quarta-feira, 30 de março de 2011

Ruy Belo

Jorge Adelar Finatto


Procuro resgatar o tempo perdido nessa difícil vida de leitor. Leitor cercado, durante muitos anos, por todos os lados, pelo cotidiano pesado e pela faina profissional, a exigir leituras de processos e decisões urgentes (que tudo hoje são urgências). O sonho de viver perto dos livros, contudo, não se perdeu. A descoberta de bons poetas e escritores faz valer a pena a longa caminhada no bosque das estantes.

Travar conhecimento com a poesia de Ruy Belo (1933 - 1978) é um desses raros encontros. Poeta português de vigorosas virtudes líricas, bem havido no trato de seu instrumento de trabalho (a palavra na árdua construção do poema), lê-lo é entrar em contato com a emoção do verbo. A formação humanista do autor resplandece em sua obra. A aguda intuição, fonte principial onde se encontram os grandes poetas, não lhe é estranha. Conhecer o seu trabalho é um achado inesquecível.

Ruy Belo é desses artistas que têm o dom de deixar a língua portuguesa mais bela, tal a invenção e a capacidade de nos surpreender com sua lira refinada.

O Tempo das Suaves Raparigas e Outros Poemas de Amor (que estou lendo e já relendo) é um livro que passou a fazer parte do meu armário de poesia. A edição, da editora portuguesa Assírio e Alvim (Lisboa, 2010), é boa, mas ressente-se da falta de uma biografia mínima do autor e de alguma informação bibliográfica.

Outra fonte de leitura dos poemas de Ruy Belo encontramos na seção Banco de Poesia, do site da Casa Fernando Pessoa, de Portugal: http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/. Dela reproduzo estes dois poemas do autor:


As impossíveis crianças

Nesta manhã de outono dos primeiros frios
mais a caminho da velhice que da minha casa
eu vejo-vos em roda todas a cantar
Impossíveis crianças deixais-me brincar?

&       &       &

Acontecimento
                          
Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono
Caiam agora pálpebras que cerrem
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou
___________ 

Foto: Ruy Belo. Autora: Teresa Belo.
Fonte: Instituto Camões:
http://www.instituto-camoes.pt/

segunda-feira, 28 de março de 2011

Os últimos acendedores de lampiões

Jorge Adelar Finatto



No entardecer, quando o sol morre atrás do Contraforte dos Capuchinhos, os dois acendedores de lampiões saem às ruas para dissipar a escuridão. Érico tem 78 anos e Dyonelio, 83. São os últimos remanescentes da Companhia de Iluminação de Passo dos Ausentes. Inauguram a luz com seu gesto, esconjuram o breu.

A nostálgica claridade noturna de nossas 20 ruas é invenção de 80 lampiões nelas espalhados. É assim desde 1925. A cidade parou no tempo desde então.

Érico e Dyonelio exercem o ofício desde a adolescência, quando ingressaram na companhia como aprendizes. Com a aposentadoria dos acendedores mais velhos, e diante do brutal esvaziamento da cidade (os jovens muito cedo vão-se embora à procura de estudo, trabalho e aventura; os velhos acabam morrendo e mudam-se em definitivo para os campos da ausência), não houve renovação dos iluminadores.

Somos poucos.

Os últimos acendedores de lampiões fizeram um pacto. Trabalharão até o dia da morte para não deixar a cidade entregue às trevas. Eles acreditam que quando não mais estiverem nas ruas para acender os lampiões forças malignas tirarão proveito da escuridão e expulsarão nossa cidade do sistema solar. Precisamos evitar a todo custo que se cumpra o presságio do padre Eleutério Ombra, enunciado em 1755, de que uma nova São Miguel das Missões se ergueria perto das nuvens, sobre altas montanhas, com graça e fulgor. Advertiu, todavia, que uma grossa sombra rondaria sempre esse lugar e poderia engoli-lo.


Depois que exércitos espanhóis e portugueses destruíram São Miguel, em 1756, alguns padres jesuítas e índios guaranis, sobreviventes do massacre, fugiram e fundaram Passo dos Ausentes.

Uma grande angústia toma conta das pessoas por aqui. Vivemos nesta cidade condenada ao desaparecimento. Cada um é insubstituível. Nem ao menos figuramos no mapa do Rio Grande do Sul.

Somos poucos. Somos invisíveis. Somos habitantes dos Campos de Cima do Esquecimento.

O tempo, em Passo dos Ausentes, é uma ferida que não para de sangrar.

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Do livro A cidade perdida: as origens. Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2003.
Texto publicado no blog em 22 de janeiro, 2011.
Fotos: J. Finatto

sexta-feira, 25 de março de 2011

Basquiat: coming from the streets, where he painted graffiti, the artist conquered art galleries and museums with his art *

Jorge Adelar Finatto




 

Something in Jean-Michel Basquiat´s trace catches the eye. In general, graffiti makes you tired and bored. It seems they only make the sensation of solitude and isolation of the big cities worse. Rarely do they convey something poetically revealing. I am stubborn, though. I am capable of standing in the street in front of a wall, trying to understand and to feel what that is. I am usually beaten by emptiness.

Graffiti has reached the status of art form in latest years thanks to the talent of some of these street artists, namely, the figurative graffiti, different from the one that is solely a simple inscription of letters and numbers. Public areas end up being appointed to these crafters. That is to say, less and less, the creative activity of the graffitist is seen as an affair for the police. The artists themselves are talking with the scribble gang, asking them not to damage these areas which have been toughly conquered.


When I saw Basquiat´s paintings for the first time, I tried, after the five initial minutes, to turn a blind eye to them and to keep on my path, but I could not. I started to follow the composition trail of each picture. And there was the view of the world aesthetically elaborated, with his Afro-American origin, impregnated by the rough urban spirit and an intense search for freedom and denouncement. They are figurative graffiti, now out of the streets, in the galleries, with powerful colors and senses.

Jean-Michel was born in Brooklyn, New York, on December 22nd, 1960, and passed away at 27, on August 12th, 1988, in the same city. Son of a Haitian father and of a mother who was a daughter of Puerto Ricans, he has become renowned, at first, as a graffitist and, afterwards, as a plastic artist. He was one of those responsible for the recognition of graffiti as an artistic manifestation.


When he was around 17 years old, he started to paint abandoned buildings of Manhattan. The signature with which he identified himself then was “Samo” or “Samo shit” (same old shit). At a certain time, after he left his parents´ home, he had to sell t-shirts and postcards in the streets so as to survive. The work of Basquiat drew attention and started being commented, rapidly gaining notoriety in the means of communication. He began painting portraits and to do exhibitions. He ended up becoming a rare case of an artist who early gains recognition. Moreover, he formed a band with acquaintances and participated in, at least, two films. In 1982, he dated a singer who was not very well known at the time, Madonna. He had partnerships with Andy Warhol.

An intense and professionally successful life, with massive media coverage, did not free him of the contact with drugs such as heroin and cocaine.

He died of an overdose, at the top of the heap, in his studio.

The work of Basquiat is recognized and valued internationally. It is not only a marketing case. There is much creation and poetic valor in these restless, vibrating, aggressive, questioning traces. The expression of the artist has reached an identity that characterizes itself as unique.



 
Let us look at Basquiat´s paintings. Isn’t there, by any chance, in the feverish and explosive wrist something that puts him side by side with oldest brothers like Tintoretto and Van Gogh? These colors and figures lead us to moments of emotion, beauty and reflection.

Basquiat was a fallen angel (title of the blue painting above), who left this world too soon.

The Museum of Modern Art in Paris held an exhibition with the work of Basquiat in October 2010, which lasted until the end of January 2011. Lines of almost 500 meters were formed for visitation.

People’s interest in the artist’s work is understood since it is a grateful discovery in the currently rarefied territory of virtue in the arts in general.



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* Este post foi originalmente publicado no blog, em português, em 28/11/2010. Republico, em inglês, em atenção aos leitores de outros países que têm procurado esta matéria.
Imagens: fotos de Basquiat e suas pinturas. Fonte: site oficial:

http://basquiat.com
Reprodução com autorização dos proprietários dos direitos da obra de Basquiat:
© The Estate of Jean-Michel Basquiat / AUTVIS, 2010
Translation by Letícia Lanius (Public Translator) – lelanius@yazigi.com

quarta-feira, 23 de março de 2011

A claridade do coração

Jorge Adelar Finatto

O certo é que, na vida como na arte, a gente fracassa sempre.

 


A trevosa sintaxe da vida. A escuridão das almas. Fugidias imagens me perseguem. Nos urdimentos do bandoneón, busco outras claridades. O viver longe do abismo, no vero amanhecer, eu busco. Eu, Juan Niebla, venho do neblinoso. Trouxe o calepino?


Tenho andado pela vida à procura de luz. Essa que vem de dentro. A escuridão está em toda parte, principalmente nas almas. As trevas-mestras sustentam o mundo. Bem-vindo o que vem em paz e desarmado. Os regulamentos da amizade eu cumpro. A minha casa está sempre aberta. Nos enquantos, porque amanhã é escuro. Anote por favor.




A treva foi inaugurada com a luz principial. Isto é demanda antiga. A velha contradição. A luta imemorial. Mas também o complemento ideal, uma não existe sem a outra. Em termos de arriscada filosofia, caminho em beira de precipício.

A maldade não tem sala na minha casa. Sou músico de bandoneón e memória, na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. Espero com o ouvido a chegada do invisível trem. Cego desde os 16 anos, sim, senhor. O resto é o breu e se dissipa quando toco meu instrumento no velho banco.

A vida é dura? Pra completar, é breve. Somos um ato-falho da criação. Sou homem de fé, Deus me perdoe. Se vive. Faço o que é possível, às vezes menos, às vezes mais. Somos ferida em carne viva, vivo pensamento. Se vive. Está anotando?



O certo é que, na vida como na arte, a gente fracassa sempre. Falta aquele grito, aquela palavra, o remate, aquilo que não foi dito nem lembrado. O ora-veja que só a divina obra tem. Deus é artista caprichoso, no atacado e no miúdo, como outro não há. Conseguiu escrever?

Pediram-me um ensaio falado sobre as cores remotas do outono. Mas eu só sei, só vejo isso que sinto.



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Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo de músico municipal desde 1940. Toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade. Tem 87 anos, é cego desde os 16.

Fotos: J. Finatto

segunda-feira, 21 de março de 2011

Villa-Lobos e outono

Jorge Adelar Finatto



Celebro o começo do outono escutando o Concerto para violão e orquestra do maestro e compositor Heitor Villa-Lobos (1887 - 1959). É uma comemoração discreta, íntima, como é o próprio outono. O concerto é uma obra que consagra o violão brasileiro e é, ao mesmo tempo, uma relíquia da humanidade. Villa-Lobos toca fundo as cordas do instrumento e dele colhe sublimes sonoridades.

A orquestra ao longe é a paisagem dentro da qual corre esse rio profundo e cheio de segredos.

Mestre das impossíveis harmonias, a música do maestro nos enche a alma. Somos tomados por um forte sentimento de gratidão. Na lápide do túmulo do compositor, no Cemitério São João Batista, na cidade do Rio de Janeiro, onde nasceu, lê-se esta inscrição: Considero minhas obras como cartas que escrevi à Posteridade sem esperar resposta.

Os tempos são difíceis no mundo, eu sei. Mas nas folhas dos plátanos a luz âmbar amadurece. O outono traz nas mãos amenas tardes de sol, ocres silêncios, travessias e mergulhos na misteriosa partitura da vida.

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Fotos: 1) J. Finatto. Cenário de outono; 2) Heitor Villa-Lobos, cerca de 1922. Fonte: Wikipédia. Autor desconhecido.
Vale a pena fazer uma visita ao site do Museu Villa-Lobos:
http://www.museuvillalobos.org.br/

domingo, 20 de março de 2011

A coragem*

José Saramago


Patricia Kolesnicov é jornalista e argentina, mais jornalista que argentina em minha opinião, mas isto é só uma pequena ideia de literato, colocar a profissão antes da nacionalidade como se estivesse a substituir um mundo por outro. Há anos apareceu-lhe um cancro da mama que enfrentou com a coragem de que só uma mulher é capaz. Não o digo para parecer bem, para ganhar indulgências entre a outra metade da humanidade. Se o digo é simplesmente porque o penso: perante a dor, perante o sofrimento, elas são muito mais valentes que nós. A criança que chora e se lastima por ter esfolado um joelho continua a existir no homem mesmo que passem muitos anos, e quantos mais passem, mais essa presença se notará, a mulher meteu-lhe uma decidida chupeta na boca e, se a não conseguiu calar de todo, ao menos aplicou uma surdina aos seus queixumes, que os tornará relativamente suportáveis a ouvidos e sensibilidades alheias. O homem exibe, a mulher não quer que se note.

Quando o cancro foi vencido, Patricia escreveu um livro a que pôs o título de “Biografia do meu cancro”. Não gostei e disse-lho, mas ela não me fez caso. O livro (publicado também em Portugal, na Caminho) traça sem complacências um percurso duríssimo e, talvez para honrar a palavra daqueles que afirmam existir um humor judeu particular (Patrícia é judia), o relato, que noutras mãos seria grave, inquietante, inclusive assustador, desperta frequentemente em nós um sorriso cúmplice, uma súbita risada, uma irreprimível gargalhada. Com um pouco mais Patricia Kolesnicov tornar-se-ia mestra do paradoxo e do mais negro dos humores.

Patricia acaba de recuperar os direitos sobre a sua obra e não lhe ocorreu melhor ideia que pô-la na internet para uso, disfrute e lição de toda a gente. Leiam-na e agradeçam-lhe. E, já agora, agradeçam-me também a mim que sou seu amigo e escrevi estas palavras justas, mínimas para o que ela mereceria, mas que outros (os seus leitores) farão crescer pela via do respeito e da admiração. Pela coragem.
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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago:
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago:
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente pelo escritor, no seu blog, em 12/05/2009.
A grafia é a de Portugal.
Foto de José Saramago (1922 - 2010) : Acervo da FJS

sábado, 19 de março de 2011

Flor, sim, flores

Jorge Adelar Finatto

























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Fotos: J. Finatto. Passo dos Ausentes.
Carpe diem (Aproveita o dia. De um verso do poeta romano Horácio).

sexta-feira, 18 de março de 2011

Luz no breu

Jorge Adelar Finatto



Cada palavra escrita é um pequeno fósforo que se acende em meio ao breu profundo da condição humana. Ler e escrever são maneiras de dizer não à barbárie, à morte, ao esquecimento.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 16 de março de 2011

A boneca de trapo

Jorge Adelar Finatto


Era uma dessas tardes que antecedem o outono em Passo dos Ausentes. O ar outonal nos deixa mais sensíveis diante das primeiras quedas de folhas e mudanças de cores e seivas na natureza. Em dias assim, estar vivo é uma sorte.

Encontrei uma boneca de trapo caída no chão da Praça da Ausência. Era feita de velhos panos coloridos. Os olhos eram dois botões verdes. Os cabelos, fios de lã repartidos em duas tranças. A boca era um pequeno risco vermelho e sorria. 
 
Apesar de perdida, a boneca não parecia muito triste. Talvez um leve toque de melancolia no semblante. Afinal, alguém a deixara para trás. Levantei-a do chão e acomodei-a no banco da praça, embaixo de um salgueiro.

Fui embora, não sem um pouco de dor. No início quis levá-la comigo, dar-lhe um novo lar. Mas desisti ao pensar que quem a perdeu pudesse vir buscá-la e seria de cortar o coração não encontrar a sua boneca de trapo. 

Viver tem dessas coisas. Nem sempre podemos ter o que nos encanta. Num dia, o céu azul, nuvens cor-de-rosa, o coração batendo harmonioso. Noutro, nuvens escuras e pesadas se espalham e a gente só pensa besteira.

A boneca de trapo me lembrou coisas que perdi na vida. Perdi e me conformei. Porque nada, absolutamente nada, nos pertence de verdade nesse mundo. Tudo que temos é emprestado. Um dia teremos de devolver. Nada nos pertence. Salvo, talvez, o meigo sorriso de uma boneca de pano.

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Foto: J. Finatto. Boneca artesanal da região serrana do Rio Grande do Sul.

segunda-feira, 14 de março de 2011

O barbeiro de Fernando Pessoa

Jorge Adelar Finatto


Fernando Pessoa (1888-1935) habita um quarto do apartamento do primeiro andar, lado direito, do edifício nº 16 da Rua Coelho da Rocha, no bairro Campo de Ourique, em Lisboa. Cuida da aparência e dos fatos (ternos), que compra de bons fornecedores, apesar das sérias dificuldades financeiras. O que ganha trabalhando para casas comerciais, como responsável pela correspondência em inglês e francês, é insuficiente.

Costuma frequentar a Barbearia Seixas, quase na frente do edifício. Para lá se dirige seguidamente. Quando a única cadeira está ocupada por outro cliente, o poeta faz um discreto gesto, uma senha para o barbeiro Manassés. Este, tão logo se desocupa, dirige-se ao apartamento onde Fernando vive na companhia da irmã, do cunhado e da sobrinha. A visita de Manassés tanto pode ocorrer de dia como à noite.


A pequena sala abre a porta de madeira marrom sobre a calçada. Faz parte de um prédio antigo, castigado. Trata-se, hoje, de uma oficina de equipamentos de som. Nesse território perdido no tempo, encontro o senhor António Seixas, quase octogenário, que vem a ser o responsável técnico (ou será melhor dizer o alquimista?) do estabelecimento. É o filho de Manassés.*

No local exíguo, acumulam-se muitos aparelhos. Não existe uma ordem aparente. Mover-se, ali, requer estreitamento de ombros e movimentos de cintura. Coisa difícil.

Peço licença para entrar. António me recebe com um sorriso. Revela-se gentil no trato, tem excelente disposição física e boa memória.

Encantado pelos sons mágicos que brotam das caixas lumisosas, António Seixas não seguiu a profissão do pai, que ali se estabeleceu há mais de oitenta anos.


O menino António, com cinco, seis anos de idade, muitas vezes acompanhou Manassés até o quarto do Senhor Pessoa (assim refere-se ao poeta). Faço perguntas a respeito dessas incursões. António não é mesquinho nas respostas. Ao contrário, demonstra satisfação em recordar aquele tempo e a relação do pai com Pessoa.

Fernando mudou-se para a Rua Coelho da Rocha em 1920, tendo ele próprio alugado o imóvel. Cansado de perambular por quartos de aluguel e de parentes em Lisboa, fixa naquele apartamento e naquela rua o seu lugar de viver, o recanto de aconchego físico e emocional que lhe dará condições de desenvolver o trabalho literário num dos períodos mais produtivos.

Ali viveu com a mãe Maria Madalena e os irmãos, após o retorno destes de Pretória, África do Sul, onde o padrasto João Miguel Roza era cônsul, tendo lá falecido. Mais tarde, após a morte da mãe, foram morar naquele local a irmã Henriqueta Madalena (Teca) e o cunhado, coronel Francisco Caetano Dias. A sobrinha Manuela nasceu nesse apartamento. Neste endereço, o poeta viveu até a morte em 1935.

Manassés, segundo António, era mais do que barbeiro do Senhor Pessoa, era também seu amigo e confidente.

Fernando os recebia e os levava até seu quarto. António Seixas recorda o forte cheiro de tabaco daquele lugar pequeno e pouco iluminado, que tinha apenas uma janela. A primeira providência de Manassés, enquanto conversava com o Senhor Pessoa, era limpar os cinzeiros cobertos de “beatas” (pontas de cigarros já fumados).

António lembra a mesa do quarto cheia de papéis, os livros apertados em duas estantes. Encostada na cama, a cortina da janela iluminada pela luz que vinha da rua. Observa que o Senhor Pessoa era um homem reservado, educado, atencioso com o menino.


Aqueles que conviveram com o poeta dizem que ele era especialmente afável com os mais humildes. Pessoa ouvia com atenção o que lhe falava Manassés. Durante muitos anos o poeta comeu em restaurantes, bebeu e fumou muito, pouco dormiu. A morte com apenas 47 anos talvez tenha sido apressada pela vida que levou.

O edifício número 16 da Rua Coelho da Rocha abriga atualmente a Casa Fernando Pessoa. Concebida pela Câmara Municipal de Lisboa, foi inaugurada em 1993 e destina-se a preservar a memória do poeta. Encontra-se nela a biblioteca pessoal do escritor, com muitas anotações feitas por ele em diversos dos cerca de mil e duzentos volumes. Os livros tratam dos mais variados ramos do conhecimento. Entre objetos e documentos pessoais do autor, estão os óculos, canetas, máquina de escrever, fotografias, documentos e manuscritos, além dos poucos móveis que o acompanharam em vida. A famosa arca onde guardava seus escritos, que estava em poder da família, foi leiloada e está agora com um colecionador no norte de Portugal.

O que mais impressiona na Casa é o quarto do poeta. Um espaço pequeno, humilde, um tanto sombrio. Prova de que, para o verdadeiro criador, não existe lugar melhor ou pior para escrever. A arte muitas vezes floresce em lugares tristes e sem perspectiva, talvez até mesmo como reação do espírito à adversidade.

Os restos mortais de Pessoa repousam hoje no Mosteiro dos Jerônimos, no bairro de Belém, diante do Tejo. Em sua companhia, naquele lugar, está o não menos poeta Luís de Camões, além de Vasco da Gama.

Em meio à conversa, António Seixas me chama a atenção para um equipamento sonoro que ele mesmo inventou. Não existe nada melhor em matéria de som, segundo afirma. Liga o aparelho em alto volume, pergunta se já ouvi algo com esta qualidade. Não sei exatamente o que responder, mas o entusiasmo e a confiança do meu interlocutor são tamanhos que não tenho nenhuma dúvida a respeito do valor deste invento.

Despeço-me de António, agradecendo a sua generosidade por falar de suas lembranças do Senhor Pessoa.

Saio a andar pela rua que tantas vezes ouviu os passos do poeta. Um dos grandes gênios da literatura universal.

Vou até o restaurante da esquina. Tomo um caldo verde.


Mar Português

Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!


Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

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Fotos: J. Finatto

Pela ordem: 1) grafite do poeta em rua do bairro Chiado, em Lisboa; 2) Casa Fernando Pessoa, onde viveu o poeta; 3) oficina do Senhor António Seixas, onde funcionou a Barbearia de Manassés, seu pai; 4) desenho de Pessoa numa das janelas do edifício

*Esse encontro ocorreu em 2007.
Texto publicado no blog em 15 de abril, 2010.

domingo, 13 de março de 2011

Hokkaido, ilha do coração

Jorge Adelar Finatto


Eu devia ter entre 10 e 12 anos de idade quando li numa revista uma matéria sobre a ilha de Hokkaido, situada a nordeste do Japão. Fiquei encantado com sua história mais do que milenar, sua cultura, suas paisagens.

Hokkaido passou a ser a minha ilha do coração.

As montanhas de onde se avista o mar azul, a neve, a variedade das flores na primavera, a delicadeza dos diferentes cenários, as pessoas boas e gentis.

Prometi a mim mesmo, na lonjura do menino que eu fui um dia, que não ia morrer sem antes conhecer Hokkaido. De preferência devia morar uns tempos na ilha.

Infelizmente, acabei não realizando esta promessa, pelo menos não até agora, Hokkaido é mais um sonho que ficou pra trás.

O terremoto seguido do tsunami que devastou o Japão na sexta-feira passada, dia 11 de março, me deixou profundamente triste. São milhares as vítimas, que ainda estão por ser contadas. Mais da metade da população de uma cidade está desaparecida. A explosão da central nuclear de Fukushima, 250 km ao norte de Tóquio, é apenas um dos terríveis efeitos desta tragédia. Só o tempo revelará o montante irrecuperável das perdas em vidas humanas. Os prejuízos materiais são incalculáveis.


Não sei das consequências do desastre na minha ilha. De qualquer forma, alimento ainda a esperança de conhecê-la, de caminhar entre suas flores, planícies e montanhas.

Espero, confio e rezo para que nossos irmãos do Japão consigam se reerguer de mais este sinistro acontecimento em sua história, como sempre fizeram no passado.

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Fotos: 1) imagem de Hokkaido. Fonte: 
2) cena do tsunami que assolou o Japão em 11 de março, 2011. Fonte: Reuters, Yomiuri.

sábado, 12 de março de 2011

Calle de los suspiros

Jorge Adelar Finatto



De não ver os olhos estão vazios.
De não escutar os ouvidos estão ocos.

Um dia encontrei no mapa aquela cidade ao sul.
Um lugar que nasceu num tempo muito antigo.
Nela havia uma rua chamada Calle de los suspiros.
Fui até lá como atrás de um segredo.

A rua dos suspiros está povoada de passos perdidos.
Os fantasmas ocupam as casas coloniais.

Quem mora na rua dos suspiros?

A moça da janela olha as buganvílias.
O homem que não sai de casa vê seres incorpóreos nos telhados.
A luz das luminárias é amarelo calmo.

À noite se ouve nas pedras a batida de cascos de cavalos que não existem mais.

A rua dos suspiros é um camafeu pregado no oblívio.

Os ventos se reúnem na calle antes de sair a galope pelo mundo.

A dor envelheceu nesta rua.
Neste lugar, todos sofrem para dentro.

Há um salão de baile desabitado com mesas no escuro.
A orquestra foi embora carregando a música e os casais que dançavam.

A rua dos suspiros habita um retrato caído no tempo.

Quem chora a essa hora na calle deserta?

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Foto: J. Finatto
Imagem de Colonia del Sacramento, Uruguai.
Texto publicado no blog em 18/12/2010.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Celebro a vida que virá

Jorge Adelar Finatto


Un petit espoir très féroce:
c’est moi!
                                             Robert Lalonde

Ainda não nasci
sequer faço parte da paisagem
escuto uns gritos do outro lado: não estou

a sombra é apenas o começo
do previsível caminho
que vai dar na aurora

ainda não nasci
no entanto, é para breve

celebro a vida que virá
rompendo a escuridão
explodindo em alegria
como a primavera depois do inverno

sei onde isso terminará:
flor no extremo do ramo
beleza enchendo o vazio

faço do silêncio
um grande bosque
onde borboletas passeiam
pássaros inventam a claridade
com seu canto

imagina uma faísca que, súbito, paira no ar
uma palavra procurando um oco de boca
uma pequena luz que cresce: sou eu

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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.                                               
Foto: J. Finatto

quarta-feira, 9 de março de 2011

O postigo de Deus

Claudionor, Anacoreta


As manhãs amadurecem no coração do claustro.


Como pode alguém tão pequeno, neste mundo, querer voar tão longe, sonhar tão alto?

Em meio a portulanos e cartapácios, alimento o sonho. A quimera do grande encontro me habita. Ah, as horas passadas na biblioteca do mosteiro, no Contraforte dos Capuchinhos. A cela onde me refugio em torno da mesa, viajando nos livros, no telescópio, no tempo adverso.

Ah, essas travessias desoladas pelo invisível. Aqui onde me quedo a duvidar. As místicas visões que me perseguem nestes Campos de Cima do Esquecimento.

A mirada do infinito, vertigem do pensar. Os mistérios do vir-a-ser. Um dia - eu bem sei - a face de Deus iluminará o postigo. Então tudo mais será farelo de luz caído das estrelas. Por enquanto, o trevamundo. Escuridão do existir.

As urgentes prosopopeias me constroem.

As solitárias caminhadas pela Rua do Silêncio, em Passo dos Ausentes.

Sou prisioneiro do infinito.

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Claudionor, Anacoreta, é místico e astrônomo amador. Vive no Contraforte dos Capuchinhos, em Passo dos Ausentes.
Foto: J. Finatto

segunda-feira, 7 de março de 2011

Maestro Antonio Brasileiro, entre o Guaíba e Ipanema

Jorge Adelar Finatto


O coração do homem que nunca mais voltará resiste em silêncio. O navio avança nas águas do Guaíba em direção à Lagoa dos Patos. Jorge Jobim perde de vista o contorno de Porto Alegre. A figura melancólica recorta-se na memória da tarde de inverno. O grande mar de água doce remete Porto Alegre ao Atlântico. O Rio de Janeiro é o destino. 

O tempo voa longe. No dia do futuro, alguém abre a gaveta. A claridade ilumina velhos papéis do homem que partiu. Eis ali o poeta e sua palavra.

O menino Antonio Carlos teve que reinventar o pai que perdeu aos oito anos. Acariciou suas mãos ausentes ao piano, nas antigas manhãs da casa de Ipanema.

O piano cantou a canção paterna: a nostalgia do sul, a saudade da família, dos amigos, o amor que se perdeu. Era preciso calar o esquecimento.

 &                    &                    &             

Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim nasceu em 25 de janeiro de 1927 no Rio de Janeiro, filho de Nilza Brasileiro de Almeida Jobim, carioca, professora, e de Jorge de Oliveira Jobim, gaúcho de São Gabriel, poeta, bacharel em Direito que teve passagem pela carreira diplomática. Morreu em 8 de dezembro de 1994, nos Estados Unidos, para onde viajara a fim de se operar.

O pequeno Tom veio com os pais a Porto Alegre, onde Nilza e Jorge haviam se casado, para conhecer a família Jobim. Por pouco não ficaram morando nas margens do Guaíba. Porém, falou mais alto o desejo de Nilza de morar no Rio, onde estavam seus familiares. No meio materno foi criado o menino Tom-Tom, apelido dado pela única irmã, Helena Jobim.

A grande perda: Jorge morre aos 47 anos incompletos, deixando os dois filhos em tenra idade.

O guri criou-se entre as montanhas e o mar do Rio de Janeiro. Os longos passeios pela mata e pela praia, as pescarias, o contato com bichos e plantas fizeram nascer o interesse pelas coisas da natureza. Tornou-se não apenas seu profundo conhecedor como defensor.

Entre os professores que teve, está o alemão naturalizado brasileiro Hans-Joachim Koellreutter, que lhe ensinou a transposição das fronteiras que separam a música erudita da popular. Alguns mestres que o inspiraram: Debussy, Bach, Stravinsky, Villa-Lobos.

Amoroso das palavras, Tom Jobim foi um leitor dedicado e atento. Cultivou, entre tantos, João Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Nas letras e textos que escreveu, percebe-se o artesão meticuloso do verbo.

A obra de Tom Jobim constrói-se na esfera da genialidade. Soube como poucos aliar talento a muito trabalho. As composições que nos legou transcendem as ensolaradas cercanias de Ipanema: são patrimônio espiritual da humanidade. Águas de março, Garota de Ipanema, Lígia, Dindi, Samba de uma nota só, Chovendo na roseira, Samba do avião são apenas algumas das inesquecíveis canções que integram a produção do compositor.

Um dos criadores da Bossa Nova, o maestro foi também um dos principais nomes da música mundial no século XX.

A descoberta da obra jobiniana nos leva a um mundo de delicadezas e felicidade.

Amanhã, se tudo der certo, encontraremos o amor. Se a abóbada não ceder sobre nossas cabeças, se a Mata Atlântica - que o maestro tanto amou - não virar jardim calcinado, teremos quem sabe tempo para olhar a paisagem e sentir a vida.

Ouviremos, talvez, o canto do sabiá em setembro.

A música de Antonio Brasileiro nos transporta a esse mundo futuro e antecipa-nos a maravilha.

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Foto: Antonio Carlos Jobim. Fonte: Acervo do Instituto Antonio Carlos Jobim: http://www.jobim.org
Post publicado neste blog em 05 de junho, 2010.

sexta-feira, 4 de março de 2011

O olhar do observador

Jorge Adelar Finatto


No tempo antigo o pessoal tinha mania de botar roupa nova pra tirar retrato. Era um costume. Talvez porque posar para fazer fotografia era um acontecimento especial, então tinha que caprichar.

A arte fotográfica popularizou-se, hoje qualquer pessoa pode sair por aí fazendo suas fotos. O custo razoável das câmaras digitais permite isso. Eu sempre estive perto da máquina fotográfica.


Fotografar é uma coisa que faço com grande prazer. Faz parte da vã tentativa de parar o tempo e aprisionar o transitório. A arte é uma busca de eternidade. Isso de que somos carentes. A brevidade da vida é  algo assustador e não está de acordo com nossa ânsia de permanência, perceptível em quase tudo que fazemos.

Nesta luta entre o mar e o rochedo, cada um faz o que pode. Eu me defendo convivendo, lendo, escrevendo, tirando fotos. São formas de partilhar a vida.

Não existem duas fotografias iguais. Cada uma é única. Podemos fotografar mil vezes o mesmo objeto e o resultado será sempre diferente. A luz, a sombra, o vento, a poeira, a intensidade do movimento da mão, a corrente sanguínea, tudo se altera e nada se repete.


As imagens deste post fazem parte da exposição Retratos do Laje, que estou fazendo no Hotel Laje de Pedra, em Canela.

Como qualquer outra forma de arte, a fotografia só se realiza e se completa no olhar e no sentimento do observador.


Um abraço, bom fim de semana e boas fotografias.
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Fotos: J. Finatto

quarta-feira, 2 de março de 2011

Paul Desmond

Jorge Adelar Finatto


Se você ainda não conhece, procure conhecer. A obra musical do compositor, arranjador e virtuose americano Paul Desmond é puro sentimento. Ele tocou saxofone alto e clarinete em sua breve vida. Se clássico é um autor que alcançou um lugar único e referencial, então este é o caso de Desmond. Límpida, iluminada, original, transcendente. Eis a natureza da sonoridade que o artista criou.

Paul Desmond nasceu em San Francisco, em 25 de novembro de 1924, e morreu em 30 de maio de 1977, em New York, aos 52 anos. Integrou o quarteto de Dave Brubeck entre 1951 e 1967. São antológicos os discos que fez com este grupo. Compôs e gravou com o quarteto, em 1959, a famosa Take Five. Tocou também com Gerry Mulligan, Jim Hall, Modern Jazz Quartet e Chet Baker. Fumante inveterado, morreu de câncer de pulmão após uma temporada de apresentações com Brubeck. O último concerto aconteceu em New York, em fevereiro de 1977.

Um dos nomes do cool jazz, a melodia suave e tocante é uma marca do trabalho do artista. O legado musical de Paul Desmond é um momento de rara beleza na história da música universal.

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Foto: Paul Desmond. Ano: 1954. Autor: Carl Van Vechten. Fonte: Wikipédia.