Jorge Adelar Finatto
O que nos dizia o Clube da Esquina no vendaval das nossas vidas pequenas e massacradas na década de 1970? Dizia que era possível ir muito além da pobreza material e espiritual daqueles dias. Dizia que valia a pena acreditar na amizade, no encontro, na ousadia, na transgressão do ódio e da hipocrisia.
Mostrava que nada podia amputar nossos sonhos, nossa criatividade. A vida podia e devia ser bonita.
O Clube da Esquina não tinha carteirinha, nem endereço, tampouco piscina e sede campestre. Era um lugar espiritual onde as pessoas se reuniam em qualquer dia, qualquer hora, qualquer estação do ano. Os sócios espalhavam-se pelo Brasil.
A senha dos frequentadores do Clube estava no jeito, no olhar, no modo de ser, na amizade verdadeira, na busca.
Muitos construíram saídas existenciais frequentando o Clube da Esquina. Ali se cultivavam encontros, pomares de alegria, viveiros de afeto. Um modo diferente de olhar a vida num país que tinha perdido o encanto e a esperança.
Uma maneira diferente de traduzir essa coisa tão velha que é o indivíduo estar no mundo, mergulhado numa paisagem sombria, sob sol e chuva, e seguir adiante, apesar de tudo.
Construções melódicas e letras inusitadas, instigantes, sensíveis, tão diferentes do que tinha sido feito até então.
O fundo musical da minha adolescência foi inventado pelo Clube da Esquina, de Milton Nascimento, Lô Borges e companheiros de estrada. Estamos falando dos anos 1970. O famoso clube mineiro vinha dos anos sessenta, quando Milton tinha vinte e poucos anos e havia feito músicas eternas como Travessia (em parceria com Fernando Brant) e Morro Velho, que chamaram a atenção do mundo.
O Clube da Esquina, disco lançado em março de 1972, trazia um recado urgente. Era uma música nova, numa época difícil. As portas estavam fechadas para a juventude. Os ares das montanhas de Minas Gerais, o sertão, as veredas, as paisagens de concreto, vidro e aço das grandes cidades, a loucura da história, tudo vinha junto nas canções. O antigo e o moderno.
A impressão é que nada de importante escapava dos integrantes do Clube. Eram poetas lúcidos e líricos, profundamente brasileiros, latino-americanos, um canto universal.
Havia no trabalho daqueles jovens músicos e compositores muito de cinema, leitura de filosofia, literatura, conhecimento da arte em geral, que os levava a uma reflexão atual sobre a vida, a risco, a céu aberto. O paredão da censura e do medo não lhes caía bem, o grupo rejeitava com coragem esse tipo de interferência.
Eu estudava com meia bolsa numa escola particular de Porto Alegre, na qual havia filhos de famílias de classe média e alta. Quando vim a ter a minha primeira jaqueta Lee, americana, esse vestuário já saíra de moda.
Sempre estive fora de moda naquela escola. Ir todos os dias pra casa, no bairro distante, no ônibus velho e lotado, era de certa forma um alívio. As pessoas mais afortunadas não conseguem esconder certa estranheza diante dos pobres, quando eles entram no seu ambiente.
Mas a leitura e a música, duas coisas relativamente acessíveis, abrem caminhos ensolarados.
No Clube da Esquina não se barravam pessoas pela classe social ou qualquer outra. Aprendi a olhar nos olhos dos outros, sem ter vergonha de ser pobre e não ter as coisas materiais que, para muitos, são importantes. Havia outras riquezas.
Foi um amigo da escola, filho de militar de alta patente do Exército, quem comprou o primeiro Clube da Esquina. Me convidou para ouvir o disco. O cara tinha até um quarto só pra ele! Passamos muitas tardes de nossas vidas de adolescentes dentro do Clube.
Podíamos, então, sair em viagem com O tem azul (Lô Borges e Ronaldo Bastos):
Coisas que a gente se esquece de dizer
Frases que o vento vem às vezes me lembrar
Coisas que ficaram muito tempo por dizer
Na canção do vento não se cansam de voar
Você pega o trem azul
O sol na cabeça
O sol pega o trem azul
Você na cabeça
O sol na cabeça
O Clube da Esquina era a gente andando no meio do mundo. A gente vivendo numa realidade seca, mas com esperança.
Os militares ocupavam o poder de forma truculenta. Do outro lado, pessoas estavam na luta armada. O país se matava. Não havia conversa, não se encontravam saídas. Era o tempo dos assassinatos, dos sequestros, da tortura, dos banimentos, dos assaltos a bancos, das emboscadas, da violência como única forma de luta.
A luta encarniçada pelo poder.
A estética do Clube da Esquina era a da resistência e do rompimento com o atraso e a falta de imaginação. Em 1972, o antológico disco foi um enorme acontecimento. Entre os participantes estavam Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Lô Borges, Márcio Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Wagner Tiso, Paulo Moura, Nelson Ângelo, Eumir Deodato, além, claro, do próprio Milton. Em 1978, veio à luz o Clube da Esquina 2, com nomes em acréscimo, como Tavinho Moura, Paulo Jobim, Joyce, Ruy Guerra, Novelli, Danilo Caymmi, entre outros.
As pessoas que participavam do Clube da Esquina tinham em comum a inquietação pelo novo, na vida pessoal e no espectro coletivo, sendo a música a via de chegada a este tempo futuro, que já se fazia presente nas letras e canções. Pessoas de diferentes classes sociais, com aspirações de justiça e fraternidade, se encontravam no Clube.
Em 1975, Milton Nascimento apresentou-se com seus amigos em Porto Alegre. Foi no Gigantinho, ginásio de esportes ao lado do Gigante da Beira Rio, do Internacional, à beira do Guaíba. Lembro-me que não ocupamos a arquibancada, o público era pequeno. Sentamos no chão mesmo, à vontade, diante do palco improvisado, a poucos metros dos músicos. Foi um grande e inesquecível show, Milton cantando os "clássicos" que faziam tremer nossos corações. Depois, generosamente, atendeu aos pedidos de músicas extras.
O pessoal do Clube da Esquina não assumiu pose de ídolo. Eram ao natural. Começando pelo primeiro, Milton Nascimento, reservado, com notável intuição, informação cultural e uma capacidade impressionante para decifrar os enigmas do tempo e ver adiante. Com suas músicas, esses artistas iluminaram o nosso duro chão de viver.
Ainda hoje escuto as músicas do Clube da Esquina com o mesmo arrepio, o mesmo alumbramento dos anos setenta do século passado. Como puderam fazer algo tão bonito e ao mesmo tempo tão presente na vida de tanta gente? O trabalho dos integrantes do Clube vinha de outra esfera de consciência, reservas espirituais.
Estavam perto de Deus, dos anjos, dos homens.
Com eles, num domingo qualquer, sem nenhuma perspectiva, aprendemos que Nada será como antes (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos):
Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite
Um gosto de sol
Num domingo qualquer, qualquer hora
Ventania em qualquer direção
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está
Éramos urbanos, mas, nas canções do Clube, colocávamos os pés também no interior, em estradas de terra, conhecendo nosso país. Andávamos de carro de boi, atravessávamos vales e montanhas, tomávamos banho de rio e de mar.
Nenhum outro movimento musical nos disse tantas coisas, nos tocou tanto, nos projetou para o futuro, em um país que tratava - e ainda trata - seus jovens como marginais.
A obra visceral de Milton Nascimento e seus amigos nos alimentou com vida solidária e convivente.
Um sentido de partilha atravessou a escuridão.
Uma visão de transcendência espalhou-se no cotidiano.
Uma paisagem vista da janela mostrou-nos que a vida pode ser o que fizermos com ela.
Um pouco/muito da existência de muita gente no canto e na voz humana de Milton Nascimento.
No meu bornal de lembranças, lá está o trenzinho passando na frente das montanhas, com o sol atrás, como no desenho de Milton. Aquelas canções seguem dentro de nós pelas ruas vazias, nas salas de espera, nas filas dos ônibus, trens, barcos e aviões, nas calçadas, nos hospitais, praças, na volta do mercado público de Porto Alegre, nos difíceis ambiente de trabalho.
A vida nunca mais seria a mesma.
Milton gravou mais uma vez a amizade, no Clube da Esquina 2, na canção Que bom, amigo, de sua autoria:
Que bom, amigo
Poder saber outra vez que estás comigo
Dizer com certeza outra vez a palavra amigo
Se bem que isso nunca deixou de ser
Que bom, amigo
Poder dizer o teu nome a toda hora
A toda gente
Sentir que tu sabes
Que estou pro que der contigo
Se bem que isso nunca deixou de ser
Que bom, amigo
Saber que na minha porta
A qualquer hora
Uma daquelas pessoas que a gente espera
Que chega trazendo a vida será você
Sem preocupação
O Clube da Esquina, sem carteirinha de sócio e sem sede, nos acolheu e tratou como irmãos.
Como disse Milton, no excelente livro Os sonhos não envelhecem*, do poeta, escritor e autor de letras de canções Márcio Borges:
“E mais uma vez penso que o Clube não pertencia a uma esquina, a uma turma, a uma cidade, mas sim a quem, no pedaço mais distante do mundo, ouvisse nossas vozes e se juntasse a nós. O Clube da Esquina continua vivo nas músicas, nas letras, no nosso amor, nos nossos filhos e quem mais chegar”.
O Clube da Esquina, solto no espaço como nuvem, tem a porta de entrada no nosso coração.
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Foto: capa do disco Clube da Esquina, 1972.
*Os sonhos não envelhecem. Histórias do Clube da Esquina. Márcio Borges, p.358. Geração Editorial, São Paulo, 1996.