo Econômico e foi finalista do "Premio a la Mejor Investigación Periodística de un Caso de Corrupción", do Intituto Prensa y Sociedad e Transparency International Latinoamérica y El Caribe.
Nas horas vagas, dedica-se a outro teclado: toca piano (Jazz e MPB).
E-mail: fvasconc@folhasp.com.br
Fotos: Hermeto Pascoal (www.hermetopascoal.com.br) e Sivuca (www.sivuca.com.br)

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Post scriptum

Jorge Adelar Finatto

Foi um dia difícil aquele 31 de agosto de 2009. De madrugada, em torno de uma e meia da manhã, li, quase por acaso, o texto intitulado Despedida, em que José Saramago (falecido no último dia 18 de junho, aos 87 anos) declarou que encerrava ali seu blog O Caderno de Saramago. Motivo declarado: precisava de tempo para escrever um novo livro.

A notícia era uma tristeza.

Divulguei a informação no site Judiciário e Sociedade (na época, não tinha ainda blogue), tão logo publicada na rede. Até onde sei, o autor português era o único Prêmio Nobel de Literatura a manter um blogue. Isso revela a atitude participante, corajosa e humilde de um escritor consagrado que vinha cotidianamente à internet compartilhar suas opiniões, inquietações, esperanças, sentimentos e valores (penso que cada post pode ser um ato de criação literária e, no caso de Saramago, com certeza era) com leitores do mundo inteiro, em tempo real.

Era uma exposição rara, sabendo-se que o mundo virtual não é exatamente um território fraterno e transparente, havendo de tudo para qualquer gosto, principalmente para o mau gosto.

Pois Saramago deu-nos o exemplo, veio ao encontro de todos.

Escreveu belas e importantes palavras durante o tempo em que manteve o blogue, iniciado em setembro de 2008. Tornou a web mais sensível, inteligente e, sobretudo, mais humana. Ajudou a dar forma mais digna e mais viva ao mundo virtual.

No mesmo texto em que se despedia, acrescentou um PS, no qual deixava uma fresta aberta. Dizia que, se sentisse necessidade de comentar ou opinar sobre algo, poderia eventualmente voltar ao blogue.

Aqueles leitores que, como eu, levaram fé no PS foram recompensados: leram mais alguns raros posts que ele colocou no ar. Mas nunca mais voltou a ser o que era, aquela presença quase diária na vida de muita gente. Acredito que a saúde foi um dos principais motivos que determinaram o afastamento.

A internet ainda é um ambiente muito pobre em cultura e humanismo. É um lugar inseguro, onde sobram maldades, loucuras, vaidades e faltam exemplos, conteúdos, generosidades. Por isso, a presença de um Saramago foi tão fundamental quanto enriquecedora.

Sempre fui freguês do Caderno. Os textos foram reunidos depois em dois livros. Mas confesso a falta que sinto do blogueiro Saramago. O escritor, contudo, está muito vivo nas obras, na palavra partilhada.

Recomendo a visita ao site da Fundação José Saramago e, nele, um passeio pelo Caderno em seu ambiente natural. Certamente, é uma das melhores coisas que existem na internet e já faz parte de sua história.
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Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
 O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/
Foto: Saramago. Fonte: FJS

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Com licença, realidade: chegou a hora da ilusão

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Estou em Gramado desde domingo à noite. Vim na minha motocicleta 250, calça Lee, manta de lã amarela, jaqueta de couro, bota. Anos 70. Vim no segredo do codinome. O alaúde atravessado nas costas. Trouxe no bornal um livro de contos de Juan Carlos Onetti, o escritor uruguaio (filho de mãe brasileira), e a Serpente Encantadora, reunião das colunas do Telmo Martino, publicadas no Jornal da Tarde, de São Paulo, entre 1975/85.

Alberta de Montecalvino me mandou um e-mail (gostava mais quando ela escrevia cartas), pedindo para eu escrever impressões sobre o Festival de Cinema de Gramado. Não posso recusar nada à grande dama de Passo dos Ausentes. Devo-lhe coisas, isso e muitas mais. Sou devoto da Senhora da Biblioteca.


Nada entendo da arte cinematográfica. Sou apenas alguém que vai ao cinema uma vez por semana. Quando me comovo, eu choro. Sentimental.

Faço o que posso pra esconder dos outros meus estados espirituais. Nem sempre consigo.

A vulgaridade é uma coisa que me constrange.

Não me interesso por Fellini ou Charles Chaplin. Mas minha vida não seria a mesma sem Amarcord e Carlitos.

O festival começa oficialmente na próxima sexta-feira, 6 de agosto, e vai até 14. Mas a cidade já está no clima.  Artistas , imprensa e cinéfilos chegam, o cenário está montado. Nos cafés e lobbys de hotéis o assunto é a tela grande. Curtas, longas, trilhas, direção, roteiros, atores.

O frio é de doer.

Estou num hotel ao lado da antiga igreja da cidade . Meu quarto dá para um bosque de pinheiros. Há pouco vi uma arara azul. Dizem que vai nevar.

Na chegada, não distante da entrada de Gramado, existe um motel ao lado de um pequeno cemitério, na beira da estrada. Morte e vida lado a lado, nuas. Ó contradição.

Quem diz que a ficção exagera nas cores é porque ainda não reparou bem na realidade. Enfim, o que quero dizer é que há gosto e nervos pra tudo no mundo.

Só se muda alguma coisa nessa vida com alegria.


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Fotos: J. Finatto

Saiba mais sobre O Cavaleiro da Bandana Escarlate nos posts de 27 de abril  e 29 de julho de 2010.

domingo, 1 de agosto de 2010

O astrônomo do farelo

Jorge Adelar Finatto




O astrônomo do farelo procura a estrela perdida.

Entre o sagrado e o profano da vida pequena, ele busca beleza e arte nas coisas mais simples. Como o explorador de cavernas que, na escuridão e na umidade,  tateia a fresta de luz que o conduz à escondida gruta, onde ainda brilha a primeira claridade do mundo.

Um dia - sempre tem um dia - o astrônomo do farelo perdeu a  sua estrela. Era uma pequena estrela azul e brilhante. Era uma estrela risonha, íntima e calma que habitava sua alma.

A estrela. Quando a tocava com a ponta dos dedos, muito suavemente, ouvia a doce e misteriosa música que vinha do seu interior. Um dia, de repente, ela desapareceu.

Por ela, ele se tornou um homem calado e triste.  Um oco cresceu no seu coração. Ele ficou assim, torto no mundo. Passa as noites olhando o céu. Um homem ferido a bordo de uma louca procura.

O homem que perdeu a sua estrela.
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Foto: J. Finatto