quinta-feira, 11 de março de 2010

Discreta canção para um guarda-chuva perdido

Jorge Adelar Finatto

Se encontrares por aí 
um guarda-chuva perdido
toma-o na mão
e leva-o contigo

alguém distraído
perdeu-o
sem querer
na casa do vento

não o abandones
por favor
na neblina
do oblívio

acolhe esse amigo
que foi esquecido 
num banco de praça
na tarde vazia
de um domingo

oferece-lhe
afeto e abrigo

um dia talvez 
ele partilhará
a longa solidão
do inverno
contigo


















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Fotos: J.Finatto

quarta-feira, 10 de março de 2010

Breves anotações de um fantasma

Jorge Adelar Finatto

desenho a bico de pena, 1979, j.finatto
 
As dedicatórias, nos velhos livros dos sebos, me comovem.

Dói nelas a solidão de não mais pertencerem a alguém. Estão soltas no mundo como a mão que acaricia o vento. Caíram no alçapão do tempo, o afeto cobriu-se de pó.

Numa estante qualquer perdida no planeta, as velhas dedicatórias sofrem a tristeza da ausência.

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Abro ao acaso o volume das Elegias de Duíno*, poemas de Rainer Maria Rilke, livro que não visitava há muitos anos. Na orelha está a minha assinatura e o registro de um tempo: abril de 1977.

O primeiro verso da primeira elegia inaugura a perplexidade diante da existência, o recolhimento do ser, a transcendência:

Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?

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Tenho o costume de fazer pequenos apontamentos nos livros que leio. Não me constranjo de sublinhar trechos, tecer comentários nas margens, corrigir alguma coisa que me pareça fora de lugar. Faço isso sem remorso, hábito enraizado como o de cheirar os livros. Cada um tem seu aroma.

Nunca me incomodo de encontrar anotações nos livros comprados nos sebos da vida. Pelo contrário, me interessa saber o que o anterior proprietário escreveu, o que lhe chamou a atenção, as impressões que lhe ficaram da leitura, alguma observação curiosa.

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Heitor dos Crepúsculos, o fantasma-mor de Passo dos Ausentes, costuma me visitar nos dias chuvosos como hoje, aqui no escritório onde leio, escrevo e, às vezes, desapareço em pleno ar.

Diz ele que os fantasmas são os grandes frequentadores dos sebos. À noite, no silêncio dos corredores desertos, entre estantes pesadas de volumes e o cheiro adocicado no ar, proveniente das páginas envelhecidas, os voláteis põem-se a vasculhar as histórias contidas nas dedicatórias e registros escritos. Sabem que existe vida ali.

Dos Crepúsculos afirma que os fantasmas amam a vida e só por isso são fantasmas.

Observa que eles procuram nos sebos o livro da vida perdida. Esse livro traz o perfume ressequido do tempo, e as marcas dos dias felizes.

- Costumo fazer anotações à margem das outras anotações. No futuro, quem sabe, ao lê-las, alguém vai se lembrar de mim com o mesmo carinho -, confidencia o volátil Heitor.

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* Elegias de Duíno, Rainer Maria Rilke, tradução de Dora Ferreira da Silva. Editora Globo, 2ª edição, Porto Alegre, 1976.

Ilustração em bico-de-pena (1979) e foto: J. Finatto

Coleção de clássicos

Jorge Adelar Finatto

A Editora Abril está lançando uma coleção de clássicos. O primeiro livro tem dois volumes e custa R$ 14,90. Não poderia ser melhor a escolha do título: Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. Os próximos livros sairão pelo mesmo valor, cada volume, e estarão nas bancas semanalmente.

A coleção terá 30 obras nos gêneros romance, conto, poesia e teatro, com nomes consagrados da literatura mundial. As publicações trazem estudos sobre os autores e suas obras, têm capa dura e são revestidas de tecido. O acabamento é bonito. Um regalo pra quem gosta de livros.

Fiz uma coleção semelhante nos idos de 1980, também lançada pela Abril. São obras fundamentais. Comprava cada volume com dificuldade, apesar do preço acessível. Valeu o esforço.

A boa leitura é um patrimônio cultural e espiritual pra toda vida.

terça-feira, 9 de março de 2010

O aborto e o Papa

Jorge Adelar Finatto

 
 
A frase na parede de um prédio público, quase à beira do Rio da Prata, me fez parar sob um sol forte, a poucas quadras do belo e tradicional Teatro Solis, em Montevideo, em janeiro passado.
 
O Uruguai é um país de gente que lê, opina, discute, participa. O que me motivou a fotografar?
 
Primeiro, o argumento. Se o Papa fosse mulher, uma papisa, portanto, a questão do aborto teria mesmo outro tratamento? Será que a compreensão do problema do aborto é uma questão só de gênero?
 
Segundo, eu não tenho opinião definitiva sobre o assunto e não faço julgamento moral a respeito. O que eu queria é entender.
 
O grafite montevideano expressa a opinião de milhões e milhões de mulheres no mundo inteiro. O aborto é uma questão de gênero. Mas não só.
 
Gerar ou não uma vida no próprio ventre é, em boa medida, uma decisão da mulher, por diversas razões.
 
A rejeição da gravidez ou a omissão dos homens em relação ao fato é uma delas.
 
A legalização do aborto é uma das faces de um problema maior, mas está longe de ser a principal.
 
A afetividade, a sexualidade e a responsabilidade pela geração da vida estão intimamente ligadas. Fazer sexo, sexo casual, é diferente de fazer amor.
 
A indústria da propaganda, em geral, separa o corpo e o sexo do resto. Existem corpos lindos, mas não existe espírito nesses corpos.
 
Corpos maravilhosos de mulheres são utilizados para vender qualquer coisa. O mesmo também acontece agora com corpos masculinos.
 
A erotização começa na infância, através dos comerciais, filmes, programas, séries e novelas de televisão.
 
Coisas como compromisso nas relações, autoestima, estima e respeito pelo outro são tratadas de maneira  residual.
 
Em vários países o aborto foi legalizado.
 
No Brasil, a discussão permanece e sua prática ainda é crime, salvo nos casos em que não houver outro meio de salvar a vida da gestante e quando resultar de estupro (desde que precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal).
 
Dizem os defensores da legalização que mulheres pobres, que não podem mais ter filhos, muitas vezes são levadas a fazer aborto em condições sub-humanas, longe do sistema público de saúde, com elevado índice de letalidade, enquanto mulheres com boas condições econômicas pagam por procedimentos particulares e recebem melhor atendimento.
 
Informação do Ministério da Saúde estima em 1,4 milhão de abortos clandestinos no Brasil por ano, conforme dado colhido do site Themis, Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, de Porto Alegre.
 
Dizem também os defensores do aborto que a mulher tem o direito de dispor do próprio corpo.
 
Os que são contra a legalização afirmam que a mulher não pode interromper uma vida que já não lhe pertence, mas é de outra pessoa depois da concepção.
 
Eu não sou especialista no assunto, mas também não sou hipócrita.
 
O aborto é um tema a ser tratado por toda a sociedade, mulheres e homens.
 
Tratado, sim, mas num espectro mais amplo do que a mera legalização, que, pelo que vejo, acabará acontecendo.
 
Está na hora de pensar a sexualidade humana de modo mais responsável, penso eu. Isso é mais do que simplesmente distribuir milhões de camisinhas no carnaval e achar que está tudo certo.
 
Este grafite na parede de um edifício, em Montevideo, sob o sol escaldante do Rio da Prata em janeiro de 2010, me fez parar e tentar entender.
 

segunda-feira, 8 de março de 2010

A hora do farelo

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
O coração do outono pulsa ao som dos Noturnos de Chopin.
Enquanto filósofos desvelam os insondáveis desígnios da condição humana, eu espero pelo pinhão cozido na chapa do fogão a lenha.
O vento roça os telhados e janelas.
A chegada da estação se adivinha na neblina, um pouco de frio, amarelo nas folhas.
Essas coisas me vêm na hora imprópria do farelo, olhando a estrela.
Espero que os pinheiros não se deixem morrer na crise cósmica que atravessamos.
O egoísmo e a maldade humana estão nos levando para o buraco.
Por cima vêm as catástrofes naturais como poucas vezes antes.
Existe alguma coisa que cala e sente quando vem o anoitecer, que olha a lonjura das estrelas, observa o mistério inumerável da vida, sabe que o tempo é curto pra conhecer e sentir tanta beleza.
Existe, na revelação do farelo, o sentimento de que faltam mais encontros com os amigos.
Faltam mais mesas pra ficar com as pessoas a quem amamos.
Há um excesso intolerável de realidade.
A beira da noite, no outono, impõe austeridades.
Ermos são os caminhos da hora do farelo.
As folhas amarelas do tempo caem em volta dessa hora descarnada.
A beleza da vida num voo de borboleta.
A impressionante leveza que a faz girar, levitar, divagar entre flores e ramos.
O ocre do outono deita sedas nos caminhos.
A palavra escrita recolhe nossa presença no mundo.
A palavra existe pra ser partilhada.
A hora do farelo traz a vontade de voar sobre os abismos e certezas.
Em que lugar enterraram o mistério, em que ilha de ausência no meio do oceano?
Talvez longe demais.
Se ao menos um anjo surgisse dizendo que nada foi em vão…


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Foto: J. Finatto

sábado, 6 de março de 2010

Johnny Alf e a brisa

Jorge Adelar Finatto


Entre nós e a maravilha, há o trabalho silencioso de homens e mulheres na arte.

São pessoas que entram na nossa sensibilidade, tocam fundo a nossa emoção e o nosso pensamento.

De Cenair Maicá a Chopin, de Heitor Saldanha e Jorge Luis Borges, muitos desses criadores andam comigo nas duras ruas do cotidiano, todos fazem parte da família espiritual que me ilumina.

O pianista, compositor e cantor Johnny Alf era um desses seres especiais.

Morreu na quinta-feira, 04 de março, aos 80 anos, de câncer de próstata, em Santo André, na região do ABC paulista. Nascido em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, de família muito pobre, acabou se tornando um dos precursores e criadores da Bossa Nova, movimento que projetou mundialmente a música brasileira a partir dos anos 50 do século passado.

Alf construiu uma obra absolutamente original. Compôs obras-primas como Eu e a brisa, Ilusão à toa, Céu e mar, Olhos Negros, Fim de semana em Eldorado, Rapaz de bem, entre tantas outras. Foi o delicado inventor de harmonias raras, sofisticadas, inesquecíveis.

Não existe um continuador para  a obra de Johnny Alf . O seu modo único de criar e cantar termina com ele.

A experiência estética de Alf resulta da combinação de gêneros como samba, samba-canção e jazz. Foi cultuado pelos grandes nomes da Bossa Nova como Tom Jobim, João Gilberto e Newton Mendonça, que acompanhavam suas apresentações na boate Plaza, em Copacabana, entre 1953 e 1954. Menores de idade, Carlos Lyra, Roberto Menescal e Luís Carlos Vinhas assistiam clandestinamente aos concertos de Alf na boate.

Entre as suas influências, estão os americanos Nat King Cole e Sarah Vaughan.

Um homem muito tímido, humilde e gentil. Era preciso fazer silêncio para ouvi-lo falar.

O seu talento ainda não foi reconhecido como devia. Não tinha queixas, era uma pessoa nobre.

Dizem que os grandes artistas vêm ao mundo continuar a obra de Deus.

Alfredo José da Silva, o nosso Johnny Alf, com certeza foi um desses escolhidos.

Se prestarmos atenção na brisa, provavelmente ouviremos ao longe a voz cálida e suave de Johnny Alf.


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Foto de Johnny Alf. Divulgação do show realizado pelo artista no Sesc Vila Mariana, São Paulo, 2009. Fonte: site do jornal O Estado de São Paulo.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Cartas perdidas

Jorge Adelar Finatto 


O que acontece quando uma carta não chega ao destinatário? Em que misteriosos desvãos se perdem essas correspondências que não encontraram seus legítimos donos?

A comunicação postal faz parte da vida humana. Um mundo sem cartas e sem correio é algo sombrio.

A livre expressão do pensamento, nas cartas, é vista como perigosa pelos estados autoritários. As ditaduras limitam e, não raro, suprimem a liberdade de correspondência.

Esse direito está assegurado no art. XII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e, no Brasil, pela Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XII).

As cartas e o correio estão na origem da civilização. Os mensageiros sempre existiram. Relatos bíblicos contêm referências expressas a respeito deles, como se vê no livro de Jeremias 51:31  (escrito no ano 580 antes de Cristo) e no livro de Ester 3:13 (escrito por volta de 475 a.C.)

Com o advento da internet, o correio tornou-se lento no que diz com a troca de mensagens. Mas o velho sistema persiste, entre outras razões, porque o modo de tratar dos assuntos nas cartas é muito diferente daquele do e-mail, por exemplo. Além disso, o correio permite a remessa física de documentos e objetos.

Voltemos. O descaminho de uma correspondência pode mudar a vida de uma pessoa. O raro leitor não acredita?

Pois foi isso mesmo que aconteceu com o médico norte-americano Royal Ellwood Durham.

O fato só veio à tona em fevereiro de 1987. O correio dos Estados Unidos entregou-lhe, naquela ocasião, dois pacotes com data de 1917. Portanto, com 70 anos de atraso…

O Dr. Ellwood Durham tinha então 92 anos e vivia num asilo na localidade de Linwood, Nova Jersey (nordeste dos EUA).

A correspondência atrasada continha dois documentos assinados pelo ex-presidente dos Estados Unidos Thomas Woodrow Wilson. O primeiro deles consistia na nomeação de Durham para o posto de primeiro-tenente da seção médica do corpo de oficiais da reserva da Marinha americana, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O segundo nomeava-o médico do Jefferson Medical College.

Os pacotes chegaram misteriosamente ao hospital episcopal da Filadélfia, Pensilvânia (costa leste dos EUA), no dia 04 de fevereiro de 1987. Naquele hospital o velho médico havia trabalhado entre 1916 e 1917. Dali foram remetidos para o asilo.

Durham surpreendeu-se, como não podia deixar de ser. Custou acreditar no que via. Ignorava que uma vez o presidente dos Estados Unidos havia se ocupado dele, decidindo coisas importantes a seu respeito.

O médico soube, então, que entre a vida que foi e a que poderia ter sido havia uma correspondência extraviada. Dois documentos que se perderam no caminho, e só encontrariam o destinatário sete décadas depois, quase centenário, enredado nos escaninhos da memória.

As armadilhas do correio e do tempo não conseguiram extraviar o bom humor de Durham. Ao ler o conteúdo dos documentos, comentou: “Isso é uma coisa extraordinária, depois de tanto tempo. Dá o que pensar. O que terá acontecido em todos esses anos?”.

O fato pode levar a algumas incômodas digressões.

E se fosse uma carta contendo uma declaração de amor?

O que poderia fazer com isso setenta anos depois?


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Foto: Jorge Finatto
jfinatto@terra.com.br