segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Graciliano Ramos, o texto artesanal

Jorge Adelar Finatto
 

Graciliano Ramos


O texto artesanal se constrói palavra por palavra, no tempo certo, sem pressa. Uma vez construído, ele invade as portas e janelas do sentimento. Com ele o leitor degusta cada vocábulo, cada sentido, com prazer e descoberta.
 
A palavra tem sabor e o bom texto desperta a gula do leitor.
 
Isso é o que nos oferecem os bons poetas, os escritores criativos. Não ficamos indiferentes diante de suas delicadas iguarias. Só de olhá-las na vitrine das livrarias sentimos vontade de levá-las conosco.

O texto industrial, produzido para atender determinada demanda de mercado (como um jornal diário), raramente atinge o nível de arte da escrita. É compreensível que assim seja, pela urgência com que é elaborado. É impossível ser brilhante publicando todos os dias.

Escrever de modo artesanal é um exercício de humildade e paciência diante da vida e da sintaxe. Uma luta permanente de superação das prisões que se erguem fora e dentro de nós.

Um exemplo do que considero um texto artesanal de encher os olhos? Qualquer página do escritor alagoano Graciliano Ramos (1892 - 1953). Conciso, despojado de ornamentos, econômico nos adjetivos, isento de gordura, tudo isso sem ser insosso, capaz de cativar e emocionar o leitor.

A limpeza da expressão, em Graciliano, corresponde a uma ética do fazer literário. O autor se recusa embromar a atenção do leitor. Sabe que cada palavra lida significa tempo raro na vida de quem lê. Um tempo escasso que não volta mais, um tempo de vida vivida que não pode ser desperdiçado.

A palavra, no texto, tem de ser necessária como um pedaço de pão pra matar a fome. A vida é curta, não podemos gastá-la no que é vazio.
 
Vejamos esse pequeno trecho do mestre Graciliano:

"Ave de arribação, não podia arranjar direito as suas histórias, lavá-las, esfregá-las, vesti-las convenientemente, cortar-lhes as unhas, os cabelos e os calos. E talvez julgasse inúteis limpezas excessivas. É possível até que não tivesse conhecimento dessas exigências. Criatura simples e direta, organizava os seus livros com o favor de Deus, evitando as embromações dos escritores comuns, lorotas que só servem para estirar e encarecer o trabalho. Realmente, se ele conseguia narrar um caso em trinta páginas e vendê-lo por dez tostões, por que haveria de espichá-lo em trezentas páginas e explorar o comprador? Domingos Barbosa, novelista consciencioso, só dizia as coisas absolutamente necessárias."*

Graciliano Ramos foi um homem e um escritor inconformado com as injustiças e maldades do mundo. Seus livros nos dão notícia dessa coragem de olhar nos olhos da realidade brasileira e denunciá-la, sem nunca esquecer o indivíduo no meio do redemoinho.

Existem muitas maneiras de escrever. O estilo marcadamente sóbrio de Graciliano, seco segundo alguns, é uma entre tantas possibilidades. É um belo modo de escrever. Não será o único.

Não percebo secura nas linhas do escritor, tão moderno quanto modernos são os bons autores de todas as épocas. A economia no dizer não se confunde com frieza, sequidão, dureza. A palavra flui certa, a página navega segura, nos leva com humanidade e enlevo.

Transparência, clareza, elegância, texto enxuto, no romance, na crônica, nas memórias, nos contos.  Sem derramamentos, sem excessos, um escrever de acordo com o sentido da beleza e da graça, com grande poder de comunicação.

Graciliano, sem jamais pretender ser professoral, é uma aula de como escrever bem e uma das melhores fontes de leitura da língua portuguesa.

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* Viventes das Alagoas. Crônicas. Graciliano Ramos. Rio de Janeiro. Record. 1984. Excerto do texto Um homem de letras.
Entre outras grandes obras do escritor, podemos mencionar São Bernardo (romance), Angústia (romance), Vidas secas (romance), Memórias do cárcere (memórias) e Linhas tortas (crônicas).
Foto: Graciliano Ramos. Fonte: site oficial do escritor:
http://www.graciliano.com.br/
 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A solidão do planeta errante

Jorge Adelar Finatto
 
 
Arte que ilustra como é o planeta errante. Fonte: Observatório Europeu do Sul.

  
Um jovem planeta errante vagueia pelo universo sem ser cativo de nenhuma estrela. Anda por aí sozinho, sem rumo certo, navegando pelas solidões cósmicas.

Normalmente os planetas giram em torno de um astro maior, com grande quantidade de matéria, como o nosso sol, ao qual ficam ligados pela enorme força de atração. 
 
O nome dele é CFBDSIR2149. Foi assim batizado por cientistas franceses e canadenses do Observatório Europeu do Sul. Eles acabam de descobri-lo com o uso de poderosos telescópios situados um no deserto do Atacama, no Chile, e outro no topo do vulcão adormecido Mauna Kea, do Havaí.

Como não está ligado a nenhuma estrela, ele não brilha com luz refletida, sendo identificado somente por telescópios de raios infravermelhos.

Esse tipo de corpo celeste era conhecido apenas na teoria.  Agora, pela primeira vez, foi observado pelos cientistas, que o localizaram a 100 anos-luz da Terra.

Fico pensando na gênese de sua viagem. Talvez, num dia longínquo, resolveu escapar da força descomunal da estrela-mãe, que o aprisionava nos braços superprotetores. Revoltou-se e decidiu fugir pelas estradas do universo. 

- Nem sempre uma estrela sabe ser boa mãe para o seu menino - , ele deve ter pensado. 

Algumas estrelas, digo eu, apegam-se em excesso a seus filhotes. Não os deixam crescer. Não admitem sequer que saiam um pouco fora do quintal estelar para brincar com outros planetinhas. Quer dizer, a vida dos meninos fica difícil. 

Como em toda escolha crucial, essa não deve ter sido nada fácil para o jovem planeta. Se por um lado ele desfruta da indizível alegria de traçar o próprio caminho, por outro não tem mais a mãe e os irmãos pra partilhar a vida. E lá fora, na rua, faz muito frio, é solitário e perigoso.

Certas línguas invejosas (entre os astros também há maledicência) acusam-no de ser não um planeta de verdade, mas uma estrela falhada, ou anã-castanha, isto é, objeto celeste que, por não ter tamanho nem massa suficientes, não consegue deflagrar as explosões termonucleares que fazem brilhar as estrelas bem sucedidas.

Dizem outros que, na melhor das hipóteses, o planetinha não passa de um andarilho, reles vagabundo do universo a navegar sem eira nem beira.
 
Bom mesmo, penso eu, seria vê-lo e respeitá-lo na sua dura verdade de ser em construção. 

Viajar sozinho pelo espaço, sem ligação com uma estrela, pode ser um ato libertário e uma grande aventura. Mas deve ser triste também. Na vida as escolhas não costumam ser fáceis.

Enfim, cada um sabe o doce e o amargo que traz na alma. 
 

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Cálido

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto
 
 
 
Preciso escrever
o poema
que vai salvar
esse dia

o poema cálido
para atravessar
o tempo difícil
que ainda tenho
pela frente

o poema que vai
expulsar
a vontade
de morrer
que chega
aos poucos
como um felino


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Do livro Memorial da vida breve, Jorge Finatto, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Tarde de primavera, a luz, os peixes

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
 
Contarei esta estória suspirando,
Daqui a séculos e séculos em algum outro lugar:
Duas estradas, num bosque, divergiam; e eu
Tomei a que era menos frequentada;
E foi isso a razão de toda a diferença!
                                                             Robert Frost*

O sábado estava com sol amarelo e céu azul, as estradas de chão batido querendo ser caminhadas. Andarilho do fim do mundo, parti na caminhada polifônica** em meio às árvores, perto do riacho. Me misturei na paisagem, longe da cidade, longe dos gritos da realidade.

Foi quando, na beira do córrego, encontrei esses peixes entre pedras e aguapés, numa luz de primavera.
 
A arte da fotografia é uma forma de fazer cessar o tempo. Um modo calado e atento de preservar o momento e adiar o oblívio.

photo: j.finatto

A foto é, de fato, um território revelado que se bate contra a morte.
 
Sou fotógrafo amador e trago comigo o entusiasmo dos velhos fotógrafos em missão de desvelar o oculto que súbito se ilumina.

photo: j.finatto
 
Na linguagem dos peixes, pedi licença e colhi algumas imagens. Valeu a pena. A tarde de sábado foi salva do esquecimento com  esses coloridos habitantes.

photo: j.finatto

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*Poema A estrada que não tomei, do livro Poemas Escolhidos do poeta americano Robert Frost (1874 - 1963). Tradução de Marisa Murray. Editora Lidador Ltda., Rio de Janeiro, 1969.
 ** A caminhada polifônica:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/08/o-peixe-da-boca-vermelha.html
 

sábado, 10 de novembro de 2012

A literatura morreu (a palavra, não)

Jorge Adelar Finatto
 
 

Agora que a literatura morreu, escrever e ler são atos póstumos, libertos da concorrência e da busca frenética pelos holofotes. Pelo que dizem os arautos do apocalipse, a essa altura somos todos, escritores e leitores, uns pobres moribundos à beira do crematório literário. 

Mas não convém perder a esperança. Poupemos o último suspiro.

Alguns observadores, menos funestos, afirmam que os livros estão perdendo a face humana. É verdade.  A estética e a ética da publicidade, em estreita harmonia com o deus mercado, tomaram conta do mundo dos livros (e de outros mundos), antes um território de culto à beleza e ao espírito. 

Podemos estar vivendo o crepúsculo da era de Gutenberg. O livro como objeto de arte e de cultura tem um futuro incerto pela frente. Menos pelo surgimento de novos meios de leitura, como o livro eletrônico, e muito mais pela perda de valor intrínseco do que se publica. 

Há um estrangulamento de sentido na literatura (o que não vende não tem significado nesse universo - ou é digno de pena). 

A literatura passa por um tempo de anemia como todo o resto. Excesso de autores e de obras, pouca inventividade, rasa originalidade (incluindo cópia de textos alheios na cara dura sem menção das fontes) são alguns dos componentes deste quadro. 
 
A banalização da palavra, o surgimento de escritores com pouca ou nenhuma leitura, a onipresença da linguagem padronizada à maneira fast-food levam ao previsível esgotamento de um certo  tipo de literatura.
 
A palavra não morre. O que morre é a literatura frívola, insípida e mercantil, que pouco ou nada oferece.
 
Nem tudo está perdido. Há escritores dignos deste nome para além dos fogos de artifício, da lista dos mais vendidos, dos modismos, do marketing pessoal, do texto embromador que se escreve com óculos escuros e de olho no dinheiro e na fama.

A boa literatura é um território luminoso, um lugar que não diminui o ser humano. 

O importante, penso eu, é não parar de procurar a alegria que só os livros podem nos dar.

Os clássicos estão sempre aí e é possível identificar, entre os novos, autores que têm algo a dizer. Não desistir da condição de leitor é uma luta que ainda vale o esforço. 

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foto de livros antigos. fonte: freepik.com
 

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O barco mais triste do mundo

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto. Rio Mondego, Coimbra


A minha paixão por barcos e navegações sempre me leva a cidades de mar ou rio. Sou um bicho das águas.

O fato de ter nascido e de viver numa cidade serrana é apenas uma das contradições que me definem.

O sonho menino de tornar-me marinheiro jamais me abandonou. Por isso, talvez, essa busca recorrente às águas e às embarcações.

A nostalgia dos barcos não sai do meu coração.

Em Coimbra, existe um barco de passageiros com o nome de Basófias, fundeado no pequeno cais, perto do centro da antiquíssima cidade portuguesa.

Resolvi um dia ir ao encontro do Basófias e fazer um passeio pelo Mondego, o rio que me faz sentir saudades de todos os rios do mundo.
 
Ocorre que, nas três ocasiões em que fui ao cais, não consegui realizar a navegação.

Numa das vezes, o barco estava em manutenção; noutra, não havia passageiros além de mim; numa outra ainda, o tempo mau não permitiu levantar âncora.

Em suma, nunca consegui navegar no Basófias. A nave permaneceu, no meu imaginário, como um barco que jamais saiu do cais.
 
photo: j.finatto. Coimbra
 
A tripulação do Basófias é composta por marinheiros uniformizados a rigor, afáveis no trato. A pose e o orgulho náutico não deixam dúvida de que estamos diante de calejados navegadores.

Às vezes, fico pensando.

O Basófias, nas amarras que o impedem de lançar-se ao rio e realizar o destino para o qual nasceu, é o barco mais triste do mundo.

Mas não deixa de ter sua graça a imóvel embarcação.

De certa forma, o Basófias é a metáfora da existência de muitos.

Dele me enterneço, porque é o retrato de tantas vidas que ficam à margem, esperando no cais, esperando por uma viagem que nunca acontecerá.
 
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Texto publicado em 03 de março, 2010.
 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Canção da bruma

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 

Senhor
quando chegar
a minha vez
de cruzar a ponte
deixa eu levar comigo
no alforje de nuvem
os dias de sol

as tardes
de outono

os pinheiros
da serra onde
nasci

deixa eu levar
o som do riacho

as antigas
conversas
da Rua São João

me concede
a memória
dos amigos
da infância

na bruma
que serei
me alcança
um bosque
e pássaros
para tecer
a minha casa

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Poema do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.