sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Velas e remos

Jorge Adelar Finatto


Tem livro novo na praça. É um livro diferente porque as páginas ainda estão em branco. No lugar do nome do autor, aparece o teu nome. A história está por ser escrita. As imagens, cores, tipo de papel, formato da letra, colofão, são as nossas escolhas que  os definirão.

Com nossas velas e remos (velis et remis), encontraremos o amanhecer.

Espero que os queridos leitores escrevam belas histórias de vida em  2011. Um tempo de luz, bondade e saúde é o que desejo a todos.

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Foto: J. Finatto. Céu de Passo dos Ausentes, dezembro, 2010.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Bibliotecas

Jorge Adelar Finatto



Tantos livros me assustam
trago uma ignorância milenar
guardada num lugar claro do meu ser
uma ignorância - ou a sabedoria -
do sol às 7 da manhã

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

Foto: J. Finatto

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A carta

Jorge Adelar Finatto


O carteiro trouxe
muitas notícias
menos aquela
que ia me salvar

esperei dias
                 meses
                           anos
por urgentes palavras
que nunca chegaram
e se viessem
mudariam
a biografia

perdi tempo precioso
aguardando a mensagem
que nunca se confirmou

poucas palavras
dizendo o essencial

a carta que não recebi
extraviou-se no mar
na mão do náufrago
distraído

não cumpriu o destino
de salvar do extermínio
a esperança vazada
em silêncio
a juventude que se perdeu

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Poema do livro O Fazedor de Auroras. Instituto Estadual do Livro, Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

domingo, 26 de dezembro de 2010

Convivência e livros na parada de ônibus

Jorge Adelar Finatto


O nosso erro é que temos delegado nossa felicidade para os governantes, para o time de futebol, para os espetáculos, para a loteria, para esse outro que fará por nós as indispensáveis e inadiáveis mudanças que precisamos construir.

 A rua é lugar perigoso.

Os espaços públicos, em Porto Alegre como em outras cidades brasileiras, são sinônimo de insegurança, violência, medo.

As pessoas acautelam-se de sair à rua. Esse território que era de todos passou a ser área de livre circulação de gente que comete toda sorte de atos contrários à vida em sociedade.

Ninguém, em sã consciência, sai à rua sem temer por sua segurança e pela segurança das pessoas que ama. Estar fora de casa, longe do abrigo provisório, significa entrar na zona de conflito. Vivemos lutas encarniçadas, no trânsito e na selva do cotidiano, que ferem e ceifam vidas todos os dias.

A nossa alegria de viver se empobreceu, porque não há viver que não seja conviver.

Antigamente, era comum ocupar as calçadas. As pessoas colocavam cadeiras na frente da porta e aproveitavam para conversar, saber do outro, as crianças brincavam, e todos conviviam. Festas juninas e carnaval aconteciam no meio da rua. Essas cenas urbanas desapareceram.

A cidade, porém, possui reservas de vida.

 Surge um oásis simbólico no corpo ferido da cidade.

Instalou-se em Porto Alegre, por esses dias, o projeto Estante Pública em paradas de ônibus. Criação de artistas do grupo Estúdio Nômade, a ideia foi premiada pela Funarte.*

A parada de ônibus - que costuma atrapalhar o bom humor das pessoas, pela espera em situação de desconforto, pelo movimento atordoante da rua, pela falta de educação dos condutores de veículos - ganha vida com a iniciativa.

Um lugar inóspito, sem atrativo, no qual, normalmente, as pessoas não têm face, transforma-se num recanto interessante. Os livros ali estão ao alcance da mão de quem quiser ler. Poemas, crônicas, contos, novelas e outros incorporam-se através de doações espontâneas.

A inusitada visão dos livros provoca emoção. Faz com que, anônimos passageiros em trânsito, nos sintamos melhor, conversemos, quem sabe até troquemos endereços de e-mail.

Muito além de ser uma pequena biblioteca ao ar livre, sem nenhum tipo de vigilância, a estante pública torna a parada de ônibus um lugar de convivência.

A incomunicabilidade do indivíduo abre-se para a possibilidade do encontro.

Surge um oásis simbólico no corpo ferido da cidade. Pura criatividade.

É preciso investir na convivência humana, numa cidade que vai perdendo gravemente a sua alma.

Penso no quanto precisamos voltar a ocupar calçadas, praças, parques, ruas. No quanto precisamos voltar a conviver e conversar, sem ter vergonha pelo fato de necessitarmos companhia, do olhar de quem está próximo, uma palavra, um sorriso talvez.

As pequenas estantes públicas são enormes em significado. Ensaiam um jeito de mudar as coisas e de sair da escuridão.

O nosso erro é que temos delegado nossa felicidade para os governantes, para o time de futebol, para os espetáculos, para a loteria, para esse outro que fará por nós as indispensáveis e inadiáveis mudanças que precisamos construir.

A cidade pode ser mais bela, mais humana. Ler e conviver faz bem ao coração e à mente.

Espero que permaneça e cresça entre nós essa beleza que é encontrar livros, convivência e consciência em meio à solidão instantânea da parada de ônibus.

A rua é lugar perigoso?

A rua é lugar do bem.

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*Estante Pública: http://estantepublica.com.br/site/sobre-o-projeto/

Foto: vista de Porto Alegre a partir do Guaíba. J.Finatto

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A vida é mesmo amanhecer

Jorge Adelar Finatto


A minha porta nunca se fecha para a dúvida. O que parece definitivo é, quase sempre, e apenas, provisório. As certezas do mundo são verdades passageiras. Estar aberto a mudanças, quando isso é o melhor a fazer, reconsiderar diante  de novas evidências, significa andar pra frente.

Não se trata de mudar ao sabor do vento.  Mas de querer  ser melhor. Como é que um ser transitório, de limitada capacidade de compreensão, pode ter a pretensão de achar que tem a verdade absoluta? Temos a verdade, sim, até que outra mais verdadeira se apresente. A rigidez excessiva não é boa conselheira.

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Agora, por ser Natal e véspera de Ano Novo (fim da linha pra 2010), há esse simbolismo de nascimento, luz e renovação.

Os livros do Novo Testamento têm impressionante significado literário e espiritual. Há força ativa naquelas palavras, além do insuperável valor estético que lhes é inerente. Essa força é capaz de gerar vida (transformação) dentro de nós.

Acredito que todas as histórias, todos os livros, nasceram da Bíblia, de algum dos 66 livros que a compõem. Está tudo lá, revolta, beleza, drama, esperança, luta, justiça. Quantos livros terão a sensualidade, a delicadeza e o trato da palavra de O Cântico de Salomão?

Cristo está acima das religiões (organizações humanas e, como tal, cheias de falhas) e não é monopólio de nenhuma delas.

Que cada um aproveite da melhor maneira esse período e que a bondade, a justiça e o perdão sejam mais que simples palavras em nossas vidas.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Conversa no scriptorium: primeiro ano do blog

Jorge Adelar Finatto


Não alimento a ilusão do devorador de livros. Sou um leitor calmo e persistente. Nem me atenho demasiado ao cânone. Já li muita bula de remédio e texto de pacote de maisena. Pequenas notícias de jornal podem guardar preciosidades. Descobri frases e versos memoráveis em livros considerados menores. Li grandes embromações de autores famosos.

O lugar onde me sinto menos sozinho, nesse velho mundo de Deus, é o território dos livros. Pode ser a biblioteca, a praça, o escritório, o ônibus, metrô, avião ou trem. Muita vida há nas páginas impressas. Uma existência de tinta e papel. Sim, agora chegou também o livro eletrônico. Não digo que dessa água não beberei.

Corações solitários e livros são bons companheiros. Se além do livro a criatura tiver o luxo de um abraço, então é o passeio no paraíso.

Essas anotações vêm à luz do dia bonito que faz hoje aqui. Esse respirar claro. Na rua em frente o flamboyant é todo flor. Nunca nos falte.

Quero compartilhar com você esse dia luminoso. E agradecer o primeiro ano de convivência no blog que hoje se completa.

Uma joaninha marrom com bolinhas brancas resolveu caminhar sobre o teclado. O mínimo que posso fazer diante da doce visita é desligar a máquina.

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Ilustração: Scriptorium, Monk at work. Autor: William Blades (1824-1890). Domínio público. Fonte: Wikipédia.

Livro Europeu do Ano para Roberto Saviano e Sofi Oksanen



O italiano Roberto Saviano foi distinguido com o Prémio Livro Europeu do Ano, na categoria de não ficção, com A Beleza e o Inferno, e a finlandesa Sofi Oksanen venceu na de ficção, com o romance Purge. O júri, presidido pelo escritor e realizador alemão Volker Schlöndorff, decidiu premiar dois livros marcados pela violência que se exerce no norte e no sul do continente europeu. Purge (Puhdistus, em finlandês), editado pela Stock e já distinguido com o Prémio Femina Étranger 2010, relata a violência de que foram vítimas as mulheres estónias durante a ocupação soviética. Filha de mãe estónia e pai finlandês, Sofi Oksanen tem 32 anos e venceu em 2008, ano em que foi publicado o seu romance na Finlândia, os três maiores prémios literários do país, entre os quais o equivalente ao francês Goncourt. O Prémio Livro Europeu do Ano é organizado pela União Europeia e tem como objectivo promover os valores europeus e contribuir para uma melhor compreensão dos cidadãos da União Europeia como entidade cultural. (fonte: Público)

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Publicado por Casa Fernando Pessoa, Lisboa, em 13/12/2010, às 15:39, no seu blog: http://mundopessoa.blogs.sapo.pt/
A grafia é a de Portugal.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Uma gaivota sonha

Jorge Adelar Finatto


A memória da nave se dissolve no ar.
 
Uma gaivota branca e sonhadora pousa no alto do barco à espera da última viagem.

O ofício de esquecer atravessa as fendas de aço.  A embarcação aderna como um peixe que perdeu as asas.

É duro ser capitão de nau tão desolada.

A cor do tempo, marcas de ferrugem. As escotilhas rotas miram o impossível horizonte.

O colorido infantil recorda felizes partidas ao vento.  Imóvel paisagem nas janelas caladas.

O espectro de Ulisses caminha pelo convés.

Há um barco abandonado no cais.

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Foto: J. Finatto. Barco fantasma com gaivota a bordo. Rio Guaíba, Porto Alegre.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Calle de los suspiros

Jorge Adelar Finatto


De não ver os olhos estão vazios.
De não escutar os ouvidos estão ocos.

Um dia encontrei no mapa aquela cidade ao sul.
Nela havia uma rua chamada Calle de los Suspiros.
Um lugar que nasceu num tempo muito velho.

A rua dos suspiros está povoada de passos perdidos.
Os fantasmas ocupam as casas coloniais.
Quem mora na rua dos suspiros?

A moça na janela olha as buganvílias.
O homem que não sai de casa vê seres incorpóreos nos telhados.
A luz das luminárias é amarelo calmo.

À noite se ouve nas pedras a batida de cascos de cavalos que não existem mais.

A rua dos suspiros é um camafeu pregado na alma do tempo.

Os ventos se reúnem na calle antes de sair a galope pelo mundo.

A dor envelheceu nesta rua.
Neste lugar, todos sofrem pra dentro.

Há um salão de baile desabitado com mesas no escuro.
A orquestra foi embora carregando a música e os casais que dançavam.

A rua dos suspiros habita um retrato no oblívio.

Quem chora a essa hora na calle deserta?


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Foto: J. Finatto
Imagem de Colonia del Sacramento, Uruguai.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Cavalo-marinho

Jorge Adelar Finatto


Enquanto meu filho espera
no útero marinho da mãe
eu escrevo um poema
que ninguém lê
entre peixinhos e caravelas

invento uma alegria simples
um jeito novo de viver
e de querer bem

e vou até a janela
até a estrela mais próxima
onde algum homem há de existir
pra repartir comigo esta ternura
enquanto meu filho espera

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

Imagem: Hippocampus Kuda. Autor: Robbie Cada. Obra constituída pelo autor em domínio público. Fonte: Wikipédia.

O menino do poema, que na época esperava no útero materno entre peixinhos e caravelas, hoje completa 29 anos. Ao Lorenzo, pois, renovo estes velhos versos, com a mesma emoção daquele jovem pai  encantado pela chegada ao mundo do primeiro filho.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Partilha do estar no mundo

Jorge Adelar Finatto


As palavras viajam em torno da essência das coisas. Como num velho barco que se aproxima da ilha, e adormece na praia depois de longas voltas no seu entorno, o poeta navega no poema. As palavras tangenciam, quase tocam, mas seu destino é ficar ao largo. Às vezes mais perto, às vezes mais longe do cais. Nunca alcançamos a expressão exata e ideal daquilo que queremos comunicar. Trabalhar com palavras é deparar-se com a impossibilidade da criação perfeita, a partir dos limites da condição humana, da cognição e do sentimento incompletos que temos em relação ao mundo e a nós mesmos. Somos imperfeitos e nossa percepção e nossa fala também o são. Somos parte de um mistério infinitamente maior do que  o cotidiano. Por isso escrevemos tanto e dizemos tão pouco. Por isso falamos durante uma vida e o resultado é tão escasso.

O que não nos impede de empregar todos os esforços na busca da expressão luminosa.

 Se com palavras é difícil viver, sem elas estaríamos condenados à escuridão da caverna.

Cada palavra clara é um fósforo que se acende no breu. Uma maneira de dizer sim à partilha do estar no mundo.

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Foto: J. Finatto

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O violino perdido

Jorge Adelar Finatto


O sentimento que une o músico ao seu instrumento é de puro amor. Um amor incondicional que não conhece rupturas. Nem chuva, nem sol, nem vento. Quanto mais ao desamparo estiver o artista no mundo, tanto maior será o afeto que terá pelo companheiro. Já vi homens e mulheres dormindo em bancos de estações de trem, aeroportos e praças públicas, tendo como única e fiel companhia o seu instrumento. A música é a grande verdade de suas vidas.

O alemão Conrad Muck, 55 anos, é primeiro-violino do Quarteto Petersen, um dos mais importantes conjuntos de cordas da atualidade. Ao retornar de uma viagem à Ásia,  esqueceu seu violino no trem que o levou do aeroporto até a Gare Central de Munique. Construído na Itália em 1748, está avaliado em 1 milhão de euros. O músico sentiu-se mal assim que se deu conta, precisou de assistência médica. Tão logo avisada, a polícia saiu à procura do objeto, que foi localizado no mesmo lugar onde fora deixado. Durante uma hora violinista e violino (foto abaixo) ficaram longe um do outro, uma pequena eternidade.


A violinista Min-Jin Kym (foto ao alto), de origem sul-coreana, nascida em 1978, passou por dor muito maior no início deste mês. Comia um sanduíche num café ao lado da gare londrina de Euston, quando teve seu Stradivarius (de 1696) furtado. O fato ocorreu enquanto foi ao caixa pagar. Ao retornar, não estava mais lá. O violino tem valor estimado em 1,44 milhão de euros. Junto com ele foram subtraídos dois arcos, avaliados em 80 mil euros. A seguradora da artista está oferecendo 18 mil euros para quem fornecer informações que levem à recuperação do valioso instrumento.

Aqui em Passo dos Ausentes estamos torcendo muito para que a bela instrumentista reencontre logo seu Stradivarius,  raro integrante da família dos cerca de mil violinos  fabricados por Antonio Stradivari, em Cremona, na Itália, considerados os melhores do mundo por sua sonoridade  e qualidade únicas.

Don Sigofredo de Alcantis, o maior filósofo vivo de nossa pequena cidade, observa que, se vivo fosse, o célebre detetive inglês Sherlock Holmes, exímio violinista, certamente sairia da ficção onde viveu para recuperar o instrumento e apagar, desta forma, a tristeza do olhar de Min-Jin.*

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Texto escrito com base em notícia publicada no jornal Diário de Notícias, de Lisboa, edição de 10/12/10, e complementado com pesquisa do blog.
Consulte o artigo completo em: http://mail.terra.com.br/95trr/parse.php?redirect=aHR0cDovL2RuLnNhcG8ucHQvaW5pY2lvL2FydGVzL2ludGVyaW9yLmFzcHg/Y29udGVudF9pZD0xNzMxMzc2JnNlY2Nhbz1tJWZhc2ljYQ==

Fotos: Min-Jin Kym (Diário de Notícias). Violino italiano de Conrad Muck (AFP). Violino Stradivarius: site www.stradivariusviolins.org
 

domingo, 12 de dezembro de 2010

A fala de Pedrolino

Jorge Adelar Finatto


Pertenço à ordem dos amorosos sem camélia. Os que amaram e se pensaram amados sem o ser. Os quase. Os que saíram cedo da festa.

A dama. Meu coração perdido no infinito tabuleiro. O mundo é lugar de barbaridades. Dor, dores.

Chamava-se Alberta, Alberta de Montecalvino. Pertencia à nobre estirpe dos Albertos, de Passo dos Ausentes. Foi quando a vida aconteceu.

O sol brilhou entre as nuvens. Iluminou a escuridão da vida minha. O que eu fui.

Estava na janela da mansarda, como sempre, olhando a vida passar. Então ela atravessou a rua. Trazia a sombrinha vermelha. Olhou pra mim e sorriu. Rasgou minha solidão.

Bailei no ar como folha de plátano no outono, lentamente fui cair a seus pés. Desci correndo, pulando os degraus da escada. Segui o inefável perfume. Enfim, alcancei a dama.

Perguntei se podia fazê-la feliz. Sim.

As iluminações. Passamos a frequentar a Praça da Ausência, nas tardes amarelas daquele outono. Um dia peguei-lhe na mão. Meu coração cavalo louco. Não dormi durante três noites.

Alberta meu sentimento. Camafeu cravado na minha alma. Ela me deu o lencinho branco perfumado, a letra A bordada em lilás. Guardei-o num lugar secreto, bem no fundo de mim.

Aqueles eram dias de ora-veja.

A dama, o tabuleiro, eu nunca aprendi a jogar. Não canto outros amores, que não tive, e, se os tivesse, silenciaria.

Então Arlequim apareceu. Os ódios pularam dentro de mim. Arlequim e seus guizos, seus versos de algibeira, sua palavra sem valia, seu alaúde. Arlequim disse coisas, deitou falas, expandiu-se em canções. Antes calasse. Bazófias.

Arlequim se espalha no mundo. Faz ares. Blasona. Explorador de musas, ladrão de amores. Arrebatou o coração de Alberta, os suspiros, até o corpo de violino que eu nunca toquei.

Eu calado sonhador do fim do mundo. Os devaneios da alma. Voltei só pra mansarda. Nem acreditei.

Quem me visse, a face esculpida da dor. Veio o inverno. Invernos.

O vero solitário da rua triste. O que olha a vida da janela. O que foi quase feliz.

O sem camélia.
 
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Imagem: Pierrô (Gilles). Autor: Antoine Watteau (1684-1721). Museu do Louvre, Paris. Fonte: Wikipédia.
Maiores detalhes sobre o drama de Pedrolino em A fala do Arlequim, post de 30/10/10, e Alberta de Montecalvino, post de 8/11/10.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A casa do anjo

Jorge Adelar Finatto


Antes de começar a chover, arredaram uns móveis bem pesados lá no céu. Um barulho espesso e fundo me fez pensar que talvez fosse a mudança de um anjo. Um anjo bom e humano com suas asas de plumas perfumadas, levando seu chapéu, suas estantes de livros, bicicleta, cama, armários.

Um anjo, quando se muda, deve ter muita coisa pra levar com ele: cartapácios com registros, caderno de milagres, álbuns de fotografia das pessoas por quem tem cuidados, pinturas com paisagens dos campos do Senhor.

As roupas do anjo devem ser brancas como nuvem, inclusive as botas.

Gostava que o meu anjo da guarda viesse mais pra perto de mim.

Meu coração anda necessitado de amigo com sabedoria e consolação. Ele podia até ficar morando aqui comigo. Se quisesse, podia subir no telhado, sentar perto da chaminé, lugar calmo e iluminado, de onde se tem uma boa vista do mundo.

O meu anjo da guarda. Há de expulsar a solidão que toma assento na sala. Nunca mais nenhum mal vai me acontecer. Quando de noite o medo se acercar de mim, o anjo me dará sua mão forte. Então eu dormirei como um menino. E vou sonhar outra vez.

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Foto: Colonia del Sacramento. Uruguai. J. Finatto

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O astrônomo do farelo

Jorge Adelar Finatto


O astrônomo do farelo procura a estrela perdida.

Entre o sagrado e o profano da vida pequena, ele busca beleza nas coisas mais simples. Como o explorador de cavernas que, na escuridão e na umidade,  tateia a fresta de luz que o conduz à primeira claridade do mundo.

Um dia - sempre tem um dia - o astrônomo do farelo perdeu a  sua estrela. Era uma pequena estrela azul e brilhante. Era uma estrela risonha, íntima e calma que habitava sua alma.

Quando ele a tocava com a ponta dos dedos, muito suavemente, ouvia a doce e misteriosa música que vinha do seu interior. Um dia, de repente, ela desapareceu.

Por ela, ele se tornou um homem calado e triste.  Um oco cresceu no seu coração. Ele ficou assim, torto no mundo. Passa as noites olhando o céu. Um homem ferido a bordo de uma louca procura.

O homem que perdeu a sua estrela.
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Foto: J. Finatto
Publicado no blog em 1º/8/10

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A travessia

Jorge Adelar Finatto

No fim da tarde, saí com um livro debaixo do braço.  Em direção ao café da esquina (todos os cafés do planeta ficam numa esquina). Ali  tem sempre uma mesa perto da janela, um cheiro de café passado na hora, uma vista bucólica da praça. Mas pra chegar lá é preciso vencer três tristes avenidas. Por elas voam doidos e impiedosos motoristas. Quando cheguei na beira da mais difícil, na saída de uma insana rótula, parou uma caminhonete com duas mulheres. Fizeram sinal para atravessar. Fiquei atordoado. Será isso possível? O normal é ser maltratado, humilhado, quando não atropelado, friamente, nessa vida de pedestre. Não sabia o que fazer. E se, quando estiver no meio da via, o veículo avançar ferozmente na minha direção, tendo eu de correr em desespero até cair? E se, depois disso, as moças fizerem ainda o famoso sinal com o dedo médio ereto, como vou me sentir? Indefeso embora, resolvi cumprir o fado de patético caminhante. Para meu espanto,  elas aguardaram gentilmente a travessia. Naquele momento de  pura epifania, pensei que nem tudo está perdido, o ser humano tem um futuro pela frente, preciso acreditar mais nas pessoas, etc., etc. Pedestre é um ser não apenas acuado como  deveras sentimental.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Monteiro Lobato e Tia Nastácia: a questão racial na literatura

Jorge Adelar Finatto


Fazer um julgamento de Monteiro Lobato como escritor racista, por conta de certas linhas infelizes que escreveu, é injusto com o homem que denunciou resíduos do sistema escravocrata no Brasil do início do século XX, em páginas memoráveis como no conto Negrinha. Se em alguns textos cedeu à tentação racista da época, em outros mostrou-se revoltado contra o racismo e suas mazelas.Talvez a melhor visão seja reconhecer as contradições do autor, procurando examinar o conjunto de sua obra.  O legado literário do escritor, nele incluída a beleza que é Tia Nastácia, merece essa consideração.


As pessoas valem pelo que trazem dentro de si, nos seus valores, sentimentos, no respeito aos outros. Reduzir alguém a preconceitos sociais, raciais e culturais é inaceitável. Representa a coisificação do indivíduo. O ser humano é muito mais do que isso.  

A consciência da sociedade brasileira evoluiu nas últimas décadas. Esse avanço se traduz no ordenamento jurídico, que tem na Constituição Federal de 1988 a mais alta expressão dessas conquistas. O estado democrático, com suas garantias legais, é a melhor arma contra a intolerância e as violações de direito.

Instalou-se, recentemente, um debate público a respeito do Parecer 015/2010, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. O documento originou-se de denúncia feita por um cidadão de Brasília em relação ao livro Caçadas de Pedrinho (1933), obra de Monteiro Lobato (1882-1948). O requerente, funcionário público que faz mestrado em Educação, apontou situações de preconceito e estereotipia racial no livro, envolvendo o negro e o universo africano, a partir de referências à personagem negra Tia Nastácia e a animais como urubu e macaco. 

O parecer do CNE está na internet. Após análise do caso,  o órgão concluiu, entre outros aspectos, pela necessidade de formar professores capazes de lidar pedagógica e criticamente com obras consideradas clássicas, presentes nas bibliotecas das escolas, que apresentam estereótipos raciais. Recomendou que não sejam selecionados livros para o Programa Nacional Biblioteca da Escola que contenham preconceito ou estereótipo racial. Determinou que, se alguma obra selecionada para o PNBE contiver preconceito, será exigido da editora que insira, na apresentação, nota explicativa e informações sobre estudos relativos à presença de estereótipos raciais na literatura. Essa providência deverá ser adotada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho. Além disso, o parecer reforçou a importância de práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial, ressaltando o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas. Devido às fortes manifestações que provocou, o documento será reexaminado pelo CNE em dezembro.

Algumas indagações surgem como matéria de reflexão.

Monteiro Lobato, pelo que escreveu nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, é um escritor racista? A resposta é clara: não. Pelo contrário, é um dos autores mais identificados com a cultura brasileira e sua diversidade. Caçadas de Pedrinho, com a turma do Sítio, é uma bela obra, Tia Nastácia é uma criatura adorável, mulher negra, espiritualmente rica, bondosa, cheia de histórias e uma espécie de guardiã da sabedoria popular.

A outra pergunta: em trechos do livro podem ser identificadas expressões que denotam estereótipo ou preconceito racial? A resposta também é evidente: sim.

Vejamos algumas passagens do livro Caçadas de Pedrinho relacionadas à Tia Nastácia:

"Emília repetiu-a, terminando assim:
- É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém - nem Tia Nastácia, que tem carne preta."

"resmungou a preta, pendurando o beiço."

"Sim, era o único jeito - e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros."

"E você, pretura?" 

"Desmaio de negra velha é dos mais rijos."

Ao longo da obra, há diversas referências a Tia Nastácia como negra e preta. São expressões com carga de preconceito sobre a cor da pele. O mesmo tratamento não é dispensado aos outros personagens. 

Apesar de conter essa linguagem que hoje não mais se aceita, o conteúdo de Caçadas de Pedrinho não é racista, porque não investe contra a etnia de origem africana, não desmerece  a pessoa negra além dessas expressões, nem lhe impõe tratamento infamante, discriminatório ou desumano.

As expressões são, antes, fruto da época e do meio. Lobato não ficou imune. No Brasil com fortes traços escravistas do início do século XX, o tratamento preconceituoso era uma realidade, infelizmente. Caçadas de Pedrinho tem origem no livro A caçada da onça, de 1924. O autor decidiu ampliar a história que foi publicada em 1933 com o novo título.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Um modo silencioso

Jorge Adelar Finatto



O poema é um modo
silencioso
de ser
e dizer
que vim ao mundo
me despedir



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Poema do livro O Habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998. Esses versos foram dedicados ao poeta e irmão Heitor Saldanha.

Foto: Passo dos Ausentes. J. Finatto.

Retratos

Jorge Adelar Finatto



Quem passar por esses dias em Gramado está convidado a fazer uma visita à minha exposição Retratos, que acontece na Cafeteria Bello Gusto, Av. Borges de Medeiros, 2193, centro da cidade. Imagens de Passo dos Ausentes estão lá, pra quem quiser ver, até final de dezembro. A entrada é no amor.


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Foto da exposição: J. Finatto

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Ruminante claro

Jorge Adelar Finatto


Deus me deu esse dia. Me dei a tarde de presente e saí por aí. Nunca vi tão rara composição de cores. A cidade nessa época é um quadro impressionista. Olho as coisas aqui debaixo, tristeza de não ser pássaro. É o que se vê:  luminosa aquarela: verdes, azuis, vermelhos dialogam com rosas, amarelos, brancos, ocres. No itinerário de colinas entre os bairros Moinhos de Vento e Bela Vista, há muita ladeira pra vencer. Jacarandás nas calçadas, buganvílias nos muros. Hibiscos, sim, hibiscos. Do bosque de um desmoronado casarão, escuto velhas conversas de fim de tarde, sob  a invisível pérgula. Os ausentes bebem suco de fruta há pouco colhida. Não vou falar agora do excesso de carros na rua,  do ruído, da fumaça, da fúria dos motoristas. Ninguém vai atropelar esse momento. Prossigo. Lilases flores caídas brilham no chão. Sou parte da aquarela da tarde que declina e nunca mais voltará. Habito o interior dessa misteriosa obra de arte. Do meu jeito: lento, ruminante, claro.
 
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Foto: J.Finatto

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Meus amigos

Jorge Adelar Finatto


Não esqueçam
de me visitar
nas noites
de inverno
quando o medo
cobra caro
e as feridas
não deixam mentir

insolúvel jogo
de espelhos
entre mim
e o que fui

ando bêbado
pela casa
meu coração
é operário
desempregado
com filho pra criar
mulher feia
sem crédito no armazém

me enrosco
em invenções
inúteis
pra repartir contigo
um espaço de ternura

sinto umas
coisas estranhas
caminharem atrás de mim
um cano de fuzil
um casal de velhos famintos
um câncer
e me desagrada não ser
como certos fantasmas

convoco o
silêncio e
suas raízes

inauguro a
manhã

não, eu não sou
uma estrela
um rio
um barco
nada se compara
ao que sinto

preciso todos
ao redor da mesa
principalmente
os desaparecidos
como certos crepúsculos
que a gente vê
fogem e nunca mais

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

Foto: J. Finatto

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Neblinense

Farandolino Brouillon

 
Quando hoje a neblina cercou a casa, tudo ficou  branco e deserto como um labirinto no gelo. Os seres e as coisas desapareceram. Silenciosamente fui até a janela. As silhuetas, de modo intermitente, surgiam e submergiam na névoa. Lembrei de quanta gente fugiu do retrato. Nem faz tanto tempo. Não sei mais direito que lugar é esse. Até há pouco estavam aqui, falando, gesticulando, rindo, sofrendo, contando histórias, reclamando, dando a mão. Certas ruas e esquinas moram dentro de mim, certas portas, soltas no espaço, me acenam, certas praças estão abandonadas.  Eu viajo no trem noturno que atravessa  os Campos de Cima do Esquecimento nesse absurdo itinerário. As cartas não escritas estão na mão do carteiro que se extraviou na bruma. Hoje, quando a neblina chegou de repente, envolvendo a casa, perdi meu rosto. Fiquei cego. Havia uma paisagem invisível lá fora e outra em mim. Fui andar no jardim à procura de quem sou. Muitos partiram. Estão todos cobertos, profundamente, em negras nuvens de seda.  Sou habitante de um continente de fantasmas.

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Foto: J. Finatto

domingo, 28 de novembro de 2010

Basquiat, anjo caído, expõe em Paris

Jorge Adelar Finatto


Saído do mundo das ruas, onde pintava grafites,
o artista conquistou as galerias e museus com sua arte.

Alguma coisa no traço de Jean-Michel Basquiat prende o olhar. Os grafites, em geral, cansam e entediam. Parece que só pioram a sensação de solidão e isolamento das grandes cidades. Raramente dizem algo poeticamente revelador. Mas sou teimoso. Sou capaz de parar na rua e ficar diante da parede ou muro, tentando entender e sentir o que é aquilo. Costumo ser vencido pelo vazio.

O grafite atingiu status de arte nos últimos anos graças ao talento de alguns desses artistas de rua.  Notadamente o grafite figurativo, diferente da pichação e daquilo que se limita a simples inscrição de letras ou números. Espaços públicos passaram a ser destinados a esses criadores. Quer dizer, cada vez menos a atividade criativa do grafiteiro é vista como um caso de polícia. Os próprios artistas estão conversando com a turma da riscalhada, pedindo que não estraguem esses ambientes duramente conquistados. 


Quando vi pela primeira vez as pinturas de Basquiat, tentei, depois dos cinco minutos iniciais, desviar o olhar e seguir meu caminho, mas não consegui. Comecei a percorrer a trilha da composição em cada quadro. Ali estava a visão de mundo elaborada esteticamente, com sua origem afro-americana, impregnada com áspero espírito urbano e uma busca intensa de liberdade e denúncia. São grafites figurativos, agora  fora das ruas, nas galerias, com cores e sentidos fortes.

Jean-Michel nasceu no Brooklyn, Nova Yorque, em 22 de dezembro de 1960, e morreu aos 27 anos, em 12 de agosto de 1988, na mesma cidade. Filho de pai haitiano e de mãe filha de porto-riquenhos, tornou-se reconhecido, primeiro, como grafiteiro e, depois, como artista plástico. Ele foi um dos principais responsáveis pelo reconhecimento do grafite como manifestação artística.




Por volta dos 17 anos, começou a pintar em prédios abandonados de Manhattan. A assinatura com que então se identificava era “Samo” ou “Samo shit” (same old shit,  sempre a mesma merda, ou a mesma merda de sempre). Num período, depois de sair da casa dos pais, teve de vender camisetas e postais na rua pra sobreviver. O trabalho de Basquiat chamou a atenção e começou a ser comentado, ganhando rapidamente destaque nos meios de comunicação. Passou a pintar quadros e expor. Constitui-se num raro caso de artista que cedo alcança reconhecimento. Formou, também, uma banda com conhecidos e participou de, pelo menos, dois filmes. Em 1982, teve um namoro com uma cantora pouco conhecida na época, Madonna. Fez parcerias com Andy Warhol.

Uma vida intensa e profissionalmente exitosa, com enorme exposição midiática, não o livrou do convívio com drogas como heroína e cocaína.

Morreu de overdose, no auge da carreira, em seu estúdio.


A obra de Basquiat é reconhecida e valorizada internacionalmente. Não se trata apenas de um caso de marketing. Há muita criação e valor poético nesses traços inquietos, vibrantes, agressivos, questionadores. A expressão do artista atingiu uma identidade que a caracteriza como única.

Olhemos as pinturas de Basquiat. Acaso não haverá no pulso febril e explosivo algo que o aproxima de irmãos mais velhos como Tintoretto e Van Gogh? Essas cores e figuras nos remetem a momentos de emoção, beleza e reflexão.

Basquiat foi um anjo caído na Terra, que muito cedo deixou o mundo. Fallen Angel, título da pintura azul acima.

O Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris está realizando uma exposição com a obra de Basquiat, desde outubro passado, que se estenderá até final de janeiro de 2011. Filas de quase 500 metros formam-se para a visitação. O interesse das pessoas se explica por se tratar de uma grata descoberta no território atualmente rarefeito de valores das artes plásticas.

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Imagens: foto e pinturas de Basquiat. Fonte: site oficial do artista: basquiat.com

© The Estate of Jean-Michel Basquiat / AUTVIS, 2010 

English text:

http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/03/coming-from-streets-where-he-painted.html

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A sinistra sinfonia

Lorenzo Schissi Finatto


A atual onda de violência que tomou conta da cidade do Rio de Janeiro assusta. Até o momento, em 5 dias de conflito, aproximadamente 40 mortes já foram contabilizadas pelos órgãos oficiais, mas essa conta ainda deve crescer, e é imensa se considerarmos apenas os anos próximos que a precedem.

Pra quem mora na cidade, a sensação é de guerra declarada. Uma espécie de Bagdá brasileira que aguarda pelas próximas bombas, os próximos veículos destruídos, os próximos territórios ocupados. Se aqui não há o fanático extremismo religioso, sobram extremos de outras ordens. Qual a razão de tanta brutalidade?

É certo que as verdadeiras razões da barbárie merecem estudo minucioso para que se chegue o mais próximo possível das raízes do problema. Todavia, motivos como a má distribuição da renda, a falta de oportunidades aos jovens – especialmente aqueles das comunidades mais carentes –, o alto lucro de tão poucos (instituições financeiras, por exemplo), em detrimento de tantos, apesar de repetidos à exaustão, certamente explicam em parte o triste quadro da realidade brasileira.

Diante de tudo isso, o fascínio da promessa de ascensão social “fácil” feita pelo tráfico de drogas atrai a muitos. Não sou dos que creem que a pobreza e a falta de oportunidades justificam a criminalidade, a conta não é tão simples de ser feita. Fosse assim, o número de criminosos em nosso país saltaria insuportavelmente. A verdade é que a imensa maioria da população humilde é de gente honesta e trabalhadora. Por outro lado, a corrupção geralmente ocorre entre as camadas mais altas e instruídas da população. Difícil exigir dos jovens marginalizados e fragilizados pela própria inoperância do Estado e pela indiferença de parte da sociedade uma atitude moral que não existe em alguns dos componentes de destaque da estrutura dos poderes da República, conforme a imprensa cotidianamente noticia.

Ao assistirmos a tudo pelos meios de comunicação (as câmeras de televisão, em especial, fazem o máximo para mostrar os detalhes do “conflito”), percebemos o quanto o momento é assustador. Por outro lado, talvez seja a hora de debater seriamente as raízes do problema da drogadição em nossa sociedade. Se existe o tráfico, é porque existe um mercado consumidor, principalmente entre as classes média e alta da população. E por que a vida dessa gente se tornou tão insuportável a ponto de necessitarem profundamente da droga para vivenciarem momentos de esquecimento e fuga?

Causa estranheza a pressa com que as autoridades vêm a público para garantir (não se sabe com base em que mágicos poderes) que a realização das olimpíadas e da copa do mundo não está ameaçada. Não seria melhor utilizar os incontáveis bilhões desses eventos (relevantes, sem dúvida, mas não nesse momento) na construção de hospitais, creches, centros comunitários e culturais, escolas, postos de saúde, urbanização de comunidades carentes, presídios etc.? As autoridades se apressam em confirmar os dois megaeventos esportivos. Enquanto isso, nosso Titanic afunda, após chocar-se contra o gigantesco iceberg da violência e do abandono. Mas a orquestra, inútil, não para de tocar a triste e sinistra sinfonia.

O Rio de Janeiro e o Brasil merecem mais do que isso.
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Lorenzo Schissi Finatto é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais no Rio Grande do Sul.
Foto: favela no Rio de Janeiro. Autoria: AP. Fonte: noticias.terra.com.br

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Mulher fazendo café

Jorge Adelar Finatto


A parede é espessa e fria. O tempo é lento e monótono como um carrossel. Ela escreve coisas e faz desenhos na caverna moderna onde vive. Em volta do fogão, ela esquenta água e aquece as mãos.  Às vezes, penetra um vazio na alma, dá vertigem. Então ela bate com o nó dos dedos na parede, como se houvesse uma porta, alguma secreta passagem, como se existisse alguém do outro lado. Precisa acreditar que existe vida. Vida humana, vivente e cálida. Uma pessoa como ela entre quatro paredes, quatro décadas, um coração partido em fatias, como o bolo caseiro sobre a mesa. Nuvens de signos saem do teclado pelo espaço, mas é um grito silencioso. Talvez exista alguém do outro lado, que também espere como ela, e sinta frio, e queira em ir embora dessa cidade deserta, fugir disso tudo, abandonar o mar morto das cavernas urbanas. Enquanto pensa essas coisas, ela prepara o café da noite.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

McCartney

Jorge Adelar Finatto


Nunca fui fã incondicional dos Beatles. A minha relação com o grupo foi sempre discreta (motivo de preocupação deles, claro). Não é uma questão de querer ser diferente, mas de  gosto. Aprecio diversas músicas, mas não tenho nenhum disco. Um perfeito ser das cavernas. Mas nada como um dia depois do outro. Acompanhei a passagem de Paul McCartney  (68 anos) por Porto Alegre através da imprensa (até porque não se falava noutra coisa). Posso dizer que tenho novas e boas razões para admirá-lo. A começar pelo esforço que fez em comunicar-se em português (muito bem, por sinal) com o público presente ao seu show. Vejo nisso uma manifestação de consideração com as pessoas, tão fãs quanto qualquer súdito da rainha. Admirável a sinceridade nas entrevistas, fazendo questão de mostrar-se como a pessoa que é, sem mitologia. Falou sobre seu vegetarianismo, seus filhos, sua carreira. Tratou todo mundo com gentileza, mas sem falsas intimidades. Cantou como se a voz estivesse ainda nos anos 1960. Foi simpático a ponto de, em pleno estádio lotado, repetir com a telúrica assistência "ah, eu sou gaúcho". Uma lição nesses tempos em que o planeta aderna com o peso de tantos egos inflados. Portanto, passei a gostar do cara. Como é bom poder dizer isso. Agora só falta o disco. Antes tarde do que nunca.

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Foto: Paul McCartney, Inglaterra, 2010. Fonte: Wikipédia. Autor: Oliver Gill.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Negrinha

Jorge Finatto


Li recentemente um livro que vale a pena. O título é Negrinha e seu autor é o francês Jean-Christophe Camus (filho de pai francês e mãe brasileira). A obra é ilustrada com belas aquarelas do também francês Olivier Tallec. É uma história em quadrinhos, lançada em 2009, o Ano da França no Brasil. Trata da vida cotidiana de uma menina de 13 anos, que vive no Rio de Janeiro e começa a entrar em contato com a realidade de sua família e sua cidade, um resumo de seu país. 

Aí nesse cenário há a beleza deslumbrante do Rio, com sua zona sul, seu mar, suas montanhas, sua gente bonita, seus personagens, como o vendedor de amendoim, o porteiro do edifício, os meninos jogando futebol, as pessoas na rua.

Mas ela também descobre a dureza da vida na favela e, nela,  os laços de afeto, as dificuldades de viver, a alegria simples, a comunhão através do samba. Nesta, Cartola recebe uma menção especial, justa homenagem. O problema racial, com sua carga de preconceito, violência e injustiça, é abordado com realismo e sensibilidade.

A apresentação de Gilberto Gil é preciosa.

Um livro belo e delicado que faz bem a brasileiros, franceses e seres humanos em geral.

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Negrinha. Jean-Christophe Camus (texto) e Olivier Tallec (aquarelas), 104 páginas. Tradução de Fernanda Abreu. Desiderata, Rio de Janeiro, 2009.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Um sopro de claridade

Jorge Adelar Finatto


Um resto de luz ilumina o pinheiro. Essa é uma das visões que se tem do Vale do Olhar, em Passo dos Ausentes.  A vista é de uma janela que não se apaga nunca, a do poeta Farandolino Brouillon. As noites de frio e neblina (isto é,  as noites do ano inteiro nessa cidade que só conhece uma estação, o inverno) sempre o encontram trabalhando na antiquíssima escrivaninha de peroba rósea. O bardo só se recolhe à cama depois que a manhã se anuncia no recorte das montanhas. Dizem que Farandolino sofre de alta solidão e falta de mulher pra dividir a vida, por isso não dorme à noite.

Don Sigofredo de Alcantis, filósofo, guardião da nossa memória e presidente vitalício da Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Geológica e Astronômica de Passo dos Ausentes, tem, como sempre, seu parecer, que assinou na tarde de domingo numa conversa com seus discípulos (nós), na Praça da Ausência:

- A mulher é talvez o único caminho que um homem tem de entrar no paraíso. A passagem luminosa. Farandolino nunca fez essa travessia. O que o move a atravessar as noites em claro, em direção às manhãs, é o medo de acabar a vida trancado no escuro de si mesmo, dentro da tapera fria e abandonada da sua alma.


Claudionor, o Anacoreta, e Palomar Boavista, o astrônomo-mor, aplaudiram de pé a explanação. Os demais permaneceram, como eu, em constrangedor silêncio. O que fazer com isso?

A vida de todos é mesmo um fundão no fundo do abismo.

Farandolino raras vezes sai de casa. Da janela do escritório, observa as brumas dos Campos de Cima do Esquecimento. Honorata Ferreira cuida da casa e dele próprio desde 1960. Ela tem 78 anos e antes de retirar-se, nos fins de tarde, deixa-lhe a mesa posta para o café noturno. Ninguém sabe o que será dele no dia em que ela não mais estiver ali.

Juan Niebla é o único confidente que Farandolino Brouillon  tem neste mundo. Músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade, Niebla costuma dizer que, enquanto houver um homem sonhando com a aurora, a escuridão não dominará.

- No dia em que a aurora não mais se levantar da  treva,  estará encerrado meu ofício de poeta - escreveu Farandolino com o negro lápis na folha branca.

O poeta lê, escreve, consulta  os cartapácios no silêncio da biblioteca, prepara e espera  o amanhecer. Por isso  a treva não se instalou completamente em Passo dos Ausentes.

- O poeta - fala com voz mansa e grave Juan Niebla - é o guardião dos nossos sonhos de beleza, enquanto espalhamos tristeza e morte por aí. Durante nossos delírios de vaidade, grandeza e inveja, eliminamos o outro. Confio que o vate  continuará a abrir o portal da cidade pra receber o amanhecer. O poeta vale e vela por nós.

Resta, ao menos, um sopro de claridade na voz da poesia.

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Fotos: J. Finatto

domingo, 21 de novembro de 2010

Abro o jornal de manhã

Jorge Adelar Finatto

Aos 54 anos, o escritor se despede "para tentar reunir os estilhaços" em que se despedaçou com o passar do tempo, na tentativa de "ver se ainda é possível recompor com eles alguma unidade". Longe dos livros - "sobretudo dos melhores" - e também das cartas, jornais, revistas, televisões, dos amigos e da própria família, Suassuna tentará livrar-se dos "sonhos, quimeras e visões às vezes até utópicas da vida e do real", que o atormentam há algum tempo. (Folha de São Paulo, 16.8.1981)


Abro o jornal de manhã
com aquela notícia: Ariano Suassuna
                                  calou-se pro mundo

o silêncio enche os corações
lota os teatros
embrenha-se entre as anotações
invade as estantes

felino
enovela-se a um canto da sala
gotejando sangue pelos ouvidos

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Poema do livro Claridade, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Um amor

Jorge Adelar Finatto


La speranza di pure rivederti
m'abbandonava.  Eugenio Montale

No mais remoto deserto
- o sal e o labirinto do tempo
amadureço o poema

E parece que para encontrar-te
tinha de perder-te um dia

Colho no caminho as pétalas
da rosa que não te dei
e distraída desfolhaste

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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Fora do poema tudo é caos

Jorge Adelar Finatto


Essa frase - fora do poema tudo é caos - me saiu numa entrevista* que dei em 1984, época em que ainda se entrevistavam poetas da aldeia na imprensa local. Os meios de comunicação se expandiram, mas os espaços para divulgação de arte e literatura, fora do interesse estritamente comercial, diminuíram tanto que tenho dúvida se existem hoje entre nós.

A entrevista versava sobre o lançamento do meu livro Claridade, de poemas, selecionado para publicação dentro do Plano Editorial  de 1983, da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Porto Alegre. Consta, na abertura da matéria, que  o autor era um jovem jornalista e poeta de 27 anos. Custo acreditar que já tive essa idade.

O tempo passa, a gente fica mais perdido, mas certas verdades permanecem. Está registrado que o poeta (aquele jovem poeta de 27) estava angustiado e perplexo "diante de uma realidade maluca, atrasada e violenta como a brasileira".

Também está escrito que os poemas falavam de uma pessoa que "experimentou na consciência e na pele a dolorosa sensação de viver uma realidade sem perspectivas. Onde o indivíduo se sente arrastado pela opressão e sonhar é quase proibido. Onde viver se tornou a maior transgressão".

Nos poemas, apesar disso, "constata-se a convivência mais harmoniosa entre linguagem e vida. O mundo silencioso onde o real e o imaginário caminham juntos. Há uma integração profunda com a aventura humana. A palavra não salvará o homem, mas será sua projeção e seu espelho. Uma espécie de testemunha de seu próprio destino".

O poeta "trabalha com o poema numa região de luz, sem concessões ao desespero e à morte, acredita na força das coisas belas, na energia positiva das pessoas capaz de gerar zonas de intensa verdade e esperança.

"A fé na existência e no amor sobressai-se como o caminho destinado a vencer o escuro e a dor. O poder transcendente da vida sobre a morte, através da dimensão do amor, transforma e eleva".

Conclui o bardo de 27: "Nunca fiz literatura pelo simples prazer de escrever, ela surgiu na minha vida como uma necessidade inarredável, quase tão vital como respirar. Eu até preferiria viver sem escrever. O grande Manuel Bandeira disse certa vez que só se sentia seguro no chão da poesia. Eu sinto isso. Fora do poema o mundo é algo incompreensível e muitas vezes insuportável. É preciso criar tudo de novo, começar a vida das cinzas, renascer. Fora do poema tudo é caos".

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Entrevista publicada no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 13.4.1984. A matéria foi feita pelo jornalista Danilo Ucha.
Foto: J. Finatto

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Em certas ruas

Jorge Adelar Finatto


Em certas ruas
em certas tardes
penso em ti

os barcos
as ilhas
do Guaíba
nos definiram

no inverno
te enovelas
feito gato
no esconderijo
do apartamento
à beira rio

primavera
quedas esvoaçante
ao pôr-do-sol

crepúsculo
outro nome
dessa cidade
tão afeita
a silêncios
e despedidas

esperas
amanhecer
diante da dor

o rio e os peixes
não secarão o sal
da tua alma

escreves poemas

os poemas
são teu jeito
de suportar

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Poema do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.

Foto: J.Finatto

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O Mondego

Jorge Adelar Finatto

Vou encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, qu'é da tua água,
Qu'é dos prantos que eu chorei
          António Nobre
O Mondego
me dá
saudade
do Guaíba

os últimos barcos
partem
ao entardecer
deixando atrás
o sonho dos homens

o poema de António Nobre
escrito na pedra
à beira do rio
me recorda Porto Alegre
seus poetas esquecidos

a bilha vazia
da alma

o açúcar queimado
do crepúsculo
em Coimbra
me faz voar
sobre os telhados
agarrado no vestido
da Princesa Inês

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Poema do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
Foto: J. Finatto

sábado, 13 de novembro de 2010

Passos de algodão

Jorge Adelar Finatto



A silenciosa presença do amigo, sabê-lo por perto,  partilhando a vida, é motivo de consolo e esperança.


Depois de longa e sentida ausência, ele retornou ao convívio das tardes no escritório. Conheço meu amigo de outros invernos. Partiu em fevereiro sem dizer nada, tão ao seu estilo, e me deixou aqui todo esse tempo sem poder ouvir sua voz cava e rascante, sem poder ver sua plumagem luminosa, seus olhos redondos e atentos.

Sempre sinto falta do seu olhar de banda, da maneira estrambótica de aterrissar num só pé na sacada do escritório. Alziro tem temperamento forte e, às vezes, um certo mau humor o acompanha quando o tempo está pra chuva.

Ele voltou com suas cores vivas para suavizar o inverno. Eu andava mesmo precisado de sua companhia. Não que ele converse muito. No fundo, nem é isso o mais importante.

A silenciosa presença do amigo, sabê-lo perto, partilhando a vida, é motivo de consolo e esperança.

Providenciei hoje a reposição de pedaços de banana no pratinho dos pássaros, fruto muito do seu gosto.

Em certos dias, Alziro deixa a cerimônia de lado, entra no escritório, em passos de algodão, e ensaia uma pequena incursão no ambiente. Olha o teto, os lustres, a mesa, os livros, os quadros, as plantas e relógios, tudo com silenciosa atenção. Faço que não percebo para deixá-lo à vontade.

Do mesmo jeito que chega, o meu amigo vai embora. Como sempre, não se despede e nem diz quando voltará, apenas alça o improvável voo adunco rasgando o ar.

O que importa, diz o coração, é que a velha e boa amizade está rediviva. Se tudo der certo, talvez ele retorne amanhã ou quem sabe depois. Só espero que não me falte tão cedo, porque meu inventário de ausências já vai longo na vida.

Amar traz consigo, sempre presente, o risco de perder.
 
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Foto: J. Finatto. Alziro em visita.
Texto publicado no blog em 24/8/10.