domingo, 31 de julho de 2011

Jogos Olímpicos 2016

Jorge Adelar Finatto


 O cartão-postal vai brilhar intensamente outra vez, será um grande espetáculo visual para o mundo, o Rio é mesmo deslumbrante, o povo é acolhedor, as praias são lindas. Depois, tudo se apaga e volta a ser como antes, só que pior, porque dinheiro grosso foi gasto sem critério e sem sentido, perdendo-se uma grande oportunidade.

O amigo leitor está no justo descanso do fim de semana.

Desembarcou na ilha-refúgio de dois dias quase sem fôlego. A rude lida da sobrevivência leva ao limite nossa paciência e capacidade de resistência.

Tudo que se quer, nessa hora, é estar perto das pessoas amadas. E um bom descanso, no sofá ou na velha cadeira de balanço, um livro, uma revista.

Não deve o cronista importunar esse santo repouso. Os temas tratados hão de ter alguma leveza, trazer um pouco de ar fresco.

Contudo, quero falar de um assunto que me atormenta e que gostaria de compartilhar.

Trata-se dos Jogos Olímpicos de 2016.

Penso que a sociedade brasileira, você, eu, todos nós deveríamos ter sido consultados sobre a realização dos Jogos no Rio de Janeiro. Motivo principal: a extraordinária soma de dinheiro público que será utilizada no evento. Fala-se algo em torno de R$ 30 bilhões. Muito provavelmente será bem acima disso, como costuma acontecer.

A cidade maravilhosa foi escolhida sede da Olimpíada em Copenhague, na Dinamarca, no dia 02 de outubro de 2009, vencendo as concorrentes Madri, Tóquio e Chicago. Mas terá sido mesmo uma "vitória" ou, antes, um alívio para as cidades preteridas, porque não terão de gastar essa babilônia em meio a uma das piores crises econômicas que o mundo já conheceu?

sexta-feira, 29 de julho de 2011

A solidão da palavra: partilha

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Guaíba e seus barcos.


A solidão da palavra é partilha.

Escrever é particular e solitário como viver. É um modo de comunicação difícil, isolado, clandestino.

Não tenho hora para escrever, mas gosto da noite. Escrevo em qualquer lugar e não só no escritório. Posso escrever em avião, sala de espera, quarto de hotel, fila, ônibus, trem, banco de praça.

Também gosto de escrever nos cafés. É um estar sozinho acompanhado. Não importam as conversas, os ruídos do entorno. Escrevo à mão, em pequenos cadernos, em páginas de livros, folhas soltas, guardanapos.

Se fosse músico ou pintor, acho que não escreveria. A música e a pintura são linguagens universais. Não precisam tradução, intérpretes, obras de consulta, dicionários. Basta ouvir, olhar, sentir. É o ideal da arte. Não é o caso do texto, que se limita àqueles que sabem a língua.

Escrever, escrever de verdade, com compromisso e sentimento, é ofício duro. Salvo raras exceções, não é possível viver de literatura. É necessário ter outra profissão para sobreviver. O tempo para escrever e ler é pequeno.

Uma ocasião alguém me perguntou como encarava o fato de escrever há tanto tempo, ter alguns livros publicados, e permanecer um autor desconhecido. Eu disse que via com naturalidade.

Olhando para os que vieram antes, encontramos cerca de quatro mil anos de passado literário. O livro de Gênesis, por exemplo, foi concluído por Moisés em 1513, antes de Cristo. Se tomarmos apenas os escritores que surgiram a partir da Idade Média, encontraremos centenas e centenas de bons autores esperando leitura.

O tempo do leitor é raro.

O mundo dos livros também é regido por leis de mercado. Certos escritores têm presença constante nos meios de comunicação, nos catálogos das editoras e nas estantes de livrarias, por diversas razões, principalmente comerciais. A qualidade literária nem sempre é o critério mais observado nesse processo. Então, ser lido, mesmo por poucas pessoas, sendo escritor fora do mercado, é realmente uma coisa muito boa.

A solidão é nosso lugar no mundo. Cada um vive na sua ilha da maneira como pode. E palavras são barcos que abrem caminho entre as ilhas. 
 
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Texto publicado em 19 de maio, 2010. Após revisão, é agora republicado.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

No tempo das camélias

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


A camélia é uma flor sem vaidade (sim, existem flores desprovidas de vaidade). Cresce no quintal da mais humilde casa até o jardim do mais rico palácio.

Nesse tempo de sol entre nuvens, a camélia surge com sua face iluminada. Se há algo que salva os dias sombrios do inverno, é ela.

A camélia é criadora de beleza. Certas combinações difíceis de imaginar, como misturar o verde escuro das folhas do arbusto com o vermelho carregado da flor, são bela invenção cameliana. 

Porto Alegre é uma cidade com muitas praças. 

Aqui no meu bairro há várias. Numa delas, camélias brancas e vermelhas espalham-se entre os bancos, que nessa época passam quase sem gente. A suave presença dessas flores tece momentos de viva emoção.

Na tarde de hoje, vi dois pés de camélia cor-de-rosa, caprichosamente plantados na calçada. Pura visão.

E pra não dizer que neste blogue só se falam amenidades, um pouco de realidade.

A crueldade não tira férias. Os atentados, com muitos mortos, na Noruega, mostram apenas que a europa evoluída, humana e racional é, em certa medida, uma imagem na água, uma ilusão romântica.

O fundamentalismo está muito forte por lá, enraizado em movimentos como o neonazismo, os nacionalismos extremados, a criminalidade organizada, o racismo, a xenofobia, o desrespeito ao diferente, e em tantos outros processos de violência e exclusão (até mesmo em relação a países periféricos do continente).

A maior parte dos europeus, contudo, não aceita viver neste mar de sangue e intolerância. É com esses que precisamos contar, na Europa e em todos os lugares, para dar a volta por cima.

Sobre a morte de Amy Winehouse não vou falar nada. Seria levar a tristeza longe demais.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Kabuki dos passos perdidos

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
O tempo que ele passou escondido, enclausurado no quarto escuro de si mesmo, encurvado no canto da parede, a cabeça nos joelhos, foi um tempo perdido.

Passos perdidos são pétalas secas entre as páginas de um velho livro. Alguém devia ter vindo resgatá-lo. Mas não, estavam todos ocupados construindo seus próprios desertos.

Um dia de desespero ele abriu a claraboia. Foi o primeiro gesto para sair do ermo. Depois abriu a janela. Começou a olhar a rua e as pessoas que passavam. Um outro dia abriu uma fresta da porta. Como fazia um dia solar e a brisa corria na copa das árvores, colocou uma cadeira na calçada e ali ficou.

Primeiro conversou com as crianças. Depois com os grandes. Passou a fazer isso nas tardes de sol daquele inverno. Os vizinhos o cumprimentavam, tornou-se conhecido como o moço solitário da casa da esquina.

Talvez por isso todos sentiram tanto a sua falta e choraram no dia em que, por malícia, ele não abriu a porta e nem botou a cadeira na calçada. Uma espécie de felicidade sentiu o moço solitário da casa da esquina quando a água salgada das lágrimas verteu cor de prata por baixo da porta.

Então ele encheu quatro frascos de lágrimas. Um guardou entre os livros na estante. Os outros enviou pelo correio. Um à ex-mulher, outro a sua mãe na cidadezinha do interior e o terceiro ao melhor amigo, que foi morar no Japão.

sábado, 23 de julho de 2011

Naomi Kumamoto

Jorge Adelar Finatto


A música instrumental brasileira é muita rica. Os nossos virtuoses são, em geral, inspirados e criativos. O chorinho é um gênero de música essencialmente brasileiro, tão nosso como o samba. Como tudo que é bom e verdadeiro, tornou-se universal. 

Do choro já se disse que se trata da música erudita do Brasil, pelo refinamento das construções melódicas e apuro na execução. Ao mesmo tempo, tem uma certa leveza, uma alegria de ser e de estar no mundo que cativam o ouvinte.

Estava garimpando algo novo no setor de discos instrumentais quando avistei o cd Naomi vai pro Rio. Resolvi escutar um pouco. Fiquei muito feliz com a escolha (escolher discos, como livros, é um tormento, pois cada escolha implica, também, uma perda, como em todo o resto nesta vida breve).

Impossível traduzir em palavras a música. Não sou especialista, mas um amador curioso com algumas horas de voo. O disco de Naomi Kumamoto merece ser ouvido com a calma. Com um pequeno detalhe: Naomi é japonesa, nascida em Kobe, formada em flauta na Universidade de Pedagogia de Osaka, tendo trabalhado durante anos em orquestras sinfônicas do seu país. 

Um dia Naomi descobriu o choro, num disco de Altamiro Carrilho, e apaixonou-se. Durante cinco anos estudou o gênero sozinha, ouvindo discos. Tornou-se ela própria compositora de choro. A história culminou com sua mudança para o Rio de Janeiro, onde mora desde 2004. Dedica-se a tocar seu instrumento, a flauta, compor e ensinar música, desenvolvendo parcerias com importantes músicos brasileiros. Também colabora com instituições do nosso país, como a Escola Portátil de Música, na qual leciona.


Neste disco fica claro o acerto de Naomi em vir para o mundo do choro, revelando-se compositora refinada. Cria com muito talento, muita delicadeza e emoção. O cd tem 16 músicas, sendo 13 de autoria de Naomi. Melodias belas, na tradição de Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Chiquinha Gonzaga e Heitor Villa-Lobos, entre outros.

A música dispensa fronteiras e nacionalismos. Seu único território e pátria é o coração das pessoas. Vale a pena testemunhar o encontro do choro, nascido no Brasil, com a sensibilidade e a técnica desta artista da Terra do Sol Nascente. Todos saímos ganhando com o resultado dessa união.

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Fotos: 1) Naomi Kumamoto e 2) cd da artista. Fonte: naomikumamoto.blogspot.com

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Contra as marés de melancolia

Jorge Adelar Finatto

ilustração: Clara Finatto


A chuva começou de madrugada e não parou mais. Da minha janela vi um barquinho de papel ancorado junto à calçada. Parecia inteiro e feliz. Movimentava-se de um lado para o outro ao sabor do vento.

Como forma de salvar esse dia que mais parecia um lamento, fui até o Sonhador - assim o batizei - e nele embarquei com o cuidado de não afundá-lo.

Com a ponta do guarda-chuva no chão, empurrei o barquinho para a correnteza. Sentado na minúscula embarcação, girei o leme para a esquerda. Lá fomos nós rua afora.

A cidade vista do barco é muito mais bonita.

As janelas surgem entre os postes e galhos das árvores, com suas luzes brilhando através das cortinas, formando um delicado mosaico colorido.

As luminárias da rua acendem.

Algumas pessoas param sob os guarda-chuvas e observam a nossa passagem. Outras andam de cabeça baixa e tão depressa que nada veem. De vez em quando um carro passa muito perto e joga água pra dentro do Sonhador. Retiro o excesso do fundo com uma caneca.

Navegante de pequeno curso, acostumado a enfrentar as marés de melancolia do inverno, não desanimo diante do mau tempo.

Invento um barco e saio a navegar.

A navegação em barco de papel pelas ruas da cidade, nos dias de chuva, é o melhor remédio contra a obscuridade e o tédio.

terça-feira, 19 de julho de 2011

A busca, nos livros, do ora-veja da vida

Jorge Adelar Finatto



photo: j.finatto

Na tarde chuvosa e fria, entro na livraria. A procura persistente, e vã talvez, de encontrar, nos livros, o ora-veja que falta na vida. Essa busca renova-se a cada nova obra que levamos para casa.

Escritores e poetas são seres que habitam a nossa sensibilidade. Fazem parte do que somos e do que queremos ser. Ajudam-nos a caminhar na estrada em meio a tanta treva.

Costumo levar um livro na bagagem, para diminuir o banzo e a solidão das viagens. O livro traz, em si, um pouco da casa que ficou distante. O fato de sabê-lo por perto, ao alcance da mão, no quarto de hotel, proporciona o aconchego das coisas íntimas.

Hoje os meus livros estão mais sossegados nas estantes. Mas nem sempre foi assim. Eu, que detesto mudanças de endereço, perdi a conta de quantas vezes tive de mudar de casa neste mundo de Deus.

Nunca me acostumei a esses movimentos que trocam tudo de lugar. Um sofrimento sair da casa, da rua, da cidade. No meio do caos emocional que isso traz, os livros nos acompanham, passando um sentimento de permanência.

Os livros são nossos confidentes e amigos espirituais.

domingo, 17 de julho de 2011

O pássaro em setembro

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
Esses dias invernais de austeras sombras.  Podia começar assim a crônica de hoje. Mas são leves e têm seiva estas breves linhas.

A nesga de claridade aparece entre as pesadas nuvens. Através da janela, apenas a silhueta das árvores e das montanhas se deixa perceber. A neblina estende sua fina capa no espaço.

Há dias veio a neve, espalhou o branco vestido de tule nos telhados de Passo dos Ausentes.

Precisamos atravessar longos dias de frio e exílio. Estamos à espera de que o pássaro retorne com a folha de oliveira no bico, quando setembro vier.

Por enquanto, cada um de nós sobrevive com os resíduos de uma antiga primavera.
 

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Conversa na estação

Jorge Adelar Finatto

Photo: J.Finatto

Sou como os trilhos cobertos de hera da estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. Vive em mim o sentimento das chegadas e partidas dos trens, o vai-vem humano, o sentido da transitoriedade das coisas. Digo sempre às magnólias do meu jardim: nunca esqueçam de mim. Me chamo Juan Niebla, músico de profissão. Meu instrumento é o bandoneón. Tenho 89 anos, sou cego desde os 16.

As sombras espalham suas sedas sobre mim. O pior cego, digo eu, é o que não consegue mais sonhar. Realidade sobeja desfaz a alma, empareda o coração.

À noite todas as coisas se dispersam. É quando o peso de existir se concentra em tons de solidão. Sozinho no escuro, altas horas, recordo minha mãe e o menino que eu fui. Eu mesmo acendo o fogo no fogão a lenha e preparo o café, que bebo fumegante com os biscoitos comprados na padaria de Mocita de La Vega.

Ligo o rádio elétrico na mesa da cozinha e fico escutando estações do Uruguai e Argentina. Nesse momento toca o Noturno nº 2 de Chopin, que eu amo. Nesses enquantos, convoco seres que povoam o território do oblívio: pais, irmãos, primos, primas, tios, tias, amigos, certa mulher, um perfume, pessoas que não estão mais aqui, mas é como se estivessem. Não quero deslembrar. Sou formado dessas partículas.

Muitas vozes falam através de mim e do bandoneón, a voz dos ausentes. Sim.

Habito o interior de uma pintura, dentro de um lago profundo e silencioso. Ali me sento e lembro. E sonho também. E rezo nesses confins.


Vivo tão ausente que, às vezes, passo por mim e não me reconheço. Quando estou há muitos dias desaparecido, saio a me procurar, saber o que houve, por onde andei, o que fiz, com quem falei. As ausências.

Amanhece. Estou na velha estação de trem, sentado no banco de madeira, de peroba rósea, com o bandoneón ao colo. Espero o próximo comboio. Dizem que nunca mais virá. Eu tenho fé que sim, sim, um dia chegará, e quando isto acontecer estarei aqui para receber os passageiros com música. Sou o músico da estação, fui contratado por concurso público em 1940, quando tinha 15 anos. Trabalho desde então na estação do trem de ferro. Atuo também na Banda Municipal e na Orquestra de Câmara de Passo dos Ausentes. Deus e os amigos sabem.

Photo: J.Finatto

Sou cego e minha luz vem da música. A música é a minha claridade. O ambiente à minha volta começou a perder o foco. Um dia as formas e os contornos do mundo me abandonaram. Passei a ver borrões de luz. Até que veio a escuridão completa.

Trago recordações felizes de quando enxergava. A nossa casa entre as árvores na margem do Lago da Ausência. A face da minha mãe me olhando e rindo enquanto estendia roupa no varal.

Os pássaros e os peixes, mil cores. Lembro com clareza o azul e o branco.

O frio nesta época é excessivo. Recolho-me cedo da tarde ao Café dos Ausentes, que fica na estação. Passo horas conversando com o dono do estabelecimento, Nefelindo Acquaviva. Danado inventor de aparelhos voadores, seguidamente se espatifa no chão com seus inventos. É um milagre que ainda esteja vivo. Coisas voam sem parar na cabeça do meu amigo.

Ultimamente, Nefelindo anda mais contemplativo que de costume. Eu conheço esse silêncio. Nesse estado de espírito, limita-se a navegar pelos céus de Passo dos Ausentes no seu dirigível que pode carregar até três pessoas. Eu sou um dos costumeiros e raros passageiros.

Ninguém quer pôr a vida em risco numa geringonça voadora qualquer. Eu não ligo. Embarco no pássaro-invenção do amigo. Gosto de sentir o vento batendo na cara quando sobrevoamos o Vale do Olhar em direção ao Contraforte dos Capuchinhos. Um dia ainda vamos atravessar o oceano, ele promete. Eu acredito.

Converso muito, também, com o fantasma de Heitor dos Crepúsculos, suicida arrependido que perambula pela ruas e praças de Passo dos Ausentes. Um bom sujeito, uma das tantas almas perdidas que vagam pelos Campos de Cima do Esquecimento.

No cair da noite, volto pra casa com meu capote de lã azul-marinho, meu chapéu de aba, os óculo escuros, o bandoneón que levo nas costas como mochila e a bengala de bambu cor de açúcar queimado, construída especialmente para mim pelo honorável Akira Munefusa, sensível artista e poeta que vive numa cabana na beira do Lago da Ausência.

Anoiteço outra vez.

Vou tomar café com meus fantasmas.

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Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Seu instrumento é o bandoneón. Além do posto na estação de trem abandonada, toca na Banda Municipal e na Orquestra de Câmara de Passo dos Ausentes.
Fotos: J.Finatto

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Elegia 1975

Jorge Adelar Finatto

Photo: J.Finatto


O vento não traz notícias de longe
todos foram dormir depois do vinho
só nós permanecemos incomunicáveis
debaixo das estrelas e do frio

um que outro fantasma passa
fugitivo na calçada
não perguntamos pela vida
passada ou futura
habitamos cada momento
com olhos de prisioneiros violentados

escutamos o silêncio que vem do rio
a fome imensa de liberdade
que nos anima e nos faz fortes
na tempestade que nos enlaça
nos joga contra a parede

nosso rosto parece ao de toda gente
mas trazemos segredos inviolados
noites de lobos feridos

olhamos a cidade morta
nenhum anjo nos acalanta
estamos vivos
e nunca doeu tanto

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Do livro Claridade, coedição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.


terça-feira, 12 de julho de 2011

Secreta música

Jorge Adelar Finatto


Photo: J.Finatto


Escrever o poema
é sempre claridade
na caverna

mão estendida
a quem
não conheço

teço a canção
antes do grande
silêncio

em busca da ilha do sol
onde habitam
antiquíssimas magnólias

tudo é dádiva
e esquecimento

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Do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

A parte da orquídea

Jorge Adelar Finatto



A parte da beleza e da justiça que não se distribui, a parte do calor e da ternura que não se dá e nem se recebe, a parte dos sonhos extraviados na travessia, a parte do amor não vivido, essa é a parte da orquídea.

O que ficará desse tempo seco e sem ar?

Levo no bornal o calepino, os lápis de cor, as anotações estelares, o telescópio, o lampião, o impossível mapa e a máquina de fotografia. Vou em busca da orquídea.


Encho os olhos e o coração com suas cores, formas, raro aroma. No limite do penhasco, ou no velho tronco da beira do córrego, sob a sombra da nuvem ou da copa, a orquídea respira e ilumina.

Orquídea, sim, orquídeas. 

O resto não importa.

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Photos: J.Finatto
Texto publicado em 20 de setembro, 2010.

domingo, 10 de julho de 2011

Festival de Cinema de Gramado 2011. Com licença, realidade: chegou a hora da ilusão (III)

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Como dizer não a um pedido de Alberta de Montecalvino? Eu não consigo.  O meu amor pela grande dama de Passo dos Ausentes é desinteressado e nada espera. Por isso, talvez, me faz tão bem (esse sentimento que o puro-egoísta não consegue entender, nem jamais conhecerá).

Pediu-me Alberta, em resumo, para fazer a cobertura do Festival de Cinema de Gramado para O Fazedor de Auroras, a exemplo do que fiz no ano passado. O concurso começa em princípios de agosto. É o mais antigo do Brasil, creio, com exibição de filmes nacionais e estrangeiros.

Amanhã partirei para a estonteante serra gaúcha, na minha vetusta Yamaha 250 (1973), que nunca até hoje negou fogo e é objeto da cobiça de colecionadores. Reservei já o quarto de hotel (a triste sina do andarilho outra vez), com vista para o Vale do Quilombo e para os contrafortes de basalto cobertos de pinheiros que tocam o céu com a ponta dos dedos verdes. Vou com antecedência para entrar no clima desde logo.

O casaco de couro, as botas, a velha manta, arrumo a breve bagagem. Levarei junto, para ler nas altas e frias madrugadas, Onetti, Cortázar, Luis da Câmara Cascudo e o Conde de Lautréamont (Isidore Ducasse). 

Quem me leu no blogue, durante o festival do ano passado, sabe do meu amor imemorial por Fellini e Kurosawa e conhece, também, o quanto arde em mim a paixão pelo cinema que se faz na Argentina nos últimos vinte anos.

Estou, enfim, de partida, fechando meu modesto solar nas cercanias da Praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre, para mais esta viagem cinematográfica. Em alguns dias virão os primeiros textos. Aceito sugestões de pauta, ideias, opiniões e, claro, a indicação de boas safras viníferas. Aproveitarei a temporada serrana para degustar a caixa de charutos cubanos que Alberta me mandou de presente (escondido do médico, naturalmente, que me proibiu qualquer contato com o fumo e a bebida). Mas, como disse certa vez o querido poeta uruguaio Mario Benedetti, "só quando transgrido alguma ordem o futuro se torna respirável".

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Foto: J.Finatto
Textos 1 e 2 em agosto, 2010.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

A cidade escureceu

Jorge Adelar Finatto



A cidade escureceu
não há vaga no emprego
não há vaga na moradia
na condução

na alegria não há vaga

o amor esfriou
a solidão é extrema
o medo é horrível

afora isso
a vida anda uma beleza


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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1990.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Alberta de Montecalvino

Jorge Adelar Finatto

Photo: J.Finatto


Veneza é o sonho de toda Colombina.

Eu passei a vida em Passo dos Ausentes. O que é esse lugar? Um território perdido no vento. A neblina, o frio e a chuva povoam a cidade o ano inteiro. Habito com amargura e ironia esta estação de fim de mundo.

Casei-me aos 16 anos com Dom Alberto de Montecalvino, o Solitário da Biblioteca. Na época ele contava 69 anos. Desde aquele quando, passei a viver neste austero castelo de basalto e vidro. Hoje tenho 70 anos, sou deveras viúva e, às vezes, me perco nos salões da memória. As intermitências.

Daqui de cima, na larga janela da biblioteca, avisto o Contraforte dos Capuchinhos. Gosto muito dessa visão porque por ali é que se vai embora de Passo dos Ausentes. Mas nunca passei naquela estrada. Dom Alberto me pediu que jamais o fizesse. Os medos. Atendi o bom homem. Passaram-se os anos.

O muito amado do meu coração é Pedrolino. Dom Alberto sempre soube, suportou, era como um pai pra mim. O meigo Pedrolino. Amoroso e fiel. Seu amor é casto e resignado. Tem as delicadezas.

Arlequim é o senhor das labaredas. Inconstante e fútil. Nunca vem ao meu coração. Tem meu corpo, jamais minha alma. Com ele muito me rio, é engraçado, leviano. Incapaz de amar alguém além de si mesmo. Não tem sentimento.

O corpo tem fome e a fome seus apetites. Arlequim é malicioso, egoísta, por isso sabe agradar quando quer. Pedrolino é terno, quase um menino, vai direto ao assunto. Não conhece as sutilezas.

Quem pudera reunir, na mesma pessoa, as gratas virtudes. O mundo humano foi bordado imperfeito, eu sei. Tal felicidade ninguém merece.

Ambos os dois, Arlequim, o devasso, e Pedrolino, o amado, são a minha devoção. Cada qual no seu momento. Sou a Senhora da Biblioteca. Viúva mui constante em negras vestes de luto. Os respeitos a Dom Alberto. Tenho a minha idade. Cultivo as devoções, no discreto.

Não me julguem tão depressa. Poupem-me da vossa moral de almanaque.

De metafísica e solidão o cemitério está cheio. Conheço os reveses. Eu vivo os enquantos.

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Texto publicado em 8 de novembro, 2010.
Foto: J.Finatto

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Visitante

Jorge Adelar Finatto

Photo: J.Finatto


Quando o frio chega
eu saio com o bolso
cheio de pássaros
e vou até aí te visitar

tempero o inverno
no teu calor de mulher
de manhã parto feliz
com tua luz nas entranhas


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Do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

A fala do Arlequim

Jorge Adelar Finatto



Querer eu quero, e o querer é tudo. Cumpro os regulamentos do invisível. De silêncio em silêncio, as difíceis passagens. Eu sinto no calado. Os comedimentos. A pessoa sonhada tem certos jeitos. De não se deixar ver, nem tocar, nem sentir, nem sonhar. Os caprichos do ser amado.

As magnólias me doem no inverno de tão belas. Eu lírico. Os tormentos do amador. A musa é do tipo nem aí. Nem sabe de mim.

Arlequim ao relento eu sou. Os rigores da lira. Vivo no austero. Sinto no meu segredo. Amador. Ela não me vê. Eu a vejo. A musa é só o motivo. Eu sou o seu adamastor.

O que dorme no banco da praça. O que mora dentro do casaco e da manta. O do chapéu ridículo. O que fala algaravias no café. O que não suporta gritos. O que senta no cais a olhar as faluas.

Caminho nos meus penhascos. Ruínas são coisas que habitam no íntimo da pessoa. O que se fala e o outro não entende. Um diz aurora, a musa entende anoitecer. As palavras, tonterias.

Sentimento é o ora-veja da vida. Cultivo distância, alimento paciência.

O ser sonhado tem certos olhares. A musa vive num jardim secreto que eu mesmo inventei. A trança de linho desce pelo muro escarpado do castelo. Eu romântico. A vida gira nos esconsos. Os trapos coloridos do meu coração dançam no vento. Amador, amador.

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Foto: J. Finatto. Cena veneziana.

sábado, 2 de julho de 2011

A arte de ser juiz

Jorge Adelar Finatto

Ser um bom juiz resulta de um tipo de sabedoria que não se aprende somente em livros técnicos. Nem decorre de uma progressiva conquista de graus acadêmicos. É algo maior e mais profundo.

O juiz que fará bem a seus semelhantes e trabalhará pela dignidade da vida, ao contrário de complicar e piorar as coisas, será aquele capaz de ouvir e respeitar as pessoas nas suas intransferíveis circunstâncias.

A justiça começa nas relações mais simples do dia a dia, em casa, na rua, no ambiente de trabalho, em comportamentos éticos que são, na aparência, bastante prosaicos, mas que acabam construindo todo o resto.

Amar as pessoas e a justiça é a condição primeira para ser juiz.

Não se ingressa na magistratura pensando no status da profissão, no valor do subsídio, nas garantias que cercam o cargo - que visam a proteger a sociedade e não a pessoa do juiz. Esses atrativos são insuficientes para manter alguém que não é do ramo na função. Dedicação, capacidade de renúncia, entusiasmo, reflexão e estudo permanentes são algumas das exigências.

A magistratura é a típica atividade que se destina a mulheres e homens com vocação, que buscam no ideal de bem servir a sua realização.

Pelo menos três pilares são fundamentais na formação do juiz: ética, humanismo e técnica.

Quando é que alguém se torna juiz? Muitos acham que isso ocorre quando o candidato é aprovado no extenuante concurso público, é nomeado e toma posse no cargo. Mas não é elementar assim.

A pessoa torna-se magistrado muito tempo antes do concurso. O que realmente define quem se tornará juiz é a essência e a atitude de cada um diante da existência. A luta por uma vida mais justa e solidária está na alma do julgador. Existe uma imposição de ordem interna que o leva a decidir-se pela profissão, ainda que isto não esteja muito claro na adolescência e mesmo no início da vida adulta.

A gente se prepara para ser juiz uma vida inteira, pois todo dia é dia de viver e aprender.

Coisas como agressividade, excesso de vaidade, cinismo, indiferença e fanfarronice não combinam com a toga.

Um temperamento humilde, diferente de subserviente ou arrogante, disposto a respeitar, mais do que tolerar, as diferentes visões de mundo, é sempre muito importante. Ninguém é dono do conhecimento e da verdade.

Não existe modelo pronto de juiz. O magistrado terá de construir o seu. Por outro lado, não faltam exemplos de pessoas que dignificam o ofício.

Pensar de modo mais criativo e humanista o ingresso na magistratura, e a própria construção do Poder Judiciário brasileiro, é o desafio que temos em tempos tão difíceis.

A dura realidade exige magistrados mais participantes e comprometidos com o bem-estar da sociedade. Cada vez mais o Judiciário é chamado a decidir sobre situações que afetam a vida de todos. As dores e os dramas das pessoas chegam aos juízes a toda hora em todos os dias do ano.

A busca de uma existência mais feliz e harmônica é a razão de ser da atividade jurisdicional.

O que se pede ao juiz não é que seja um super-herói, mas que decida como um ser humano sensível, e saiba olhar com os olhos do coração, com a mesma empatia com que todos – juízes e não juízes - esperamos ser tratados nas horas difíceis.

Empatia, a sua dor no meu coração.

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sexta-feira, 1 de julho de 2011

A fala de Pedrolino

Jorge Adelar Finatto


Pertenço à ordem dos amorosos sem camélia. Os que amaram e se pensaram amados sem o ser. Os quase. Os que saíram cedo da festa.

A dama. Meu coração perdido no infinito tabuleiro. O mundo é lugar de barbaridades. Dor, dores.

Chamava-se Alberta, Alberta de Montecalvino. Pertencia à nobre estirpe dos Albertos, de Passo dos Ausentes. Foi quando a vida aconteceu.

O sol brilhou entre as nuvens. Iluminou a escuridão da vida minha. O que eu fui.

Estava na janela da mansarda, como sempre, olhando a vida passar. Então ela atravessou a rua. Trazia a sombrinha vermelha. Olhou pra mim e sorriu. Rasgou minha solidão.

Bailei no ar como folha de plátano no outono, lentamente fui cair a seus pés. Desci correndo, pulando os degraus da escada. Segui o inefável perfume. Enfim, alcancei a dama.

Perguntei se podia fazê-la feliz. Sim.

As iluminações. Passamos a frequentar a Praça da Ausência, nas tardes amarelas daquele outono. Um dia peguei-lhe na mão. Meu coração cavalo louco. Não dormi durante três noites.

Alberta meu sentimento. Camafeu cravado na minha alma. Ela me deu o lencinho branco perfumado, a letra A bordada em lilás. Guardei-o num lugar secreto, bem no fundo de mim.

Aqueles eram dias de ora-veja.

A dama, o tabuleiro, eu nunca aprendi a jogar. Não canto outros amores, que não tive, e, se os tivesse, silenciaria.

Então Arlequim apareceu. Os ódios pularam dentro de mim. Arlequim e seus guizos, seus versos de algibeira, sua palavra sem valia, seu alaúde. Arlequim disse coisas, deitou falas, expandiu-se em canções. Antes calasse. Bazófias.

Arlequim se espalha no mundo. Faz ares. Blasona. Explorador de musas, ladrão de amores. Arrebatou o coração de Alberta, os suspiros, até o corpo de violino que eu nunca toquei.

Eu calado sonhador do fim do mundo. Os devaneios da alma. Voltei só pra mansarda. Nem acreditei.

Quem me visse, a face esculpida da dor. Veio o inverno. Invernos.

O vero solitário da rua triste. O que olha a vida da janela. O que foi quase feliz.

O sem camélia.

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Photo: J.Finatto
Do livro Calado observador do fim do mundo. Editora Vésper, 2010, Passo dos Ausentes.
Outros detalhes sobre o drama de Pedrolino em A fala do Arlequim, post de 30/10/10, e Alberta de Montecalvino, de 8/11/10.