sábado, 4 de setembro de 2010

Notícia de setembro

Jorge Adelar Finatto


A fileira infinita dos postes é uma orquestra de cordas que  toca a música do vento. As últimas tardes do inverno silenciam. Setembro inventa, na fábrica de fazer manhãs, finas cores para tecer dias mais claros. O sol aparece mais cedo entre as frestas da janela. Sinto no ar os primeiros perfumes. Bem-vindo esse tempo, com seu suprimento de pássaros, árvores, flores. Bem-vinda a beleza  que se mostra de graça, sem cobrar ingresso nem direitos autorais. Caminho na calçada e é como atravessar um túnel de luz que nos retira da câmara escura. Não importa o que já sofremos, os tombos que caímos, os que ainda vamos cair.


Setembro chegou. A esperança é nosso sol interior, venham pois as esperanças. Venham os sonhos que nos ajudarão a construir as necessárias mudanças. E venham os amigos, novos, antigos, em luminosa farândola, andando pela setembrina estrada.

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Fotos: J. Finatto 

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

86 anos

José Saramago


Dizem-me que as entrevistas valeram a pena. Eu, como de costume, duvido, talvez porque já esteja cansado de me ouvir. O que para outros ainda lhes poderá parecer novidade, tornou-se para mim, com o decorrer do tempo, em caldo requentado. Ou pior, amarga-me a boca a certeza de que umas quantas coisas sensatas que tenha dito durante a vida não terão, no fim de contas, nenhuma importância. E por que haveriam de tê-la? Que significado terá o zumbido das abelhas no interior da colmeia? Serve-lhes para se comunicarem umas com as outras? Ou é um simples efeito da natureza, a mera consequência de estar vivo, sem prévia consciência nem intenção, como uma macieira dá maçãs sem ter que preocupar-se se alguém virá ou não comê-las? E nós? Falamos pela mesma razão que transpiramos? Apenas porque sim? O suor evapora-se, lava-se, desaparece, mais tarde ou mais cedo chegará às nuvens. E as palavras? Aonde vão? Quantas permanecem? Por quanto tempo? E, finalmente, para quê? São perguntas ociosas, bem o sei, próprias de quem cumpre 86 anos. Ou talvez não tão ociosas assim se penso que meu avô Jerónimo, nas suas últimas horas, se foi despedir das árvores que havia plantado, abraçando-as e chorando porque sabia que não voltaria a vê-las. A lição é boa. Abraço-me pois às palavras que escrevi, desejo-lhes longa vida e recomeço a escrita no ponto em que tinha parado. Não há outra resposta.

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Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Postado originalmente em 16 de novembro, 2008.
A grafia é a de Portugal.
Foto de José Saramago (1922 - 2010) : Acervo da FJS

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Bernardo, eremita

Jorge Adelar Finatto


Bernardo, eremita, foi morar no interior do búzio faz muito tempo. Conversa com os peixes. Caminha no jardim das anêmonas.  O búzio onde vive fica na flor dágua, é uma espécie de ilha, tem vista ampla, mas é pouco poroso e, de tão velho, guarda ainda as impressões digitais do Criador.

As gaivotas bailam no ar azul da manhã, nesses começos de setembro. De boné branco, astrolábio e telescópio, Bernardo descortina os quatro horizontes. Faz silêncio na ilha. Só se ouvem as ondas. O vento austral estufa a camisa, espalha os brancos cabelos.

Bernardo sai pouco a navegar no pequeno barco de madeira. Só ele e os bichos vivem ali. Costuma remar de vez em quando em volta do búzio, margeando as palmeiras e falésias. Faz parte do seu cotidiano conversar consigo mesmo. Estranho, tem dias que resolve dizer a si o que pensa  de certas coisas e acaba ouvindo o que não quer.

Longe da ilha tem um farol pintado de branco e vermelho.  Nunca foi até lá, mas admira a persistente luta do faroleiro contra a escuridão. Bernardo queria ter essa força também.

Solitário, pensa: quem sabe um dia descubro alguém pra partilhar a vida?

As gaivotas sobrevoam a ilha. Às vezes, ele sonha viajar até o continente. Talvez saindo da concha encontrará a moça do cabelo preto escorrido e do vestido floreado. Mas já se passaram vinte e cinco anos.  Em que coral, em que ilha distante viverá a moça do vestido floreado?

A maré sobe, os peixes nadam em festa à flor do arrecife. Bernardo recolhe os instrumentos e retira-se com o boné branco para o interior da côncava morada. A música primitiva do vento sopra nas trompas do búzio.

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Foto: J. Finatto

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Os sapatos da primavera

Jorge Adelar Finatto




Da minha janela eu vejo a rua. A rua é um pedaço do mundo. É só uma rua entre tantas.

O mundo é um rio largo e fundo. O tempo das folhas secas cessou. A claridade de setembro invade a sombra.

Escuto na calçada o som de passos que vêm de muito longe. Mas não há ninguém lá fora nessa hora erma. O vento sacode as folhas nas árvores.

A carroça cheia de flores dobra a esquina, para no meio da quadra, debaixo do poste de luz. Na manhã que se aproxima, as pessoas encontrarão a carga suave e perfumada.

Enquanto escrevo, coisas luminosas acontecem em silêncio.  Da janela observo esse ponto pequeno e obscuro do universo, que chamo minha rua, onde todos agora dormem. Mãos desfalecidas nada podem segurar.

Nenhum grito assola a hora nua. O sonho levanta do escuro. 

Os sapatos da primavera cantam na calçada.

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Foto: J. Finatto

sábado, 28 de agosto de 2010

Um doce olhar

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Somos todos sobreviventes em um mundo que despenca ao nosso redor. Só há uma permanência em nossas vidas: a ausência.

Existe algo além de sexo barato, violência gratuita (doentia) e desprezo pelo humano no ar. Ao contrário do que pensa  uma parte dos realizadores de filmes, séries e novelas, pode haver mais do que isso. Sugerem eles que produção que atrai público é  aquela que  beira ou cai na baixaria. Não é verdade. As pessoas, em geral, gostam do que é bem feito, do que fala ao coração e ao pensamento.

O filme turco Bal (Um doce olhar, 2010), dirigido por Semih Kaplanoglu, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim deste ano, é obra simples e de grande qualidade. Nunca é demais lembrar que, na arte, o simples é o mais difícil de fazer. Muito mais fácil é ser pretensioso e ralo.

O título original, Bal, significa mel. A história se passa numa  pequena povoação em região montanhosa (muito bonita) da Turquia. É a parte final de uma trilogia de Kaplanoglu. Os outros dois títulos são os longas Yumurta (Ovo), de 2007, e Sut (Leite), de 2008.  Cada um deles mostra uma fase na vida do personagem Yusuf. Ovo trata do homem adulto, poeta sem reconhecimento, dono de um sebo, que retorna à cidade onde nasceu para o enterro da mãe. Leite enfoca o jovem que não consegue entrar da universidade, não é aceito no serviço militar e quer escrever poemas. Esses dois filmes não passaram ainda no Brasil, salvo em exibições especiais. Mas  não há problema para a compreensão de Um doce olhar. Cada um pode ser visto de forma independente. Os três compõem o roteiro de uma vida ao contrário.

Um doce olhar apresenta Yusuf (o ator mirim Bora Altas) com seis anos, vivendo entre montanhas, pássaros, córregos, sons, cores e mistérios da floresta, ao lado do pai, o apicultor Yakup (Erdal Besikçioglu), e da mãe Zehra (Tülin  Özen), cultivadora de chás.

A delicada obra mostra o olhar do menino se apropriando do mundo. É um olhar primevo, inaugural, iluminado pelo contato físico e espiritual com os seres e coisas que o cercam. Yusuf tem dificuldades na escola, onde está aprendendo a ler. Vai e volta sozinho pela estrada de chão. Muito tímido, gagueja sempre, quase não se relaciona.  A pessoa com quem mais e melhor se dá é o pai, que lhe passa conhecimentos sobre seu trabalho e a natureza. A história marca a passagem de Yusuf para outra esfera de consciência, em razão de um doloroso acontecimento.

A fotografia é cativante, com planos longos e silenciosos. Poucos diálogos. Gestos, expressões, objetos e árvores valem muito neste belo filme.

Somos todos sobreviventes em um mundo que despenca ao nosso redor. Só há uma permanência em nossas vidas: a ausência.

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A Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária e Geológica de Passo dos Ausentes (SHGFLGPA), leia-se Dom Sigofredo de Alcantis na presidência, Alberta de Montecalvino e Juan Niebla no setor cultural, me convida para continuar a escrever neste blog, depois dos textos que rabisquei sobre o Festival de Cinema de Gramado. Acho um gesto de  coragem  e grandeza da parte deles.

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Foto: Yusuf e o pai. Divulgação. Paris filmes.

Saiba mais sobre O Cavaleiro da Bandana Escarlate nos posts de 27 de abril  e 29 de julho de 2010.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Entre plátanos

Jorge Adelar Finatto



Entre plátanos
e borboletas
o menino brinca

contra a miséria da rua
e a tragédia familiar
ele cresce

por um momento
na manhã do mundo
o menino gira


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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Passos de algodão


Jorge Adelar Finatto

 
 
 
Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.

Depois de longa e sentida ausência, ele retornou ao convívio das tardes no escritório. Conheço meu amigo de outros invernos. Partiu em fevereiro sem dizer nada, tão ao seu estilo, e me deixou aqui todo esse tempo sem poder ouvir sua voz cava e rascante, sem poder ver sua plumagem luminosa, seus olhos redondos e atentos.

Sempre sinto falta do seu olhar de banda, da maneira estrambótica de aterrissar num só pé na sacada do escritório. Alziro tem temperamento forte e, às vezes, um certo mau humor o acompanha quando o tempo está pra chuva.

Ele voltou com suas cores vivas para suavizar o inverno. Eu andava mesmo precisado de sua companhia. Não que ele converse muito. No fundo, nem é isso o mais importante.

A silenciosa presença do amigo, sabê-lo perto, partilhando a vida, é motivo de consolo e esperança.

Providenciei hoje a reposição de pedaços de banana no pratinho dos pássaros, fruto muito do seu gosto.

Em certos dias, Alziro deixa a cerimônia de lado, entra no escritório, em passos de algodão, e ensaia uma pequena incursão no ambiente. Olha o teto, os lustres, a mesa, os livros, os quadros, as plantas e relógios, tudo com silenciosa atenção. Faço que não percebo para deixá-lo à vontade.

Do mesmo jeito que chega, o meu amigo vai embora. Como sempre, não se despede e nem diz quando voltará, apenas alça o improvável voo adunco rasgando o ar.

O que importa, diz o coração, é que a velha e boa amizade está rediviva. Se tudo der certo, talvez ele retorne amanhã ou quem sabe depois. Só espero que não me falte tão cedo, porque meu inventário de ausências já vai longo na vida.

Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.

 
 
 


 


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Fotos. J. Finatto.