sábado, 30 de abril de 2011

Fuga y misterio

Jorge Adelar Finatto



Depois das gaivotas, dos barcos e do Guaíba, retornei a Passo dos Ausentes, meu chão no mundo. Na noite de outono, na Praça da Ausência, as pessoas olham o bordado das estrelas com a lua e sentem o perfume branco e azul das flores das quaresmeiras. Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada da nossa pequena cidade, apresenta-nos o Primeiro Concerto do Outono. A noite está muito fria, a temperatura caiu aos dois graus, informa o termômetro ao lado do chafariz. Com o capote preto descendo até as canelas, o boné de lã com as abas caindo sobre as orelhas, sentado numa cadeira de palha, Niebla executa peças de Astor Piazzolla. A abertura foi com Fuga y Misterio, comovente como as restantes músicas do programa.

Umas trinta pessoas estamos diante do coreto da praça onde o músico toca. Cada um trouxe sua cadeira de casa. Alberta de Montecalvino usa o lenço azul claro ao redor do pescoço de gazela; sobre o casaco cor-de-rosa, o camafeu de prata na altura do coração. A grande dama está na primeira fila e não faz questão de esconder as lágrimas, no que é acompanhada por muitos da assistência.

Aos poucos a névoa vai tomando conta do lugar. A luz amarela dos postes de iluminação mergulha na brancura azulada da bruma. Ao final do concerto, Mocita de la Vega sobe ao coreto e entrega um arranjo de rosas amarelas a Juan Niebla, enquanto se ouvem aplausos e gritos de bravo. Claudionor, o Anacoreta, ergue as mãos ao céu em agradecimento.

Quem nos visse reunidos nesse cenário pensaria, talvez, tratar-se de uma página de romance do século XIX. Mas não. Somos seres de carne e osso. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento. Comove-nos a música de Piazzolla, recriada magistralmente pelas mãos de Juan Niebla. Nessa hora aberta, fria e vazante.

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Foto: J. Finatto

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Fernando Pessoa, Cartas Astrológicas



A partir da interpretação das cartas astrológicas de Fernando Pessoa sobre personalidades mundiais, Portugal e dos seus heterónimos, Fernando Pessoa – Cartas Astrológicas, de Paulo Cardoso e Jerónimo Pizarro, explica, de modo acessível e rigoroso, como a astrologia se insinua na obra de um dos maiores poetas portugueses.

Apresentação da obra por José Blanco: 03 de maio, às 18h30min, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.
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Câmara Municipal de Lisboa
Casa Fernando Pessoa
R. Coelho da Rocha, 16
1250-088 Lisboa
Tel. 21.3913270
Autocarros: 709, 720, 738 Eléctricos: 25, 28 Metro: Rato
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt
www.mundopessoa.blogs.sapo.pt

Reprodução de notícia da Casa Fernando Pessoa. A grafia é a de Portugal.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Aos que dizem que tudo é possível

Jorge Adelar Finatto


Aos que dizem que tudo é possível, eu digo sim, tudo pode via a ser. Mas que venha logo, sem demora, sem promessas delirantes, que desperte, enfim, a luminosa manhã. 

A treva tomou conta do Brasil, da cidade, da minha rua, entrou na minha casa.

Fugir pra onde? Se tudo em volta suspira e dói. 

Se tudo é possível, que venham as pequenas alegrias, as inesperadas ternuras, os abraços escondidos, as urgentes revelações, as mãos dadas.  

Se tudo é possível, um casal dançará um fado rasgado em plena calle deserta.

Se tudo é possível, abrirei o guarda-chuva e sairei pela noite em busca de açucenas em setembro pra deixar em tua porta.

E se tudo for mesmo possível, vamos enfrentar o problema do medo de viver

(a morte, essa coisa numerosa e fria, está em toda parte e não faz mais espanto).

Dizem eles que tudo na vida é possível.

Que venha depressa essa ventura.

Que não nos falte o impossível amanhecer.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Apresentação da revista Nova Águia dedicada a Fernando Pessoa



Miguel Real e Renato Epifânio estarão na Casa Fernando Pessoa dia 29 de Abril pelas 18h30 para a apresentação do novo número da revista Nova Águia, que tem como tema Fernando Pessoa: 'Minha pátria é a língua portuguesa' - Nos 15 anos da CPLP. A Nova Águia - que surgiu em 2008 - é hoje uma referência incontornável no panorama cultural lusófono, estendendo-se as suas apresentações públicas a largas dezenas de cidades não só em Portugal, mas também no Brasil, em Timor-Leste, Cabo Verde, Índia e Angola. A lista de colaboradores inclui nomes consagrados como António Braz Teixeira, Adriano Moreira, António Telmo, Pinharanda Gomes, António Cândido Franco, Artur Manso, Miguel Real, Joaquim Domingues, Manuel J. Gandra e Jorge Telles de Menezes, mas dá também voz aos novos autores da lusofonia. Inspirando-se na visão de Portugal e do Mundo de Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, a Nova Águia assume-se como um órgão plural. Na mesma ocasião será ainda apresentada a revista Letras com Vida, do Centro de Literaturas e Culturas Europeias e Lusófonas da Faculdade de Letras de Lisboa.

Câmara Municipal de Lisboa
Casa Fernando Pessoa
R. Coelho da Rocha, 16
1250-088 Lisboa
Tel. 21.3913270
Autocarros: 709, 720, 738 Eléctricos: 25, 28 Metro: Rato

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Reprodução de notícia da Casa Fernando Pessoa.

terça-feira, 26 de abril de 2011

A palavra em silêncio

Jorge Adelar Finatto


Reescrever será, talvez, o vero escrever.

A palavra em silêncio é a palavra em estado de poema. É a expressão que busca, no cotidiano, a poesia existente nas coisas e nos seres.

O poeta não faz poesia, disse o poeta cruz-altense Heitor Saldanha. O poeta faz o poema, ensinou Heitor, sem nenhuma intenção professoral, do alto do seu gênio e da sua humildade.

A poesia existe em si, solta no mundo, enquanto o poema é a tentativa de colher esta revelação.

Nada grita como o poema, esta construção verbal, quase sussurro. O poema não é marketing pessoal, não quer vender nada. É como um rio vivo, correndo no fundo da memória e do tempo.

A palavra, irmã da vida, vida cheia de sofrimento, encanto, esperança, vida que quer ir além da miséria existencial, vida nossa de todos os dias, que tão pouco conhecemos.

O verso é a procura da comunicação, nasce em silêncio, abre caminho para a claridade. O poema reduzido ao rumor de sua incomparável verdade.

A expressão avessa ao ruído da conveniência e do agrado fácil, que só se afirma na medida do alvoroço interno da própria luz que produz.

A palavra lavrada a frio, na entranha quente da vida.

O ato de publicar em livro deve ser exceção no ofício do escritor. Uma parte significativa do que se publica não tem qualidade para ser impressa. O respeito ao leitor, e até mesmo às árvores que se derrubam para fazer livros, requer isso. Podemos ser exigentes naquilo que escrevemos.

Precisamos dar o nosso melhor, fazer o possível. É claro que sempre há uma insegurança quanto ao que, como e quando publicar. Mas em geral o bom texto emite sinais, se impõe como algo que poderá ser socializado através da publicação.

Reescrever será, talvez, o vero escrever.

Uma parada na estação-gaveta, por algum tempo, pode salvar um texto. Em literatura, prefiro o fazer pouco, mas fazer bem.

Publicar qualquer coisa, publicar por publicar, fazer carreira de poeta ou escritor, não é  e nunca foi o meu caminho. As coisas ruins que publiquei o fiz pensando que eram boas. A gente também se engana.

Ninguém deve se sentir acuado diante da palavra. Ninguém está obrigado a só escrever matéria excelente, isso só aumenta a angústia e desestimula. Não existe, de resto, a obra literária perfeita.

A alegria precisa ser nossa irmã na travessia da escrita.

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Foto: J. Finatto

segunda-feira, 25 de abril de 2011

O que vem chegando

Jorge Adelar Finatto



O que vem chegando
desde muito longe
no longo apito
do navio

saudade de mim?


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Do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Foto: J. Finatto

sábado, 23 de abril de 2011

Manhã de Páscoa

Jorge Adelar Finatto



O que as mulheres estão olhando? O que vem pela frente na estrada do tempo? Quem ficou em casa sem nada esperar?

Que mistérios, que notícias virão enrolados nos palimpsestos da manhã de Páscoa?

O amanhecer avança entre as sombras, espalha-se no ar azul.

O que há de luminoso no domingo de Páscoa é que todos estão vivos. Anda pela casa o cálido rumor de vozes, conversas, cantigas, risos, que começa na quinta-feira Santa e se estende até a Ressurreição.

Todos estamos vivos e a esperança habita entre nós.

A vida vence a morte e nada está perdido.

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Imagem: pintura Manhã de Páscoa, de Caspar David Friedrich (1774 - 1840). Fonte: Museu Thyssen-Bornemisza, Madri, Espanha: http://www.museothyssen.org

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Talvez com a chuva

Jorge Adelar Finatto


Talvez com a chuva
recupere a coragem
e saia por aí batalhando
as coisas que acredito

talvez nos tornemos
até bons amigos e unidos
expulsemos o medo
pra fora das gavetas

talvez a gente
consiga se olhar
e vai ser
o começo de tudo

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Poema do livrinho Viveiro, Edições Sanguinovo, São Paulo, 1981.
Foto: J. Finatto

terça-feira, 19 de abril de 2011

The maker of auroras

Jorge Adelar Finatto


Give me your hand,
may afternoon,
your slender rain
your memory filters
your clearness

the heart persists
in the slow construction
of the mornings

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Poem from the book O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Oscar Wilde em Passo dos Ausentes

Jorge Adelar Finatto

 
O guarda-chuva é um escudo existencial contra a tristeza e a pouca luz do mundo.

Um indivíduo deprimido e solitário não deve andar por aí sem guarda-chuva, mesmo em dias de sol. Não importa o tempo que faz lá fora.

A umbela traz consolo ao coração, além de proteger o esqueleto.

Em Passo dos Ausentes, existe o Sindicato dos Fazedores de Guarda-Chuvas, Chapéus, Bengalas, Luvas e Mantas. A cidade, hoje habitada por muitos fantasmas e poucos seres humanos, foi importante centro produtor e exportador desses produtos. Consta nos registros do sindicato que, entre 1890 e 1939, a Inglaterra importou a quase totalidade da produção.

O cliente mais famoso, na área das artes, foi ninguém mais, ninguém menos, do que o escritor irlandês Oscar Wilde (1854 - 1900). Dizem os antigos que ele chegou a ter perto de 20 chapéus-de-chuva (nome pelo qual também é conhecido o guarda-chuva ) e cerca de 10 bengalas confeccionados na Terra dos Ausentes.

Numa secreta viagem, o autor de O Retrato de Dorian Gray esteve em Passo dos Ausentes, em 1891. Veio a nossa pacata aldeia a fim de mandar fazer, pessoalmente, um modelo exclusivo de guarda-chuva. O artefato tinha, num canto da parte externa do tecido azul-claro, as iniciais D.G., em tom rosa, as mesmas que foram gravadas, em prata, no cabo de osso de anta.

Oscar ficou durante 40 dias por aqui, conforme está registrado no livro de hóspedes da pensão Ao Viajante Solitário. Foi tempo suficiente para encantar a todos. Ganhou o título de cidadão honorário e sua despedida, na estação de trem, foi um dos maiores acontecimentos da cidade em todos os tempos.


Tal impressão causou em nosso meio que, desde então, quando pessoas de Passo dos Ausentes viajam à Inglaterra e à França, fazem uma espécie de peregrinação sentimental atrás de Dorian Gray, quer dizer, Oscar Wilde.

Muitos dos bilhetes apaixonados colocados (todos os dias) junto ao túmulo do escritor, no cemitério Père Lachaise, em Paris, são de gente dos Campos de Cima do Esquecimento.

Entre os políticos que adquiriram essas nossas obras de arte, estão Getúlio Vargas e Winston Churchill. Na Terra da Rainha como em São Borja, são tratados como relíquias e viraram peças de museu. Em diferentes países do mundo, os guarda-chuvas aqui produzidos transmitem-se através das gerações na condição de finas joias de artesania.

Faz 40 anos que Guilherme Baden-Baden, o químico de Passo dos Ausentes, não sai à rua sem carregar o enorme Morcego Negro, espécie de capacete protetor que se afeiçoou a ele como se fosse a extensão de seu esquerdo braço.

Homem pequeno, Baden-Baden quase desaparece sob o para-sol (outro nome do objeto pluvioso). Enquanto estiver com o guarda-chuva aberto, afirma ele, nada de ruim poderá lhe acontecer. Não se trata de vã filosofia, diz o sábio:

- É uma intuição ancestral, uma maneira de ver e sentir a existência.

Nunca ninguém, em qualquer tempo, foi abandonado por um guarda-chuva. O contrário, porém, é muito comum.

Uma das grandes invenções da humanidade, cuja origem se perde na noite dos séculos, o guarda-chuva é, ao lado do cão e dos diários das moças, o melhor amigo do homem.

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Fotos: 1) Oscar Wilde com seu casaco favorito, 1882. Autor: Napoleon Sarony. Fonte: Wikipédia. 2) Guarda-chuva nos jardins da Praça da Ausência. Autor: J. Finatto.
Texto revisto, publicado em 18 de abril, 2011.
Leia também, sobre Oscar Wilde e o beijo proibido:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/06/oscar-wilde-e-o-beijo-proibido.html

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O peixe da boca vermelha

Jorge Adelar Finatto
photos: j.finatto

photo: j.finatto


A caminhada polifônica destina-se não apenas ao exercício do corpo como à indispensável atenção às coisas do espírito.

A observação dos seres vivos e da paisagem, a aproximação estética e sensorial da mãe natureza, a respiração do ar limpo e fresco das manhãs (ou tardes), a descoberta de inefáveis epifanias durante o percurso, tudo isso faz parte da polifonia andante.



Andava eu nas cercanias do Lago da Neblina, em Passo dos Ausentes, prevenido com a invencível Coruja, a vetusta máquina fotográfica que me acompanha. Os gansos desistiram de acusar a minha presença. Sabem que sou apenas um caminhante que está só de passagem, um sujeito inofensivo, que anda a bordo de um chapéu de palha branco, com grossas e estapafúrdias lentes nos óculos, catando o invisível.


Um indivíduo assim não oferece risco à fauna e à flora, quiçá a si mesmo.


Nas margens e dentro do lago existe vida pulsante. Estava eu olhando o vazio (essa maneira de encontrar, talvez, o inesperado) quando ouvi um vago rumor na água.



Foi quando me apareceu o amigo (ou amiga) dessas fotos.



Um peixe branco, a boca pintada de vermelho, com traços coloridos espalhados pelo corpo, cerca de 1 metro de comprimento, passou a navegar perto de mim.

Tive a impressão de que sabia da sessão de fotos, ao menos não poupou poses e movimentos. Chegou-se mais para a beira, mas não tão próximo que não pudesse ativar um plano emergencial de fuga caso isso fosse necessário. Não foi.



O peixe da boca vermelha quis dizer alguma coisa com sua presença, e acho que conseguiu. Encheu de beleza a tarde e o meu coração.



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Fotos: J. Finatto
Texto publicado em 25 de janeiro, 2011.

Among maple trees

Jorge Adelar Finatto


Among maple trees
and butterflies
the boy plays

against the street misery
and the family tragedy
he grows up

for a moment
at the world's dawn
the boy spins

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Poem from the book O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: Photo: J. Finatto

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O espantalho no milharal

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Se parar de escrever na casa do labirinto, na difícil procura de claridade, se o silêncio e a solidão crescerem ao meu redor como um vasto milharal, habitado por estranho espantalho vestido de negro, com grossas lentes nos óculos que não ampliam a progressiva e asfixiante pequenez das coisas, esse tal que desistiu do ofício de espantar, sendo ele próprio o contumaz espantado, no oblíquo território do mundo, se os amigos esquecerem de me visitar nas noites de inverno, se algum pássaro soltar o canto, em maio, no galho da araucária diante da minha janela, se essas palavras servirem, ao menos, para distrair o raro leitor (?) do problema da morte e da inefável falta de sentido da vida, a luta do texto terá valido a pena.

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Foto: J. Finatto. Araucária vista da janela. Passo dos Ausentes.

Entrevista com o economista Cláudio Accurso

Jorge Adelar Finatto

No país desigual que temos, os saberes em
ciências sociais estiveram presentes em sua modelagem ou servem apenas para explicá-lo?


A pergunta de Cláudio Accurso nos dá uma ideia do percuciente caminho que percorreu na elaboração de Aportes de Desenvolvimento Econômico*, sua mais recente obra. Economista e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ex-assessor das Nações Unidas em missões na América Latina, Accurso não se limita ao domínio exemplar da técnica. Vai muito além, a bordo do substrato humanista que impregna o saber científico. Leva-nos a pensar com sentimento, provando, uma vez mais, que não existe sabedoria longe do coração. Fizemos ao ilustre professor algumas perguntas, tentando entender melhor as coisas da economia.

O que podemos esperar da economia, no Brasil e no mundo, em 2011?

No mundo, a Europa e os Estados Unidos estão em momento de lento crescimento, com desemprego ainda alto, tentando recuperar-se da crise de 2008 e encontrar novos caminhos para enfrentar o despontar de centros de grande vigor econômico como China e mesmo Índia.

No Brasil, a economia vive um bom momento com um crescimento bastante ativo, com o emprego em alta, com a inflação sob controle e com um governo pilotado por quem conhece muito bem o assunto. Isso tudo oferece uma conjuntura favorável, especialmente se continuarmos a praticar uma desconcentração de renda como nos últimos anos, que tire o Brasil da vergonhosa condição de, com exceção de dois países, ser o mais concentrado do mundo. Se seguirmos, as tensões sociais diminuem e melhora a convivência para todos. Estou otimista.

Qual a orientação que nós, cidadãos comuns e leigos em economia, podemos seguir para fazer frente às dificuldades da economia mundial?

No plano individual, a precaução é sempre prudente em termos de consumo e poupança, embora o quadro esteja favorecendo os investimentos, em que se destaca o imobiliário, diante das facilidades creditícias. É um bom momento. Nossa vigilância, contudo, se transfere do indivíduo para o cidadão, cujas responsabilidades se traduzem na vigilância por políticas convenientes, justas, efetivas, limpas, de modo a serem mantidos ambientes agradáveis, apesar das diferenças e distâncias.

Nossas decepções políticas vêm em grande parte de nossa pouca vigilância e nenhuma militância, deixando aos “outros” que façam por nós. Nossa defesa das conjunturas mundiais se dá no plano das políticas, daí nossa vigilância e questionamentos de cidadãos. Não dá para eximir-se e querer que tudo ande ao nosso gosto. Quem muda o mundo são os interesses, nem sempre os nossos.

Quem dita as regras da economia hoje no mundo?

A economia mundial tem no centro os EE.UU. como potência econômica e militar. Porém atualmente esse centro se configura compartido com a Europa, como bloco único, e com a China em rápida expansão. Mais dez anos, ela iguala o PIB (soma de todos os bens e serviços) americano. Grandes tensões surgirão dessa tripartite, porém sem saídas bélicas. As redes empresariais, antes nacionais, se internacionalizaram com a globalização, derramando e interpenetrando os mesmos interesses por todos os territórios, de modo que toda ação militar termina sendo contra si mesmo.

Hoje, só se faz investida militar onde não há empresas internacionais, porque ninguém bombardearia dependências que são suas. Guerra só em áreas não hegemônicas. Outrossim, todos os bilhões de dólares dos excedentes chineses estão sendo usados para organização de vínculos (empresas próprias, associadas ou assistidas por suas importações e exportações) nas diversas partes do mundo, de modo que todos convirjam para o mundo dos negócios comuns. A concorrência e as disputas se tornaram dialeticamente convergentes e uníssonas, confinando os confrontos ao plano das empresas, não mais das nações.

A globalização parece ser a síntese das contradições nacionais, criando uma nova tese, qual seja, a da concorrência apenas privada. As regras, assim, virão desse novo núcleo hegemônico ainda em formação, embora alguns emergentes como Índia, Rússia, talvez Coreia e Brasil, possam gravitar com alguma influência. Preparemo-nos para governos transnacionais...

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* Obra publicada pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2010, e lançada na Feira do Livro de Porto Alegre do ano passado.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

O livro na praça

Helena Jobim

Helena Jobim

Vim para Porto Alegre a convite, participar da Feira do Livro. E aqui estou, nessa terra generosa, terra de meu pai Jorge Jobim. Tornei-me filha de três cidades, e assim posso dizer que sou carioca, belo-horizontina (recebi o título com muita honra) e porto-alegrense. A Feira é uma beleza. Ocupa toda a Praça da Alfândega, onde grandes barracas brancas oferecem livros de todo o tipo. Algumas têm o teto transparente, e é muito bonito ver os jacarandás floridos enfeitarem os tetos com suas pétalas roxas.

Assim que cheguei à Feira, deparei-me com uma grande estátua do General Osório, montado a cavalo. No pedestal de pedra, uma inscrição gravada. Chamou-me muito a atenção. Tomei nota: "O dia mais feliz da minha vida seria aquele em que me dessem a notícia de que os povos civilizados comemorariam a sua confraternização queimando seus arsenais". Vem a calhar para a hora difícil que vivemos.

A Feira é uma grande festa invadindo a praça, com suas árvores antigas, gigantescas, de troncos retorcidos pelo tempo, verdadeiras esculturas. Essa paisagem, de largas sombras e bancos para descanso, sugere a leitura. O ambiente combina com reflexão e cultura. Sabiás e pardais cantam ocultos nas copas de folhagens espessas, como um pano de fundo construído de sons que nos remetem a dias felizes.

Esta é a 47ª Feira do Livro de Porto Alegre. Chegou o sol e o calor e havia tanta gente pelos largos corredores entre as barracas, que tínhamos de andar devagar, parando a cada instante para examinar os livros. Vontade de comprar tudo. Os homenageados desse evento estavam bem representados em bronze, lado a lado. Carlos Drummond de Andrade, de pé, segurando um livro como se o lesse. E bem junto dele, sentado, Mario Quintana olhava-o, absorto. Tirei retratos junto às estátuas desses dois grandes poetas, pensando em colocar depois as fotos enfeitando meu escritório.

E como foi proveitoso estar com artistas mexicanos! Escritores, roteiristas, editores. Chegavam em comitivas alegres e coloridas, representando o seu país, também homenageado este ano na Feira. Sons e imagens que nos aproximam definitivamente.

Depois de muito andar, palestrar (junto com meu amigo e poeta Jorge Finatto) e autografar "Recados da Lua", atravessei a rua e sentei-me no pequeno Café Antigo, dos anos 30, perfeitamente conservado. E nesse ambiente calmo, de frente para a praça, me dei conta de como é importante para mim o ofício de escrever.

Lá estava eu, testemunha deste importante evento, de lápis e papel na mão, registrando minhas impressões. Dentro de mim vibrava a grande festa do artista, irmanada com as pessoas mais simples que observava folheando livros de todos os tipos, de todas as cores. Poucas vezes na vida um escritor pode saborear tão de perto a avidez do leitor pelo livro, a ponto de me fazer esperançosa em prosseguir na luta com o papel em branco, na busca da sensibilidade, na entrega total aos meus leitores. E me lembro de novo de Cecília Meireles: "Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta".

Quero hoje agradecer especialmente aos e-mails de Clara e Fred. Suas palavras ajudaram-me também a acreditar na palavra escrita, como forma de melhorar o mundo.

Para se pensar:

                         A vida era por um momento.
                         Não era dada. Era emprestada.
                         Tudo é testamento.

                                   Antonio Carlos Jobim


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Helena Jobim é escritora, autora, entre outros, de Antonio Carlos Jobim, Um Homem Iluminado (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1996), Trilogia do Assombro (Editora Nova Fronteira, 1998) e Pressinto os Anjos que Me Perseguem (Editora Record, Rio de Janeiro, 2000).

Esta crônica foi escrita por Helena durante sua passagem por Porto Alegre, na Feira do Livro de 2001. Agradeço à querida escritora e amiga a autorização para publicação do texto.
  
Fotos: 1) Helena Jobim. Fonte: livro Antonio Carlos Jobim, Um Homem Iluminado. 2) Helena e o irmão Tom Jobim em 1945. Fonte: site oficial do Instituto Antonio Carlos Jobim: http://www.jobim.org/

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Caminhando na beira do rio

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto (Guaíba, o rio)


O que fazer numa tarde como essa? Azul e fresca, presente transparente do outono. A pergunta pode soar insolente a milhões de homens e mulheres que, em todo o mundo, a esta hora, estão trancados em obscuros ambientes de trabalho.

Vivemos em prisões boa parte da vida. Quando percebemos, passaram-se 30 anos sem nenhuma tarde livre de outono, sem sonhos realizados, sem perspectiva de algo melhor. A vida se resume a ganhar o pão honestamente, ser útil cidadão de bem, o que já não é pouco, mas não é tudo.

As nossas coisas interiores podem esperar, e sempre esperam. Até que um dia o coração amanhece frio. Não reconhecemos aquele rosto no fundo do espelho.

Por isso é bom ter um plano de fuga para executar numa tarde assim. Fugir pelo bordado amarelo do sol no espaço anilado.

Por um momento, esqueço o mundo diante da visão consoladora dos barcos, dos pássaros e do rio.

Fique então registrado, nos alfarrábios da eternidade, que, nesse dia de abril, no sul longínquo do Brasil, um homem parou o tempo para caminhar na beira do Guaíba, sob a concha do céu, e se sentiu vivo. Assim seja.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Postal do outono

Jorge Adelar Finatto


O que tenho de meu neste mundo, aquilo que ninguém pode tirar, o que a mim se afeiçoou através dos séculos como um peixe se apega ao rochedo que o abriga, o que trago inscrito, marca invisível, no fundo da alma, que nenhum vento, tempestade, raio, fogo ou soco pode destruir, o que tenho de meu na vida repousa, em silêncio, entre perfumados lírios no alforje da ausência, tive por breve tempo, um dia, e depois se perdeu como se perdem, em abril, as folhas do outono.

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Foto: J. Finatto. 

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Um barco atravessa a alma da cidade

Jorge Adelar Finatto


No sábado saí pelo Guaíba de barco. Esse rio é a alma de Porto Alegre. Entre a cidade e o rio, uma coleção de barcos, pequenas ilhas e crepúsculos. Poucas cidades têm um rio assim para espelhar-se, matar a sede e tomar banho. Mas o esgoto é uma página difícil que teima em não se resolver.

As gaivotas povoam a solidão, voando sobre os navios que partem no rumo do mar. São cerca de 300 quilômetros de água doce que remetem Porto Alegre ao Atlântico pela Lagoa dos Patos.


Fiquei um tempo olhando o azul do céu, sentindo o balanço das ondas, avistando o continente ao longe. Na altura da antiga chaminé, no Parque Harmonia, muita gente caminhava, corria ou andava de bicicleta pela via que margeia o rio (nos fins de semana interrompe-se ali o tráfego de veículos). Alguns biguás sobrevoavam o espelho.


A luz de começo de outono se derrama sobre a paisagem. A delicadeza das cores espalha-se no enlace de céu, vela e cais.

Tenho impressão que fico alguns anos mais moço toda vez que navego pelo Guaíba.


Os aguapés divagam solitários, soltos e vivos nas águas.

Eu sou o efêmero capitão de um barco que atravessa o cartão-postal.



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Fotos: J. Finatto

sexta-feira, 1 de abril de 2011

O último quarto de Van Gogh

Jorge Adelar Finatto
Photos and text





A sombra do quarto imita a escuridão do mundo.

A claraboia deixa passar a escassa luz do entardecer. Vincent Van Gogh tira o chapéu, as botas e se deita, os braços abertos. Toma um copo dágua, olha o teto. A velha cama emite ruídos secos a cada movimento. No chão, encostados na parede, secam os quadros pintados durante o dia.

O pintor vê imagens e cores enquanto dorme. O sonho medra no deserto. Verte luz na alma da treva. É tempo de refazer o mundo. O instante da maravilha.



A obra fez-se homem, o homem divinizou-se.

A viagem de trem de Paris para a pequena cidade de Auvers-sur-Oise dura cerca de 1h45min. Parte-se da Gare du Nord e, uma hora depois, em Valmondois, troca-se de trem até chegar a Auvers, situada no Vale do Rio Oise.

Trago no coração, amarelo, um girassol para Vincent.

Provinciana, a cidade habita a beira do rio que lhe dá nome. Embarcações com variado colorido, diferentes formas e tamanhos cumprem o destino de chegar e partir.

O Rio Oise desliza caudaloso entre as margens cobertas de vegetação.



Auvers-sur-Oise é o cenário no qual Van Gogh trabalhou e viveu nos últimos cerca de setenta dias de vida. Em 21 de maio de 1890, mudou-se para esta cidade que tem tradição de acolher pintores. Aqui ele viveu um dos melhores momentos de sua existência, até o dia em que desferiu um tiro de pistola contra o abdômen, no campo, em 27 de julho de 1890. Morreu dois dias depois, em 29 de julho, a uma e meia da manhã, aos 37 anos, ele que nascera em 30 de março de 1853, na aldeia holandesa de Groot-Zundert.

Volto a Auvers numa espécie de viagem afetiva que só o contato com a arte e seu poder encantatório explicam. Vim rever os lugares e caminhos que o gênio da pintura percorreu e retratou há mais de cem anos. Uma busca, talvez, do homem, da atmosfera que o moveu e inspirou naqueles dias distantes.

O coração dispara logo na chegada do trem, na pequenina estação, quase à margem do rio.

O relógio aqui gira em outro tempo. As casas de pedra são acolhedoras e observam o caminhante através de discretas janelas. Sobe-se da parte baixa da cidade para a alta através de vielas muito estreitas com flores da estação nos pátios. Interessante prestar atenção nos detalhes que não sofreram mudança desde aquela época.



As pequenas ruas, o casario, a natureza parecem saídos de uma pintura do artista.

A procura da expressão mais profunda e verdadeira, em Van Gogh, foi tão intensa quanto a dificuldade de comunicar-se com as pessoas. 

Os fatos que culminaram com o suicídio do pintor estão envoltos em mistério. Um professor, em Paris, comenta, informalmente, a existência da versão - nunca confirmada - de que Van Gogh teria sido morto num duelo com um homem influente da cidade, ao baterem-se por causa de uma mulher. A informação, até onde se sabe, não tem valor histórico.

Ao mudar-se para Auvers Van Gogh pretendeu afastar-se do ruído e da agitação de Paris. Veio, também, para tratar-se com o Dr. Gachet, médico do lugar que é pintor amador e tem amizade com vários pintores impressionistas. Dele Vincent faz alguns retratos. Tornam-se amigos, embora ocorram conflitos.

Em Auvers ele produziu cerca de 75 pinturas naqueles últimos dias de vida. Essa produção é impressionante, não apenas pelo número - em tão pouco tempo - como pela qualidade. Os quadros revelam uma intensa celebração da vida. O artista mostra que está no pleno domínio de sua arte. Parece finalmente ter encontrado o ambiente ideal para viver e criar. Tudo que o cerca serve de inspiração para o ofício de traduzir a vida em forma e cor.

O sentimento explode na tela. O traço forte inaugura a face do mundo.

Tal a excitação do pintor com seu trabalho que dá a impressão de que aqui experimentou os melhores dias. Um intervalo longe dos sofrimentos que o atormentaram durante toda a vida.

Van Gogh hospeda-se na pousada Auberge Ravoux, misto de pensão, restaurante e casa de comércio de vinhos. Com dois pavimentos e amplo sótão, a construção se situa no centro, na frente do prédio da prefeitura. Hoje funciona no local a Maison de Van Gogh ( http://www.maisondevangogh.fr/), onde o visitante pode conhecer o cubículo que o artista habitou, um aposento mal-iluminado e pequeno, nos fundos, sob o telhado.



Uma claraboia côa a pouca luz do dia que por ela entra, clareando o abandono.

Na Casa Van Gogh, encontram-se livros sobre o artista e reproduções de seus trabalhos a preços razoáveis. Também se pode assistir a um interessante documentário em vídeo sobre sua vida, de cerca de vinte minutos. Além disso pode-se fazer uma refeição no restaurante que permanece como era no tempo em que ele ali viveu.



O homem que libertou as cores levou uma vida pobre, em quase tudo dependente do irmão mais moço, Theodorus Van Gogh, que trabalhava no comércio de artes plásticas em Paris. Era grande o amor que os unia. Theo tinha grande admiração pela obra de Vincent. Procurava auxiliá-lo com todo empenho, o que incluía repasses constantes de dinheiro para despesas de alimentação, hospedagem, material de pintura, entre outras. As dificuldades eram imensas para Theo, que tinha mulher e filho para sustentar.

Van Gogh, que tanto amou os seres e a natureza, dos quais nunca se afastou, soube, como poucos, eternizar através de sua arte a beleza do mundo.

Os luminosos girassóis representam essa infinita procura do belo.

Ele tinha por costume dormir cedo em Auvers, por volta das 21h. Acorda em torno de 05h para trabalhar. Muitas vezes sai da pensão de madrugada, sem comer nada. Aproveita ao máximo a luz do dia para pintar.

Ele transita pelas ruas apressado, com a caixa de tintas, pincéis, cavalete e todo o material.

O velho chapéu de palha na cabeça. Aquele homem vestido modestamente não chama a atenção dos moradores, habituados a ver outros pintores que passam pela cidade em busca de paz e siêncio para criar.

Em meio à subida para a parte alta, encontramos a famosa Igreja de Auvers, retratada por Van Gogh. Como em outros lugares que pintou, a administração municipal colocou, no local, uma reprodução da imagem criada pelo artista.



A Igreja de Auvers é apenas uma das obras-primas que produziu nesse período.

Continuando a subida, encontramos, bem no alto, o amplo terreno de semeadura em que ele retratou o célebre Campo de trigo com corvos, um dos últimos trabalhos. É provável que neste mesmo lugar Van Gogh disparou o tiro contra o abdômen. A cerca de cem metros de onde o quadro foi pintado está situado o cemitério de Auvers, no qual Vincent está sepultado no humilde túmulo, no chão, coberto de heras, ao lado do túmulo do amado irmão Theo, que viria a falecer pouco tempo depois.



Van Gogh sofreu graves crises psíquicas ao longo de sua breve passagem pela Terra. Viveu na pobreza. Encontrou apoio, compreensão e carinho no irmão, com quem trocou a extensa correspondência registrada no livro Cartas a Theo.*



Dizem alguns que vendeu apenas um quadro em vida (A videira vermelha).

Em Auvers não se encontra nenhuma obra de Van Gogh. Suas pinturas alcançam muitos milhões de euros e estão espalhadas nos principais museus do mundo e em coleções particulares. A Casa Van Gogh desenvolve um grande trabalho para resgatar, ao menos, um dos quadros, que a tornará "o menor museu do mundo", segundo eles dizem.



O artista que nos revelou a maravilha não encontrou na sociedade de seu tempo o indispensável apoio para continuar vivendo e criando. Encontraria hoje?



A cadeira de madeira e palha, no silêncio do quarto sombrio, é o que restou do hóspede.

O resto é oco.

Austera solidão.

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Fotos: Jorge Finatto.
Texto publicado originalmente no blog em 30/12/09.
*Cartas a Theo. Vincent Van Gogh. Editora L&PM. Porto Alegre, 2007.