terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Bom dia, Mano Bisol

Jorge Adelar Finatto


pinturas: Maria Machiavelli


Habitava sozinho a quitinete diante do rio Guaíba. Um microcosmo formado por uma sala, que também era quarto, uma cozinha, um banheiro e uma janela.

Uns livros empilhados contra a parede, um radinho de pilha para ouvir as músicas da rádio da universidade, as últimas notícias (o mundo estava por acabar, só não sabia o dia).

Havia também quatro baratas (as sibilas) e algumas traças de saudosa memória. 

Naquele mínimo universo, não havia liberalidades de espaço, de dinheiro (que se contava aos centavos para o ônibus e o prato feito do almoço) e muito menos de ternura.

Tudo minimalista.

Ele, as sibilas, as traças e os livros povoavam aquele território perdido, cercado de austeridade e solidão por todos os lados.

Sobre a pia da cozinha, o fogãozinho com duas pequenitas bocas. Essas bocas, como a dele, estavam sempre fechadas.

O calado morador não sabia e nem tinha disposição para cozinhar. Comer sozinho, todos os dias, deixa o cara desamparado. O que saía (ao amanhecer e antes de dormir) era uma singela e morna taça de café com leite, pão e manteiga.

Solidão, farelo de pão. A festa das baratas.

Lá fora, na rua, a ditadura militar.

Às sete horas da manhã (que é quando os justos abrem os olhos para o sol que roça a veneziana), ele ligava o radinho para ouvir Bom dia, Mano, o ensaio falado do filósofo, poeta e desembargador José Paulo Bisol.

A cortina musical era a linda Voo sobre o horizonte, tocada pelo conjunto Azymuth (o cd com essa e outras músicas acaba de ser relançado pela Livraria Cultura, na sua Coleção Cultura).

Aquele era o momento de reunir forças antes de ir para a batalha. A palavra do Bisol tinha afeto, esperança, companheirismo. Carregava uma energia capaz de empurrar o vivente para o núcleo duro da realidade.

Havia naquelas frases um entusiasmo, uma ideia de que tudo na vida é possível. E, naquela altura, era mesmo.

(Palavras acendem um coração apagado.)

Com o bornal ao ombro e uma esperança difusa no peito, o sobrevivente saía então para enfrentar o mundo.

Gracias, Mano Bisol!

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Presença

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Me tens aqui lutando
com secas palavras
para iluminar a treva
que nos reúne
em torno do lume
do poema

me tens aqui solidário
beirando a primavera
beirando os trintanos
com raros bens materiais
e nenhum privilégio
de credo ou classe

às vezes louco
às vezes patético
com poucos seres humanos
pra repartir
alguma coisa

me tens aqui poeta
num país injusto e sofrido
caminhando à beira de um rio

a sujeira flutua nas águas
os pobres equilibram-se
em perigosas palafitas

me tens aqui poeta lírico
cada dia mais lúcido

como a primavera
eu invado de repente
a sala adormecida
o coração desabitado

não tenho uma saída
para os dramas
que andam por aí

sequer possuo soluções
plausíveis
para os atrapalhos
cotidianos

o que posso oferecer
e ora ofereço
é essa canção discreta
para dissipar a sombra

um braçada de flores
no inverno

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Rua sem sol

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Os antepassados
negros e italianos
rasgaram o oceano
para que eu estivesse aqui
no futuro
olhando o fim de tarde
no horizonte dos muros

não possuo do imigrante branco
a esperança eldorada
nem a saudade triste do preto
em pranto mastigada

sou apenas um homem mestiço
olhando o movimento dos barcos

agora que a noite cai
sobre a cidade
e me surpreendo sonhando
com a fuga
por uma rua sem sol

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Essa fome infinita

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Último dia do primeiro mês do ano. Alguém dirá: estamos apenas no começo.

Mas eu acho, nessa minha vã filosofia de viajante do tempo, que a locomotiva está correndo demais.

Não quero a velocidade do trem-bala. Gosto mais do ritmo da maria-fumaça.

Por favor, Seu Maquinista, mais devagar.

Quero ver a paisagem. Quero conhecer e trocar palavras com os outros passageiros.

Quero não chegar tão cedo a lugar nenhum, a nenhuma estação. Não tenho pressa.

Afinal, todas as viagens estão mesmo fadadas a chegar um dia.

Só quero o caminho. Essa fome infinita de viver.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O instante é nossa eternidade

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

A caminhada polifônica, essa que se faz para a observação da natureza e o alimento do espírito, precisa se adaptar às inclemências do clima.

O calor do verão dá muita canseira. Há quem goste (o que é de gosto regala a vida, diz o provérbio popular).

Quer dizer, um chapéu de palha é importante, assim também um cantil com água fresca, um borzeguim leve, não obstante robusto. Não esquecer, claro, telescópio, calepino e a Coruja, a câmara de revelar o mundo. Enfim, coisas do caminhante.

photo: j.finatto

Aqui na serra não se está de todo livre da força sufocante do astro-rei. Mas há a brisa generosa, o vento correndo nos cânions, os arroios, as árvores, sombras benignas.

As hortênsias já agora começam murchar, exaustas de tanta luz solar. Em compensação, inicia a vindima. O cheiro da uva nos parreirais e cestos de vime é uma promessa de felicidade. O sabor na boca das pretas, brancas e rosadas é pura epifania.

A polifonia andante demanda persistência, olhar inaugural e uma certa leveza no coração. Sim, leveza, sem a qual até o primitivo azul do céu nos oprime.

photo: j.finatto

O caminho oferece miradas. Lá longe, no vale, a casa branca entre os pinheiros. Crianças correm em volta. Uma mulher estende roupas no varal. São traços de tinta dentro da pintura.

Caminhemos, caminhemos sem pressa, disponíveis aos apelos do campo. Quem sabe encontraremos um bosque na beira do entardecer, pra descansar, fazer algumas anotações, sentir o tempo pulsar.

Somos figuras efêmeras numa irrepetível aquarela de verão. O instante é a nossa eternidade.

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Leia mais sobre a caminhada polifônica em O peixe da boca vermelha:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/04/o-peixe-da-boca-vermelha.html

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A nossa morte dos outros

Jorge Adelar Finatto

photo: Vítor Rios, Global Imagens, Jornal de Notícias, Portugal.

Em Lisboa, duas mulheres foram encontradas mortas no apartamento onde moravam, na Travessa do Convento de Jesus. Uma tinha 74 anos, a outra, 80. Uma vizinha estranhou que elas não atendiam a porta há dias e informou a polícia. Os corpos estavam em decomposição e foram retirados nessa quarta-feira, 25.

De acordo com os primeiros informes, eram irmãs. A mais nova sofria de câncer e cuidava da mais velha, que estava doente na cama. A senhora de 74 anos veio a falecer, após prolongada enfermidade. A outra, que dela dependia, ficou sem receber cuidados, água e alimentos, vindo a morrer também. 

A tragédia aconteceu em Lisboa, mas fatos semelhantes ocorrem diariamente pelo mundo. O brutal isolamento das pessoas está em toda a parte.

Entre velhos e crianças, esta realidade é ainda mais triste, porque normalmente são indefesos.

Morre-se no silêncio do abandono e no retiro da dor. Morre-se de qualquer jeito, sem assistência, longe do olhar das autoridades, dos parentes e amigos. Morre-se distante das redes sociais, como bicho, num dia qualquer de janeiro. Ninguém põe atenção nisso.

Afinal, todos estamos muito ocupados com a internet, e-mail, facebook, twitter, skype, blog e sei lá mais o quê. Nos comunicamos com o mundo inteiro a todo instante, mas não conseguimos cumprimentar e muito menos saber o que se passa com o vizinho de porta.

A história dessas duas senhoras é o retrato devastador de um tempo de solidão, onde se morre sem ter ao menos uma mão para segurar, porque essa mão afundou e já não pode nos valer no mar de sombras.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Maestro Antonio Brasileiro, entre o Guaíba e Ipanema

Jorge Adelar Finatto


Faz hoje 85 anos que nasceu o maestro Tom Jobim (1927 - 1994). Além de músico e compositor genial, um cidadão do Brasil e do mundo. Amante das palavras que cultivou com raro zelo e maestria, amigo das pessoas, dos bichos e plantas, deixou-nos um legado de superação, talento e respeito ao outro. Quando ouvimos a música de Jobim, quando lemos seu verso e sua prosa, estamos mais perto de algo parecido com felicidade.


O coração do homem que nunca mais voltará resiste em silêncio. O navio avança nas águas do Guaíba em direção à Lagoa dos Patos. Jorge Jobim perde de vista o contorno de Porto Alegre. A figura melancólica recorta-se na memória da tarde de inverno. O grande mar de água doce (Mar de Dentro) remete Porto Alegre ao Atlântico. O Rio de Janeiro é o destino.

O tempo voa longe. No dia do futuro, alguém abre a gaveta. A claridade ilumina velhos papéis do homem que partiu. Eis ali o poeta e sua palavra.

O menino Antonio Carlos teve que reinventar o pai que perdeu aos oito anos. Acariciou suas mãos ausentes ao piano, nas antigas manhãs da casa de Ipanema.

O piano cantou a canção paterna: a nostalgia do sul, a saudade da família, dos amigos, o amor que se perdeu. Era preciso calar o esquecimento.
       

photo: j.finatto. cais antigo de Porto Alegre

Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim nasceu em 25 de janeiro de 1927 no Rio de Janeiro, filho de Nilza Brasileiro de Almeida Jobim, carioca, professora, e de Jorge de Oliveira Jobim, gaúcho de São Gabriel, poeta, bacharel em Direito com passagem pela carreira diplomática. Morreu em 8 de dezembro de 1994, nos Estados Unidos, para onde viajara a fim de se operar de um câncer.

O pequeno Tom veio com os pais a Porto Alegre, onde Nilza e Jorge haviam se casado, para conhecer a família Jobim. Por pouco não ficaram morando nas margens do Guaíba. Porém, falou mais alto o desejo de Nilza de morar no Rio, onde estavam seus familiares. No meio materno foi criado o menino Tom-Tom, apelido dado pela única irmã, Helena Jobim.

A grande perda: Jorge morre aos 47 anos incompletos, deixando os dois filhos em tenra idade.

O guri criou-se entre as montanhas e o mar do Rio de Janeiro. Os longos passeios pela mata e pela praia, as pescarias, o contato com bichos e plantas fizeram nascer o interesse pelas coisas da natureza. Tornou-se não apenas seu profundo conhecedor como defensor.

Entre os professores que teve, está o alemão naturalizado brasileiro Hans-Joachim Koellreutter, que lhe ensinou a transposição das fronteiras que separam a música erudita da popular. Alguns mestres que o inspiraram: Debussy, Bach, Stravinsky, Villa-Lobos.

Amoroso das palavras, Tom Jobim foi um leitor dedicado e atento. Cultivou, entre tantos, João Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Nas letras e textos que escreveu, percebe-se o artesão meticuloso do verbo.

A obra de Tom Jobim constrói-se na esfera da genialidade. Soube como poucos aliar talento a muito trabalho. As composições que nos legou transcendem as ensolaradas cercanias de Ipanema: são patrimônio espiritual da humanidade. Águas de março, Garota de Ipanema, Lígia, Dindi, Samba de uma nota só, Chovendo na roseira e Samba do avião são apenas algumas das inesquecíveis canções que integram a sua produção.

Um dos criadores da Bossa Nova, o maestro foi também um dos principais nomes da música mundial no século XX.

A descoberta da obra jobiniana nos leva a um mundo de delicadezas e felicidade. 

Amanhã, se tudo der certo, encontraremos o amor. Se a abóbada não ceder sobre nossas cabeças, se a Mata Atlântica - que o maestro tanto amou - não virar jardim calcinado, teremos quem sabe tempo para olhar a paisagem e sentir a vida.

Ouviremos, talvez, o canto do sabiá em setembro.

A música de Antonio Brasileiro transporta-nos a esse mundo futuro e antecipa-nos a maravilha.


A vida era por um momento.
Não era dada. Era emprestada.
Tudo é testamento.
                                                      Antonio Carlos Jobim* 

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Foto: Antonio Carlos Jobim. Fonte: Acervo do Instituto Antonio Carlos Jobim: http://www.jobim.org
Texto publicado originalmente em 05 de junho, 2010.
*Palavras finais de ACJ na apresentação do disco Urubu, 1976.
Leia texto de Helena Jobim, irmã de Tom:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/04/o-livro-na-praca.html